A ciência pela história, episódio 8 – Das catedrais góticas às grandes navegações

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 Publicado: 23/10/2024 às 19:50

A Idade Média não foi uma era dominada por trevas obscurantistas, pelo menos não mais do que outras épocas. Como já assinalado no episódio 7 dessa série, ao longo do milênio medieval houve uma série de inovações científicas e técnicas, com destaque para moinhos, forjas e catedrais. Destes, as catedrais góticas são as mais longevas, permanecendo em pé e ainda tendo basicamente as mesmas finalidades de antigamente.

Disseminadas pela Europa a partir do século 12, essas construções trouxeram para seu interior uma ampla iluminação, filtrada por vitrais nas janelas que a engenharia medieval conseguiu rasgar nas paredes sólidas cada vez mais altas. Esse uso da luz foi cativante, numa época em que o estudo das suas propriedades, da visão e das lentes progredia, graças aos resultados conseguidos pela aplicação de princípios racionais, que culminaram na óptica do cientista muçulmano Al-Hazen, bastante difundida na Europa a partir do século 11.

Mas, nesse contexto, poderia uma catedral sem teto abrigar um importante Concílio?

É isto que se perguntavam os indignados cidadãos florentinos no início do século 15, ao contemplarem sua catedral inacabada há mais de um século. Não se tratava de uma questão meramente financeira, afinal Florença era talvez a mais rica cidade da Europa, graças ao acúmulo de capitais gerados pelo comércio, especialmente de tecidos de lã e seda. Favorecida pelo acesso ao mar através do Rio Arno, juntamente com a prosperidade das casas bancárias, na capital da República de Florença floresciam as artes e o humanismo em geral, incluindo as atividades de artesãos e estudiosos.

Esse ambiente de valorização e aperfeiçoamento humano está associado a dois empreendimentos científicos e tecnológicos notáveis, produto de muitas mentes, catalisadas em Florença: a invenção da perspectiva e a construção da cúpula da catedral.

O aperfeiçoamento humano era tema de discussão da escolástica, a partir da concepção de Santo Agostinho, de que a mente é a imagem de Deus. Como afirmou o teólogo e “tecnólogo” Hugo de S. Vitor (século 12), o homem está destinado à perfeição, mas é incompleto e necessita se desenvolver, ajudado pela natureza, comandada pelo homem.

No plano religioso, essa discussão implicava o papel reservado a Cristo dentro da Trindade. Em 589, o 3º Concílio de Toledo definiu a igualdade de níveis dessa Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, expressando que o Espírito Santo provém igualmente do Pai e do Filho (Filioque, em latim). O conceito se disseminou com o Império Carolíngio, mas no século 11 o papa Leão III mandou suprimir da missa o canto do Filioque, que entretanto voltou a ser adotado em 1014. Desde a discordância de Fócio I de Constantinopla (1054), que levou à cisão da Igreja do Oriente (“ortodoxa”), a perfeição de um Cristo que também foi humano tem sido fonte permanente de conflitos teológicos e políticos.

No século 15 se discutia intensamente essa ideia: qual a natureza do homem, seria mesmo feito à imagem viva de Deus, portanto, passível de aperfeiçoamento, ou fadado sempre a se corromper?
Um elemento a favor dessa visão de aperfeiçoamento foi a resolução matemática da perspectiva chamada “legítima”, o problema milenar da representação geométrica das três dimensões espaciais no plano (que tem duas dimensões). Aos poucos foi se entendendo como chegar à solução, enunciada claramente por volta de 1425 pelo arquiteto e engenheiro florentino Filippo Brunelleschi (1377–1446), um representante da ascendente classe média.

O estabelecimento das leis da perspectiva auxiliou o planejamento dos grandes espaços urbanos, como as praças, que aos poucos embelezaram a cidade moderna a partir do Renascimento. O fato de se poder projetar com precisão um espaço antes de construi-lo foi um impulso poderoso à crescente racionalidade aplicada ao fazer humano. A pintura em perspectiva se presta à representação matemática do espaço, juntamente com outros campos da matematização na Idade Média, como a música, a contabilidade econômica, a cartografia.

