Os matemáticos afirmam: o caminho mais curto entre dois pontos é a reta. Seguindo esta sugestão, aplico o princípio para compreender o conflito criado em Roraima, entre populações originárias e os garimpeiros. A discussão envolve interesses econômicos, políticos e culturais e questões ligadas à forma, às proposições, aos argumentos e conclusões sugeridas pelo debate.
É perigoso escorregar em um debate com consequências na vida ou na morte das populações originárias. Para evitar equívocos na argumentação convém manter clareza de objetivos.
O tema sugere proposições e argumentos variados. O caminho para combater o crime praticado contra os yanomamis pode ser longo, envolvendo uma retórica complexa, acadêmica, ou curto, mantendo o foco na ocupação ilegal de área demarcada. Se o trajeto for longo, a cultura yanomami corre risco de desaparecer. Se for curto, talvez supere o problema da invasão, eliminando definitivamente os garimpeiros da área.
Vivemos em um Estado de Direito, frase proclamada à exaustão. O Estado brasileiro demarcou a área em que vivem os yanomamis. A conclusão é lógica: quem entrar na terra, sem autorização, está cometendo um crime e deve ser punido de acordo com a lei. Esta é a questão central. Outras discussões e narrativas sobre o tema podem ser manipuladas retoricamente para atrasar as tomadas de decisão favorecendo novas ocupações e conflitos violentos.
Perigo à vista.
A questão em discussão é manter o foco: os yanomamis têm direito de viver em terra demarcada, os garimpeiros, não.
Como Roraima faz parte do território brasileiro, da nação brasileira, o território garante, a partir da Constituição de 1988, cidadania aos yanomamis.
A prova da afirmação?
O texto da Constituição.
Capítulo VIII
Dos Índios Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
É importante delimitar o campo de discussão deste artigo: as questões de pertencimento a um grupo étnico são complexas, analisadas por especialistas, temas que este artigo não pretende abordar. O recorte do artigo diz respeito ao exercício da cidadania nos seus fundamentos legais.
Falsos argumentos
A utilização de falsos argumentos para qualificar os povos originários como primitivos hierarquizando as diferentes culturas é uma velha armadilha. Perigo à vista.
As antigas ideias de dominação, superioridade e assimilação, contidas na condição de tutelado, retiravam das populações originárias as decisões sobre as suas próprias formas de vida. O problema foi superado (em parte) pela Constituição de 1988. Mas, na prática, o empoderamento destas populações não ocorreu. Muitos brasileiros se sentiram prejudicados pela demarcação das terras indígenas e mantiveram o costume de depreciar, ocupar as terras demarcadas e matar estas populações.
Garantir a cidadania de todos os habitantes do território brasileiro é tarefa difícil, especialmente em relação às populações originárias. A valorização tem início com perguntas simples: Foi possível para todos os habitantes do nosso território obter documentos? Certidão de nascimento, carteira de identidade, título de eleitor, carteira de vacinação. Os habitantes da floresta tiveram direito e oportunidade de tomar vacina e de votar?
Na atual circunstância de conflito em Roraima, ter documentos (tradição dos Estados-Nação do Ocidente) não representa a perda da identidade indígena, construída no interior da própria comunidade. Os documentos, ao contrário, ao atestar personalidade jurídica aos seus portadores, representam um instrumento para garantir direitos: à vida, à terra, comprovando políticas de genocídio efetuadas contra estas populações.
Armadilhas retóricas
Armadilhas retóricas, utilizadas por grande parte do exército e por muitos brasileiros, atacam o tema mediante hierarquização das culturas: culturas complexas ou primitivas, adiantadas ou atrasadas, letradas ou iletradas, vocacionadas para o progresso ou avessas ao desenvolvimento. Elas estariam agrupadas das mais simples, primitivas, até as mais complexas. No topo da pirâmide estaria a nossa cultura, do Ocidente, desenvolvido e profundamente desigual.
Esta régua hierarquizadora de culturas, presente no imaginário de muitos brasileiros, ainda justifica a dominação, a submissão ou a eliminação das culturas consideradas inferiores ou primitivas. Quem está, supostamente, mais em cima imagina ter poder de oprimir ou eliminar quem está, supostamente, mais abaixo.
