Sobre raposas, porcos-espinhos e os modos de enxergar o mundo e suas complexidades

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP

 05/01/2024 - Publicado há 6 meses

A noção de sistema como conjunto de componentes interligados que funciona como um todo constituído está presente no universo do conhecimento humano de A (Astronomia) a Z (Zoologia). Ilustram a afirmação, respectivamente, o sistema solar e o sistema classificatório dos organismos. Ainda que remonte à obra de Aristóteles sobre Metafísica, e lá se vão mais de dois milênios, é apenas no século passado que os olhares de estudiosos diversos se voltam a essa ideia aparentemente singela. Dela extraem conceitos poderosos, como sinergia, homeostase e autorregulação, aplicáveis a campos tão distintos como administração, computação, ecologia e sociologia.

Essa característica universal se expressa na Teoria Geral de Sistemas, proposta há exatos 75 anos. Cabe observar de início que no texto original em alemão “Zu einer allgemeinen Systemlehre” o termo Lehre tem um sentido mais lato do que a sua tradução consagrada “teoria”. Essa versão tende a causar uma confusão no entendimento, uma vez que a noção de teoria está tipicamente associada a uma disciplina (por exemplo, a Teoria Econômica) ou a um campo integrante de uma disciplina (por exemplo, a Teoria Quântica, que é parte da Física).

Em contraposição, a proposta de uma Teoria Geral de Sistemas, do biólogo e filósofo Ludwig von Bertalanffy (1901-1972), é a de uma construção mental abrangente, que vai além de teorias científicas e de doutrinas filosóficas. De tal construção seria possível extrair princípios e leis potentes que são aplicáveis, com algum ajuste situacional, ao estudo tanto das Ciências da Natureza como das Ciências Humanas e da Ciências Sociais.

Essa ambição totalizante remete a uma classificação popularizada pelo seu contemporâneo Sir Isaiah Berlin (1909-1997), notável historiador das ideias e professor da Universidade de Oxford, no conciso livro The Hedgehog and the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History (O Porco-espinho e a Raposa: Ensaio sobre a Visão Histórica de Tolstói). Ele identifica duas classes de intelectuais, às quais designa de “raposa” e “porco-espinho”. Essa curiosa dicotomia é inspirada num fragmento atribuído a Arquíloco de Paros, um poeta lírico grego do século 7 a.C., a saber: “A raposa sabe muitas (pequenas) coisas, o porco-espinho, apenas uma, grande”. Uma interpretação dessa frase enigmática pode ser ouvida nesta coluna da professora Marília Fiorillo.

Cabe observar mais uma questão de tradução: o hedgehog mencionado por Berlin corresponde ao ouriço, um animal assemelhado ao porco-espinho (porcupine em inglês), mas que é de família zoológica diferente. A versão do livro de Berlin publicada em Portugal tem o título correto, O ouriço e a raposa; preservamos aqui a tradução consagrada no Brasil (porco-espinho).

Von Bertalanffy é um típico intelectual da classe “porco-espinho”, na qual está na companhia de personagens marcantes do pensamento humano que enxergam o mundo e suas complexidades através de uma lente única. Um destes é Karl Marx, apontado por Berlin como o porco-espinho prototípico.

O autor das presentes linhas, que seria enquadrado como raposa se intelectual fosse, admira a coragem ambiciosa dos que, como Marx, são capazes de propor uma chave-mestra mental capaz de abrir portas em múltiplas áreas do conhecimento humano. Ao mesmo tempo, guarda intensa cautela dos intelectuais porco-espinho, em face do risco de ideias totalizantes degenerarem em regimes totalitários, como vários dos que se nutriram do marxismo, o mais notório dos quais foi o stalinista. É igualmente elevado o risco de concepções totalizantes assumidas por movimentos com nomes e simbologias atraentes descambarem em práticas de terror bestial, como testemunhamos recentemente.

O risco se eleva quando o proponente é ímprobo. É exatamente o caso de von Bertalanffy, afiliado convicto do nazismo, ideologia que não abjurou mesmo após se tornarem conhecidos os horrores da Segunda Grande Guerra. Como mostrado em numerosos estudos, entre eles a minuciosamente documentada obra The Betrayal of the Humanities: The University during the Third Reich (A Traição das Humanidades: A Universidade durante o Terceiro Reich, publicada em 2022 pela Editora da Universidade de Indiana), expoentes das Humanidades de brilhantes universidades alemãs edificaram alguns dos pilares intelectuais do empreendimento nacional-socialista alemão. Um deles é o conceito de “espaço vital” (Lebensraum), o qual se tornou um componente crítico na visão de mundo nazista, servindo para impulsionar tanto as suas conquistas militares quanto a política racial.

Mas, felizmente, risco não é certeza. Assim, ainda que gerada por um intelectual de biografia pessoal reprovável, o principal legado de von Bertalanffy vem gerando frutos positivos para a humanidade. De fato, a Teoria Geral de Sistemas dá origem a um fecundo campo transdisciplinar de estudo e configura a chamada “abordagem sistêmica”, que é utilizada por organizações e governos para melhor lidar com problemas complexos. Ilustra o vigor e atualidade dessa abordagem a recente publicação Systems Approaches to Public Sector Challenges, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.

A abordagem sistêmica adentra o campo da inovação na década de 1980, quando se engendram os conceitos de “sistema de inovação” e “sistema nacional de inovação”. Este é proposto pelo professor Chris Freeman, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, a partir do estudo seminal que realizou para explicar o surpreendente êxito do Japão em setores historicamente dominados por outras nações, como o automotivo. Desse tronco derivam ramos como “sistema regional de inovação”, “sistema local de inovação” e “sistema setorial de inovação”. E, também, o de “sistema de sistemas nacionais de inovação”, de que é exemplar o Espaço Europeu de Pesquisa (e Inovação).

Os ambientes que tradicionalmente favorecem a inovação, como Parques Tecnológicos e Incubadoras, passam a ser entendidos como componentes de sistemas de inovação. Isso leva, no entorno de 2010, ao construto “ecossistema de inovação”, inspirado na Biologia. Esta, que é a disciplina de formação acadêmica de von Bertalanffy, passa desde então a ser a “musa inspiradora” de políticas públicas sistêmicas destinadas a estimular a inovação. E não apenas a de viés econômico, como também a inovação de orientação social: veja-se, por exemplo, a publicação da referida OCDE Building local ecosystems for social innovation: A methodological framework, divulgada em meio à pandemia da covid-19.

Novas metáforas inspiradas nas biociências e igualmente alicerçadas na abordagem sistêmica vêm enriquecendo o entendimento dos fatores que facilitam ou dificultam a inovação. Em próximo artigo serão abordadas novíssimas alegorias baseadas na natureza. Uma delas é a dos “ecótonos de inovação”. Antecipando: “ecótono é uma região de transição entre duas comunidades ou dois ecossistemas onde vivem espécies das comunidades limítrofes e espécies peculiares da região” (Aulete digital). Continue conosco!

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