No dia 28 de setembro de 2023, ouvi e vi algumas manifestações acerca do movimento dos estudantes da USP que estão em greve. Não consigo acompanhar, em tempo real, tudo o que está ocorrendo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: as manifestações estão mobilizando a Universidade e isso é muito bom no sentido de nos fazer pensar e nos tirar da rotina da automatização de respostas.
Creio que se leve um tempo para compreender algumas das demandas atuais dos estudantes da USP. Eu mesma demorei para entender algumas delas. E não sei se consegui compreender todas.
Eu apoio, obviamente, o Programa de Apoio à Permanência Estudantil (PAPFE). Reconheço muitos dos méritos desse programa e entendo perfeitamente que toda política pública tem problemas quando a demanda é maior do que o orçamento. Ou, ainda, que toda política pública precisa ser acompanhada e avaliada constantemente com vistas a ser sempre aprimorada.
Como professora do curso de Gestão de Políticas Públicas, defendo que as políticas públicas, para terem êxito, envolvam seus e suas beneficiárias nos processos de formulação, implementação, avaliação, para encontrar o melhor modo para resolver os problemas que buscam solucionar. Não sou especialista na área de gestão — mas tento aprender com minhas e meus colegas sobre como fazer do melhor modo. Por isso, sei que as políticas públicas são processos complexos que não mudam o mundo da noite para o dia. Há que ter paciência, há que ter espaço para escuta, há que ter avaliações sistemáticas, há de haver vontade política e continuidade entre gestões para que seja possível, após um tempo, ver os resultados e as mudanças que foram promovidas com a criação de qualquer política pública.
Mas me pergunto por que um programa construído para promover a permanência de estudantes chama para si a ira deles? Alguma coisa não está funcionando e não estamos conseguindo entender o que é. Estamos falhando no trabalho de escuta mesmo quando nos abrimos para ouvir.
Tive a oportunidade de escutar estudantes do movimento estudantil da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, e percebi que há algo que acompanha as falas desses e dessas jovens. Algo sutil que não é verbalizado, mas que está lá, subliminar às falas deles, sem ser bradado nos protestos por mais auxílios e benefícios. Está lá nas entrelinhas. Uma demanda para a qual talvez não estejamos dando atenção: é a demanda por respeito. Eu presumi que nossos estudantes não estão se sentindo respeitadas, respeitados e respeitades. E não estou me excluindo quando digo que a escuta não tem se dado de modo respeitoso.
O que entendo, aqui, por respeito, não é a formalidade de agendar e comparecer a reuniões, não é a delicadeza ao ouvir, às vezes por horas, a fala de quem vem às reuniões representando a comunidade estudantil, não é a tentativa de negociar saídas para o problema. Tudo isso tem sido feito. Há um investimento da gestão em se reunir e ouvir a comunidade estudantil na tentativa de encontrar soluções. Isso é um fato.
Contudo, o que estou definindo por respeito é algo que se aproxima do que Axel Honneth chama de estima social. A estima social indica o quanto a comunidade valoriza e aprecia seus membros a ponto de investir para que sigam com o modo de vida que escolheram ou que podem ter/viver. Talvez, parte das demandas não verbalizadas de nossas e nossos estudantes diga respeito a isso: não se sentem suficientemente estimados pela Universidade a ponto de se tornarem prioridade para ela. E, a partir daí, seguem questionamentos de toda ordem para entender por que não são prioridade, já que até mesmo se criou uma nova Pró-Reitoria totalmente voltada à inclusão e ao sentimento de pertencimento.
Essa é uma questão complicada porque, de um lado, a USP apresenta os números que indicam o quanto tem sido investido na permanência estudantil. Por outro lado, estudantes dizem: “Isso não é suficiente, e o modo como o processo se dá não é satisfatório para nós”. O que não estamos conseguindo alcançar ou perceber nessa fala?
Eu estive, como representante de minha unidade, na reunião do Conselho de Inclusão e Pertencimento ocorrida em setembro de 2023, e algo me chamou a atenção de modo especial. Mais uma vez, algumas demandas de estudantes foram apresentadas (eu mesma li documento de alunas e alunos de minha unidade).
Em resposta, além dos números que evidenciam o investimento e o fluxo do trabalho que demonstram as diferentes etapas adotadas para que a política tenha sido implementada da melhor forma possível (e isso são fatos), ouvimos o quanto o programa tem sido elogiado dentro e fora do País, inclusive pela Universidade de Harvard, que mostrou enorme interesse por ele (e isso também é um fato).
Quem acompanha as questões em torno das ações afirmativas conhece o motivo do interesse de Harvard. Não vamos discutir isso aqui. A questão é: nossos e nossas alunas que são atendidos pelo PAPFE estão em Harvard? Quais as condições que têm para irem a Harvard? O que sabem sobre Harvard? Talvez saibam sobre como é morar na periferia, como é ter que sobreviver e estudar tendo como familiares pessoas que não possuem recursos para apoiar, financeiramente, seus filhos e filhas, sobre como é enfrentar discriminações e tentar, apesar disso, manter a firmeza e a autoestima necessárias para seguirem seus estudos, sobre o que é contar moedas para chegar ao final do mês sem passar fome, sobre o desespero de não conseguir encontrar onde morar com os valores que recebem para sua permanência (o possível a ser pago pela USP, mas, talvez, entendido como insuficiente para quem recebe). Então, talvez, e somente talvez, falte um pouco de estima quando se traz para uma discussão sobre PAPFE o apreço que Harvard tem por um programa que diz respeito a pessoas que, talvez (e somente talvez), nunca coloquem seus pés fora do Brasil.
Será que estaríamos voltando nossa atenção para o lugar errado? O PAPFE pode ser maravilhoso (eu acredito que seja), pode ser o maior programa de ações afirmativas já criado (também é um mérito incontestável), tem muitas qualidades (notáveis qualidades) e, como toda política pública, tem espaço para aperfeiçoamento. Ainda assim estamos falhando se as/os beneficiários do programa lutam contra ele.
Talvez o que nossas e nossos estudantes queiram (além das respostas às demandas concretas, objetivas e materiais verbalizadas) seja ouvir de nós (e ver tudo isso materializado em ações) o quando eles e elas são maravilhosos por estarem na USP tentando, do modo como sabem, permanecer aqui, na Universidade, hoje e agora. Não estão preocupados com Harvard, hoje. Mas o ideal não seria que o programa de permanência colocasse Harvard no horizonte desses estudantes? Contudo, hoje, tudo indica que Harvard esteja totalmente fora da perspectiva deles. Então, por que falar sobre algo que está fora de seus horizontes e não sobre algo que está dentro e colado ao dia a dia desses jovens?
Onde estamos errando?
Esta é a pergunta que, talvez, tenhamos que fazer às/aos nossos estudantes reiteradamente.
Sei que são muitos “talvez” para um texto tão curto. Mais uma vez, não me excluo do grupo de quem erra ou errou na escuta. E, talvez por isso, creio que a meta da gestão da permanência estudantil deva ser ouvir da comunidade uspiana o que seria necessário colocar em prática para que o PAPFE seja apreciado por eles e elas como o programa que mudou suas vidas, o programa sem o qual não teriam finalizado suas graduações e pós-graduações com a qualidade que alcançaram pelo PAPFE existir, o programa que sempre será motivo de orgulho e estima porque contribuiu para que eles e elas também aumentassem sua própria autoestima.
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