Esta proposição hierárquica de raízes coloniais, patriarcais e autoritárias se desdobrou, com outras roupagens, na ideia de progresso, ideia central da modernidade. Ela fundamentou, durante os séculos 16, 17, 18 e 19, a tutela dos indígenas, considerados primitivos e inferiores pelos conquistadores europeus e pelo nascente Estado Nacional. Apenas nos séculos 20 e 21 estudiosos do tema, em âmbito nacional e internacional, colaram em questão as velhas premissas, e visões etnocêntricas. Paulatinamente especialistas demonstraram ser necessário manter o equilíbrio entre as diferentes formas de vida sem hierarquias entre gente, animais, plantas, água, terra. A vida no planeta ganhou outras dimensões.
É difícil mudar um olhar cristalizado por séculos.
Consequência importante desses debates foi a alteração do estatuto das populações originárias dando a elas o direito de escolher o seu próprio caminho. A tutela acabou. Os povos originários se tornaram cidadãos com direito à posse permanente das terras demarcadas e usufruto exclusivo das riquezas do solo.
Parágrafo 1º: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por ele habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
2º: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10643688/artigo-231-da-constituicao-federal-de-1988
Livres da tutela, ganharam direito à terra. Possuintes de um território demarcado, passaram a ser tratados, por alguns cidadãos sem-terra, como inimigos. Parte dos trabalhadores construiu vínculos com empresários e políticos interessados em ouro, cassiterita, madeira, dinheiro e poder. Ocuparam as terras demarcadas e escolheram argumentos para se apoderar do bem alheio. Enraizadas em solo brasileiro a economia de mercado, as lógicas quantitativas e a ideia de progresso se transformaram em justificativas fáceis de serem compreendidas pela população em geral. É simples e sedutor para a economia de mercado encontrar argumentos para defender a exploração do ouro, da cassiterita e da madeira reconhecendo os ganhos proporcionados pelo ilícito, justificando formas de transformá-lo em lícito e, na contrapartida, desqualificar o patrimônio material e imaterial dos povos originários, com valores depositados em lugar pouco conhecido.
Na tradição do Ocidente, o ouro das coroas brilha mais do que as penas coloridas do cocar.
Signos de identidade. Argumentos adequados ou inadequados em relação aos fins
São muitos os signos de identidade de uma população. Dentre eles a língua merece destaque. Patrimônio cultural não se hierarquiza. Não existe uma língua ou uma cultura melhor ou pior que a outra. O patrimônio de um povo reúne elementos naturais, culturais, materiais ou imateriais. Forma um sistema único e incomparável. São heranças deixadas pelos antepassados onde um determinado grupo de indivíduos reconhece a sua identidade.
A diversidade linguística é um tesouro.
Existem 7.139 idiomas falados em todo o mundo (de acordo com Etnologue, catálogo dos idiomas falados no planeta). A língua contém diferentes formas de pensar, de cuidar do planeta, de viver e de morrer. A diversidade cultural é uma poção mágica capaz de impedir o processo de naturalização dos nossos valores, da cegueira em que se vive quando não se experimenta a diferença.
No Brasil,
“Existem cerca de 180 línguas indígenas e respectivos dialetos sendo praticadas no Brasil por 330.000 índios, aproximadamente, e por algumas comunidades ribeirinhas do norte do país.
Rodrigues (1999) calcula que nos primeiros anos de colonização um número de cerca de 6.000.000 de índios falava mais de 1.000 línguas indígenas.
As políticas colonizadoras e civilizatórias resultaram no desaparecimento de cerca 85% dessas línguas. Na primeira metade de século XX, já se registrava uma perda de 29% delas. (…)
A média de falantes por língua é de 1.000. A sua distribuição, no entanto, é bastante desigual. Segundo dados recentes, somente nove línguas indígenas são faladas por mais de 5.000 índios, cada uma delas. São elas: guajajara, sateré-mawé, xavante, yanomami, terena, macuxi, kaingang, ticuna e guarani, sendo que as últimas contam com cerca de 30.000 falantes cada uma. Já as cerca de 170 línguas restantes possuem um número de falantes de cerca de 400 índios, cada uma. (Lopes, 1995, Rodrigues, 1999). (…)
A região da Amazônia Brasileira é aquela que apresenta maior concentração de falantes de línguas indígenas: são mais de 60 línguas (ISA, 1991/995, e FUNAI, 1996), faladas por sociedades indígenas distintas. Só nas áreas indígenas localizadas no estado do Amazonas são faladas mais de 50 línguas diferentes. Estas línguas vêm sendo faladas por um contingente de cerca de 150.000 índios. (…)
https://www.labeurb.unicamp.br/elb/indigenas/l_indigenas.html
As diferenças linguísticas e culturais nos permitem realizar o incrível exercício da alteridade. Um dos mais importantes aprendizados no processo planetário de humanização. Sem ver, ouvir e sentir a diferença tendemos a desqualificar e hierarquizar o diferente, raiz de muita violência.