Os conhecimentos matemáticos interligados com o saber prático fizeram com que a perspectiva fosse logo aplicada por artistas plásticos associados ao círculo florentino. É o que se deu na escultura com Donatello, nos altos-relevos da Basílica de Santo Antônio, em Pádua, e também com Masaccio, no famoso afresco da Santíssima Trindade na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença. Esta pintura (a Trindade) foi a primeira em perspectiva “exata” e as linhas de fuga para Deus Pai passam pelo corpo de Cristo, validando o Filioque.

Pode-se avaliar a importância do uso cada vez mais intenso da perspectiva, capaz de exercer ao mesmo tempo uma crítica dos sentidos – a visão não é o que “parece” a uma simples apreensão do olhar, mas se presta a uma reinterpretação da realidade. A ousadia desse enfoque está bem representada no romance recente de Orhan Pamuk, Meu nome é vermelho, que se passa na Istambul do século 16, onde a tradição rejeita a perspectiva exata.

Se a representação em perspectiva foi bem aceita pela igreja cristã da Europa Ocidental, a unidade religiosa continuava em disputa na política do início do século 15. Além do cisma da Igreja do Oriente havia a cizânia ocidental dos antipapas sediados em Avignon (1378-1449), e em ambos os casos pesava fortemente a posição contra Roma dos que não adotavam o Filioque. O Concílio Ecumênico de Florença foi convocado para tentar uma reunificação, discutindo esta e outras questões. Mas para a realização do Concílio o grande desafio era acabar a construção da catedral florentina.

É nesse contexto de desafios políticos e técnicos que, após tanto tempo de espera, deve ser situada a questão da construção da cúpula da Catedral de Santa Maria dei Fiori. A igreja tinha começado a ser construída em 1294, tendo-se decidido em 1368 a favor de uma base octogonal para a cúpula, a ser erigida sobre as altas paredes inacabadas, dificultando sobremaneira a execução do projeto. Observe-se ainda que os cidadãos florentinos não queriam “enfear” sua construção com arcobotantes, estruturas externas usadas em outras catedrais europeias para ajudar as altas paredes a não tombarem. Isto, porém, aumentava o risco de colapso, pois abóbadas ambiciosas já haviam ruído, como ocorrera em Portugal no mosteiro da Batalha, em 1401 – objeto de A abóboda, de Alexandre Herculano.

Frente à iminência de convocar o Concílio, em 1407 uma conferência florentina de construtores resolveu propor um concurso, que acabou sendo anulado. Um segundo concurso em 1418 reuniu 20 concorrentes, e consagrou vencedor o já citado Filippo Brunelleschi, que além dos planos, apresentou um modelo tridimensional em escala reduzida. Houve contestação técnica por parte do segundo colocado, Lorenzo Ghiberti, que não cessou durante toda a construção, de 1420 até 1436, alegando que a cúpula iria cair.

Um primeiro desafio a vencer para a construção era de natureza ecológica. A febre por toda a Europa de catedrais cada vez mais altas levou ao esgotamento da madeira de lei disponível, como o carvalho. Era a matéria-prima das grandes formas e sustentações necessárias para a edificação, exposta às intempéries durante muitos anos de construção. Estradas eram inadequadas e o transporte tinha de ser por via aquática, acarretando que trazer madeira de florestas distantes resultava em custos insuportáveis.

Esse fator foi primordial para favorecer a proposta de Brunelleschi, que foi a única que não usava formas de madeira. Ademais, ele apresentou diversas inovações técnicas que apoiaram sua solução para a cúpula, podendo-se citar entre elas:

• a utilização de uma abóboda dupla, representada por duas “cascas”, uma externa e outra interna, intertravadas e com um espaço vazio no meio;
• anéis de reforço, inclusive uma “corrente” de grossas vigas de madeira, colocada em toda a volta no espaço entre as cascas e interligada às mesmas;
• tijolos especialmente construídos e assentados em forma de “espinhas de peixe”, que ajudaram a fixar a forma do domo, que se aproxima da rotação de uma “catenária” em torno do eixo vertical – catenária é a curva formada por gravidade em uma corrente ou corda, suspensa no ar e presa em suas extremidades.

