Ode à inovação: olhar para o futuro, com valores construídos no passado

Por Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP

 06/09/2024 - Publicado há 6 meses

Estamos nos anos 20. Não apenas pelo fato de o calendário indicar o segundo decêndio do século atual, como também por estar o Brasil presidindo rotativamente o “Grupo dos 20” (G20). É este um agrupamento formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo, mais a União Europeia (UE) e, recentemente, também a União Africana, inclusão que leva o “Grupo dos 20” a ter 21 membros.

O grupo foi criado na virada do século, após sucessivas crises financeiras mundiais havidas na década de 1990, em particular a gerada na Ásia. Elas evidenciaram a conveniência de um foro permanente para recuperação da estabilidade econômica global em caso de novas perturbações. O seu objetivo declarado é “favorecer a negociação internacional, integrando o princípio de um diálogo ampliado, levando em conta o peso econômico crescente de alguns países, que, juntos, representam 90% do PIB mundial, 80% do comércio mundial (incluindo o comércio intra-UE) e dois terços da população mundial”.

O escopo original do grupo foi ampliado para abranger outros desafios globais. A projeção adquirida pelo G20, que passou a contar com a presença de chefes de estado e de governo em suas reuniões anuais, fez surgir gradativamente um conjunto de satélites, denominados “grupos de engajamento”, que ensejam um nível considerável de participação da sociedade ampla. Atualmente são 13 grupos, cobrindo o alfabeto, em inglês, de B (Business 20) a Y (Youth 20). A liderança de cada grupo é de uma entidade representativa do país que sedia o encontro do G20.

Neste ano em que o Brasil preside esse complexo, a Universidade de São Paulo, pelo seu Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), envolveu-se em três grupos de engajamento. Como convidado especial da presidência da Academia Brasileira de Ciências (ABC), participou de reunião do Science20 (S20), o grupo de engajamento para a área de ciência e tecnologia formado pelas academias nacionais de ciências dos países do G20. O tema da presente edição, Ciência para a Transformação Mundial, traz a inovação para a ribalta.

O IEA-USP está na coordenação do Oceans 20 (O20), pela sua Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano, constituída em parceria com o Instituto Oceanográfico da Universidade. Trata-se de um grupo de engajamento novato, mas já intenso em atividades: “A criação do O20 pela presidência brasileira do G20 é um marco histórico de reconhecimento do papel central do oceano nas agendas globais de clima, energia e meio ambiente e que, apesar de ser um oceano global e interligado, é plural em suas características”.

O instituto também se envolveu no Think 20 (T20), grupo que tem por objetivo principal “produzir, debater, consolidar e apresentar ideias sobre como enfrentar os desafios atuais e emergentes que podem ser tratados pelo Grupo dos 20”. O T20 difere de outros grupos de engajamento por não abordar uma temática específica, contribuindo transversalmente, mediante eventos paralelos focalizados e policy briefs. Estes são “documentos com informações baseadas em pesquisas científicas atuais e sugestões de ações que podem contribuir com o debate sobre políticas públicas, que visam informar e influenciar as orientações, recomendações e declarações finais do G20”. O lema da presente edição do T20 é “repensar o mundo” (Let’s rethink the world, no original inglês).

O Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atual coordenador do Fórum Brasileiro de Estudos Avançados, organizou, em abril de 2024, um evento paralelo no âmbito do T20 denominado Brazil-China Innovation Dialogue 2024: Technology and Development. A finalidade dessa sétima edição do diálogo sino-brasileiro foi discutir tendências e direções em políticas de inovação, tecnologias disruptivas e o seu impacto, assim como oportunidades de desenvolvimento. O convite ao diálogo declarava que a visão de futuro era crucial para os desafios na vanguarda da ciência e da tecnologia. Essa importância se refletiu no próprio título da atividade de abertura: Uma visão de futuro. Coube ao IEA-USP a fala de encerramento dessa sessão inicial. Ela é reproduzida a seguir, com pequenos ajustes.

Na hábil formulação da diretora do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a querida professora Ana Célia Castro, esta tarde inaugural combina revisita ao passado, no ensejo dos 50 anos de relações diplomáticas entre Brasil e China, e um conjunto de reflexões prospectivas. Feitas por especialistas de nomeada, estas tratam de áreas críticas para a sociedade humana, tais como agricultura, energia e saúde.

A Universidade de São Paulo e, em particular o seu Instituto de Estudos Avançados, poderiam adicionar relatos e propostas nessas e em outras áreas. Em especial, na confluência de áreas, que é geradora de oportunidades e desafios singulares, os quais requerem abordagem interdisciplinar. Inspirado na natureza, refiro-me aos ecótonos, espaços em que confluem ecossistemas diversos. Todavia, seguindo um caminho diferente, buscarei contribuir ao ethos deste instigante evento a partir de uma perspectiva “humanista”.

Começo com uma revisita ao passado, mas a um passado mais distante. Em 1824, há exatos 200 anos, Ludwig van Beethoven conclui a sua Sinfonia nº 9. Trata-se de uma inovação musical: é a primeira sinfonia em que tanto os instrumentos musicais como a voz humana têm protagonismo e se complementam de maneira encantadora. Por isso, ela é conhecida como Sinfonia Coral — ao mesmo tempo sinfonia e coral. Lembra a dualidade onda-partícula da mecânica quântica, a ondícula. E é uma inspiração para discussões contemporâneas, como a da tensão ou simbiose na assim chamada interação “humano-máquina”.