A prova é evidente nos dias de hoje. Basta observar os problemas gerados pela imigração, especialmente das populações oriundas do continente africano, ou o apreço de alguns governantes pela construção de muros ou ainda a ocupação irracional da Amazônia, justificada por supostas interferências internacionais.
Este é um tema complexo de enorme importância. Trata-se de matéria onde a discussão exige conhecimentos especializados de antropólogos, linguistas, biólogos, entre outras áreas afins. Perceber a riqueza de diferentes patrimônios culturais exige conhecimento das línguas faladas, das diferentes formas de cognição e capacidade para captar o mundo material e imaterial.
O problema é tão complexo quanto as questões levantadas pela física, pela matemática ou química, entre tantas outras áreas do saber. Não podemos exigir do público em geral conhecimento de áreas especializadas, como física, antropologia, linguística, entre outras.
A complexidade desta discussão pode induzir a erros, favorecer a construção de falsos argumentos por indivíduos mal-intencionados, interessados em mobilizar forças políticas em direção a assimilação das populações originárias, nas cidades e no mundo do trabalho.
Assimilação foi argumento central difundido no século 19 e início do 20, gerando tanto a destruição da natureza como das populações originárias. Argumentos perigosos, de fácil compreensão para o público em geral e bastante utilizado nos dias atuais (especialmente em áreas de floresta e mineração).
Afirmar ser os yanomamis primitivos corresponde a alegar, por exemplo, ser Einstein imaginoso, irrealista, ao declarar que o tempo é relativo porque depende do referencial a partir do qual o medimos. As discussões no âmbito da física ou da antropologia (entre outros saberes) são igualmente intrincadas abrindo caminho para uma retórica demagógica.
Muitas vezes é enigmático explicar a existência de várias réguas para medir as coisas, as pessoas e as culturas.
O pensamento único seduz, brilha na sua linearidade.
O papel da Constituição
A partir de 1988, com a Constituição, a forma de viver dos povos originários é escolha dos próprios povos originários. Nenhum argumento justifica exploração, extermínio, conversão ou reeducação para inserção dessas populações na sociedade dominante.
O que está ocorrendo em Roraima e em outros Estados brasileiros, onde terras demarcadas são invadidas, é crime. Crime de invasão de propriedade, de roubo de medicamentos, de estupro, de manutenção em cativeiro de indivíduos com objetivo de eliminar pela fome e malária as populações originárias. Como se trata de crime, os mandantes, financiadores e executores devem ser punidos de acordo com a lei.
O genocídio ocorrido em Roraima exige responsabilização do Estado brasileiro, das instituições e dos políticos por ação ou omissão. As instituições e seus responsáveis foram lenientes com a entrada continuada de garimpeiros, madeireiros e pescadores ilegais em terras demarcadas.
O fato ocorrido em Roraima com os yanomamis – demonstrado com imagens pela imprensa – exige atenção. A retórica e a argumentação utilizada pelos políticos podem favorecer ou prejudicar as populações originárias.
O perigoso argumento do senador Chico Rodrigues: a palavra “primitivo”
O termo impróprio, “primitivo”, foi utilizado pelo senador Chico Rodrigues, presidente da Comissão sobre a crise dos yanomanis. Muita gente não entende por que a palavra é imprópria e apoia o senador, especialmente a população de Roraima, do Centro-Oeste e Sul do Brasil. Palavras podem ser perigosas. Têm potencial para detonar guerras, assassinatos e genocídios.
Onde mora o perigo do uso inadequado da palavra primitivo para qualificar os povos originários?
A palavra retira o foco da questão essencial e permite o uso de argumentos sedutores, consoantes com o senso comum, com imagens onde a nudez, a integração com a floresta e uma suposta “preguiça” dos povos originários são lidas como atributos de culturas atrasadas.