Havia, adicionalmente, uma exigência no concurso para que o programa arquitetônico adotado para a abóboda mantivesse a forma octogonal da base, e tivesse uma forma pontuda. Se a cúpula fosse esférica (como fez Michelangelo para a Basílica de São Pedro em Roma), haveria economia de material, mas a ogiva pontuda permite enxergar a parte superior da abóboda a partir das ruas de Florença, o que não aconteceria se esta fosse esférica.

Não existia ainda teoria dos esforços em estruturas, mas Brunelleschi sabia onde estariam os dois pontos críticos da construção:

i) onde a inclinação tenderia a produzir escorregamento dos tijolos;
ii) altura em que a tensão de ruptura da cúpula seria máxima, pois foi onde ele colocou o reforço da “corrente” de madeira. O cálculo pela engenharia moderna confirma que a cúpula é estável e, provavelmente, Brunelleschi testou vários modelos em escala até a ruptura. Seu projeto tem um coeficiente de segurança alto, mas não exagerado, e o uso feito pelo arquiteto de ensaio em modelos reforçou a tendência de investigação experimental da natureza já praticada durante a Idade Média nos mosteiros franciscanos e cistercienses, preparando o experimentalismo da ciência moderna.

A Catedral de Santa Maria das Flores foi finalmente inaugurada em 1436 por Eugênio IV com o belo moteto do compositor Guillaume Dufay, Nuper Rosarum Flores, referenciando as guirlandas de rosas oferecidas por aquele papa. As dimensões enormes da cúpula são impressionantes, com cerca de 46 metros de diâmetro externo na base e uma altura de 32 metros desde a base octogonal superior, num total de noventa metros a partir do piso – uma altura equivalente a um prédio de 36 andares. O sucesso assombrou não somente os cidadãos florentinos, mas todos os representantes da Europa reunidos no Concílio de Florença (1439-45). As discussões durante a reunião foram teológicas, mas também filosóficas e científicas. Por exemplo, Gemistos Plethon, da delegação grega, fez na catedral uma série de conferências sobre a obra antiga do geógrafo Estrabão.

No topo do domo foi ainda assentado posteriormente um lanternim, um piso com abertura de iluminação para o interior da catedral, também projeto de Brunelleschi. Subindo-se ao lanternim e passando entre as relativamente finas e elegantes cascas da abóbada, descortina-se um amplo panorama na paisagem, com as suaves colinas toscanas em volta. No lanternim se cruzam as “linhas de fuga” da abóboda, por onde passa a luz que ilumina o interior – aproximando metafórica e fisicamente o espectador do céu.

Desconhecemos muitos nomes de construtores de catedrais medievais, com a exceção notável de Villard de Honnecourt (século 13), que nos deixou seu Caderno. No caso de Brunelleschi, seu projeto, pelo contrário, se encontra preservado, inclusive seu modelo em escala, e o túmulo do arquiteto teve a honraria de estar na própria catedral.

Algumas catedrais góticas tiveram uma função não usual, a de observatórios astronômicos. Graças à sua altura e extensão, a passagem da luz pela cúpula ao se projetar no piso permitia marcações precisas de efemérides celestes. Em 1474 o astrônomo e cartógrafo Paolo Toscanelli instalou um relógio de sol no lanternim da Catedral de Florença, com o qual fez observações, e ainda hoje existe uma marca sua correspondendo ao solstício de verão. Toscanelli manteve uma longa correspondência com os portugueses e forneceu informações sobre o tamanho da Terra a Cristóvão Colombo. Em 1492 decorre a viagem deste à América, uma continuidade do avanço tecno-científico e econômico acumulado no século 15, em um nexo de longa duração entre as catedrais e as grandes navegações.

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