Referindo-me ao leitmotiv do evento, recomendo a leitura do livro “Beethoven na China”, coelaborado por Jindong Cai, um professor asiático-americano da Universidade de Stanford, ele mesmo um maestro. Descreve como no século 20 uma parte da população chinesa se encanta pela imagem de uma pessoa que passa por tumultos e obstáculos que Beethoven conseguiu superar, um dos quais a surdez, triunfando gloriosamente ao final. Essa história pessoal caiu bem na cultura chinesa, em especial pela sua adequação ao ideal de perseverança.

Curiosamente, a Nona Sinfonia de Beethoven influenciou a tecnologia digital contemporânea. Como sabemos, o disco digital compacto — o CD, foi cocriado por duas corporações globais fortemente concorrentes entre si, a Philips e a Sony. Cada uma delas estava desenvolvendo a tecnologia de áudio digital, a fim de superar as limitações das gravações analógicas, conspurcadas por chiados e outros ruídos. Chegaram as duas empresas à conclusão de que a translação da nova tecnologia para uma inovação exitosa seria alavancada caso houvesse um padrão tecnológico compartilhado por todos os produtores. Isso levou os dois times de desenvolvimento a passarem a trabalhar juntos.

Todavia, a confluência de ecossistemas empresariais tão diferentes como os da Philips e da Sony não é trivial, como sabemos todos os que atuamos em ecótonos culturais. Uma das desavenças era o tamanho que deveria ter o CD. Havia duas proposições de circunferência do disco, que obviamente possibilitariam capacidades diferentes de registro musical. A maior delas carregava 60 minutos de música.

É aí que entra a Sinfonia nº 9. Percebendo a importância de atrair ícones da música para a inovação tecnológica então em gestação avançada, a equipe de desenvolvimento foi conversar com o maestro Herbert von Karajan, diretor musical da Orquestra Filarmônica de Berlim. Ele era, na linguagem algo esquisita de hoje, um mega influencer no negócio da música clássica. Karajan se dispôs a ajudar a promover a novidade, mas impôs uma condição: o CD deveria permitir a gravação integral da Nona Sinfonia. Esta poderia chegar, de acordo com o tempo dos diversos maestros, a durar até um pouco mais de 70 minutos. A condição foi aceita, e o CD adquiriu uma circunferência maior do que quaisquer das duas propostas originais.

Concluo com uma pequena, e talvez ousada, contribuição ao título da sessão, que é “Uma Visão de Futuro”. Recorro mais uma vez à Sinfonia nº 9 de Beethoven, especificamente ao movimento final. Essa obra-mestra tem um papel cultural de máxima relevância no mundo contemporâneo. Menciono apenas um exemplo: poucas semanas após a queda do Muro de Berlim, ocorrida em 9 de novembro de 1989, há exatos 35 anos, o igualmente icônico maestro Leonard Bernstein dirigiu a Nona Sinfonia, interpretada por um conjunto de músicos e cantores de várias partes do mundo, na antes dividida e agora reunificada Berlim.

Cabe registrar que houve uma mudança significativa na parte coral: a “Ode zur Freude” (Ode à Alegria) virou “Ode zur Freiheit” (Ode à Liberdade), de acordo com o Zeitgeist, o espírito do tempo marcado pela euforia desse sinal claro de que se aproximava o final da Guerra Fria. Penso que Beethoven aceitaria de bom grado essa mudança no título. Afinal, ele é considerado um revolucionário que não só lutou pela liberdade na arte da música, mas também apoiou os ideais da Revolução Francesa.

O poema de Schiller musicado por Beethoven contém uma visão de futuro, como nos pede a professora Ana Célia: “Alle Menschen werden Brüder” — todas as pessoas se tornarão irmãos (e irmãs). Resgatar essa visão me parece essencial nestes tempos em que a valorização das confluências vem sendo suplantada pela fragmentação radical, em que a diversidade humana passa de bem-vinda a fonte de ódio xenofóbico de vários matizes.

Penso que nas conversas sobre o futuro poderíamos acrescentar a seguinte reflexão a cada uma das apresentações que serão feitas no certame que nos reúne na Cidade Maravilhosa: como o avanço científico ou tecnológico proposto e como as inovações dele decorrentes podem colaborar para a visão de futuro cantada em alto e bom som ao longo de 200 anos: “Alle Menschen werden Brüder”, todas as pessoas se tornarão irmãos e irmãs.

Somos testemunhas em tempo real, aqui e agora, de como isso pode ser feito, atentando para uma curta frase do doutor Paulo Protásio, em meio à sua instigante apresentação de mapas que procuram colocar o Brasil numa posição central. Ao comentar a mudança do centro de gravidade do comércio mundial do Oceano Atlântico para o Oceano Pacífico, ele afirmou em alto e bom som: “Mas o oceano é um só!”. A propósito, essa é a razão pela qual uma das cátedras que o Instituto de Estudos Avançados da USP mantém, em conjunto com o Instituto Oceanográfico, é denominada Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano (no singular).

Ao incluir na pauta das conversas sobre o futuro um olhar para os valores básicos construídos no passado, vários deles a duras penas, ajudaremos a trazer o gênero humano um pouquinho mais perto do sonho de Beethoven e, assim, a construir um futuro que valha a pena ser vivido.

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