A pauta deve ceder lugar para o tema do crime cometido contra os direitos dos povos originários garantidos pela Constituição.
O valor da cultura yanomami, eles, os Yanomami, conhecem bem.
Tergiversar na argumentação pode representar risco de vida.
O foco é: Ocupar as terras dos povos originários é crime.
O foco da discussão: o eixo argumentativo
O tema central da discussão, agora, é respeitar os direitos dos povos originários. Direitos e deveres dos yanomamis viverem à sua maneira na terra demarcada respeitando o regramento legal brasileiro, direitos e deveres estabelecidos pela Constituição de 1988.
Lançando mão deste eixo argumentativo devemos cobrar da Comissão chefiada por Chico Rodrigues, no Senado, os direitos dos povos originários viverem em paz em suas terras. Devemos contribuir para a Comissão do Senado e a sociedade brasileira compreender o fato dos garimpeiros serem invasores de terras demarcadas. Invasores, sequestradores e violadores de meninas, capazes de deixar crianças morrerem de fome da mesma forma como fizeram com os prisioneiros do Holocausto para acabar com os judeus.
Devemos cobrar do Estado o controle do ouro roubado, do rio envenenado, da mata destruída. Devemos vigiar as instituições, exigir do Estado a emissão da certidão de nascimento de cada yanomami, de atestado e da vacina, transformando, os habitantes das terras indígenas, em cidadãos com direito ao voto (se assim desejarem), à vida e à manutenção de sua terra.
Os garimpeiros estão cometendo crime ao invadir a propriedade alheia, ao impedir acesso ao registro de nascimento das crianças. Registro de nascimento que garante direito à terra, à vida. Documentos que favorecem aos povos indígenas exercerem todos os seus direitos.
“Todos os cidadãos brasileiros têm o direito à documentação civil básica, e o indígena, como cidadão pleno, tem os mesmos direitos do cidadão não indígena, além daqueles direitos específicos garantidos pela Constituição federal aos povos indígenas. A documentação civil básica é composta pelos seguintes documentos:
• Certidão de Nascimento
• Registro Geral (RG, também conhecido como Carteira de Identidade)
• Cadastro de Pessoas Físicas (CPF)
• Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS)”.“O voto é facultado para indígenas que vivem nas aldeias e, se ali é decidido não votar, eles não são obrigados a fazê-lo. Isso ocorre porque a decisão de não votar pode prevalecer sobre a obrigatoriedade do voto, pois a Constituição dá aos povos indígenas o direito de viver segundo seus usos, suas tradições e seus costumes. Porém, uma vez inscrito no registro eleitoral, o voto passa a ser obrigatório se o índio for maior de idade e alfabetizado em língua portuguesa. Para ser candidato, basta que o índio cumpra os requisitos do cargo.”
https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/6820/2/Módulo%202%20-%20Direitos%20e%20deveres%20dos%20povos%20indígenas.pdf
Pimenta nos olhos dos outros não arde
Algum leitor gostaria de estar trancado em um quarto da casa sem comida, tendo apenas água contaminada para beber enquanto seu vizinho ocupasse toda a casa, comesse ao seu lado sem oferecer para você e sua família comida e, ainda, violentasse suas filhas?
Esta é a pergunta que cada um de nós, do grupo dos indignados, deverá fazer, diariamente, para todos os membros da Comissão do Senado. Os garimpeiros tinham comida e massa muscular, os povos originários, não. Por quê?
Cuidado:
1. Palavras podem ser utilizadas para favorecer a prática de ilícitos.
2. A argumentação pode partir de falsas proposições.
3. A oratória do demagogo pode esconder o caráter imoral do orador, retratado pelo favorecendo a legalização do ouro extraído de lavras garimpeiras ilegais.
A Comissão do Senado é formada por cinco membros. A presidência da Comissão coube a Chico Rodrigues (PSB-RR), a vice-presidência a Eliziane Gama (PSB-MA), a relatoria ao Dr. Hiran (PP-RR). Também faz parte da comissão Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e Humberto Costa (PT-PE).
Que a arte da Retórica, de Aristóteles, ilumine Eliziane Gama e Humberto Costa, indicados pela Comissão de Direitos Humanos, nesta contenda argumentativa de vida e morte.
São os meus mais sinceros votos.
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)