Universidade e sociedade

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), ambas da USP

 20/10/2022 - Publicado há 2 anos

O motor de busca do Google indica 238 mil resultados para a passagem “relação entre a universidade e a sociedade”. Ao utilizar o plural “relações entre a universidade e a sociedade” surgem mais 169 mil resultados, totalizando cerca de 400 mil (acesso em 16 de outubro de 2022). Trata-se de quantidade expressiva, mesmo para o habitualmente elevado número de ocorrências geradas pelo buscador. Os textos que contêm essas passagens incluem obras de viés acadêmico e textos de outras naturezas, tais como artigos na imprensa, material de promoção institucional e páginas pessoais na internet de conteúdo livre (blogs).

A mensagem essencial desse vasto e variado material é a de que as universidades precisam empenhar-se, e muito, no incremento de sua relação (ou relações) com a sociedade. Essa expectativa, que por vezes é vocalizada com estridência, tem sido manifestada tanto por pesquisadores integrantes da universidade como por pessoas do meio empresarial, da imprensa, da administração pública (de carreira ou eleitos) e de outras extrações. É manifestada tanto por academófilos como por academófobos, naturalmente com entonações diversas.

Chama a atenção a permanência quase imutável dessa reivindicação, que parece não estar sendo atendida nem mitigada, em que pesem os notáveis e notórios esforços feitos por universidades, particularmente pela vertente da extensão universitária e pela assim chamada transferência de tecnologia. E mesmo a educação de qualidade das novas gerações, que é a forma mais óbvia de contribuição da universidade para a sociedade como um todo, encontra não poucas vezes mais críticas do que reconhecimento. Por que é tão penoso alterar substancialmente a situação?

Não parece razoável esperar que haja uma única ação capaz de reverter esse quadro. Assim, cabe persistir no permanente aprimoramento de linhas de atuação que vêm sendo chamadas de “terceira missão da universidade”. E, ao mesmo tempo, buscar dimensões diferentes, que talvez tenham passado despercebidas. Um dos aspectos que merecem maior atenção é o idiomático. Uma questão nesse domínio é se parcela da dificuldade para avançar na almejada conexão entre o meio universitário e a sociedade ampla decorre da utilização inadequada do conectivo “e”.

Examinemos um antecedente remoto do par “universidade e sociedade”. Assim como a universidade contemporânea conserva ritos e símbolos medievais (como samarra, capelo, beca e outras), ela também preserva noções medievais de relacionamento com o seu entorno. Uma delas é exatamente o conceito de “relação entre a universidade e a sociedade”, que ecoa a antiga expressão inglesa town and gown (“cidade e beca”). Esta retrata uma configuração em que duas coletividades apartadas – a comunidade universitária e a população não universitária – coexistiam em cidades com presença intensa de instituições acadêmicas. A convivência entre elas era frequentemente adversarial e, por vezes, abertamente conflituosa.

Várias razões explicam esses embates, algumas delas persistentes até os dias de hoje. Parcela significativa dos e das estudantes provinha de outras paragens, trazendo consigo códigos de vestimenta e de conduta malvistos pela população local (sabemos que reações xenofóbicas infelizmente continuam na ordem do dia em várias partes do mundo). A atitude negativa era agravada pelo fato de o idioma de ensino e comunicação no ambiente acadêmico ser o latim, raramente dominado pela população não universitária (os jargões acadêmicos continuam distantes da compreensão da população em geral). As instituições de ensino superior gozavam de privilégios dados pelo governo central ou pela igreja, o que as retirava da jurisdição do governo local, acarretando arrogância de um lado e ressentimento do outro. Mal-estar similar a respeito da autonomia universitária, em especial a de gestão financeira e patrimonial, é perceptível na postura de não poucas autoridades governamentais em nosso meio.

O clima descrito elevava o risco de que conflitos ocasionais entre um membro da comunidade acadêmica (gown) e um cidadão local (town) descambassem em batalhas campais violentas, com mortos e feridos. Por vezes, eram deflagradas por questões triviais, como uma reclamação mais áspera de estudantes sobre a qualidade do vinho que lhes era servido numa taverna. Os efeitos dessa ambiência marcam a história de duas universidades inglesas de nomeada: a Universidade de Cambridge foi criada em 1209 por professores da Universidade de Oxford que fugiram da sua cidade de origem para escapar dos tumultos town and gown, em que dois estudantes haviam sido linchados.

Se a realidade presente evidencia uma relação mutuamente proveitosa entre a universidade e outros segmentos da sociedade (meio empresarial, terceiro setor, órgãos e entidades governamentais), a manutenção de expressões herdadas do medievo ajuda a perdurar no imaginário popular representações separatistas, como a da “torre de marfim”. Assim, sugerimos utilizar formas que contribuam para defletir a percepção negativa e reconheçam a evolução positiva do relacionamento já alcançada. Formas que exprimam a disposição à escuta e a intenção de manter relações dialógicas. Uma formulação possível é “ampliar a cooperação da universidade com os demais segmentos da sociedade”. Ela reconhece a pluralidade e a complexidade do tecido social, e deixa claro que a universidade não é um ente externo à sociedade, e sim um dos seus segmentos.


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