A ciência pela história, episódio 6 – Um computador da Antiguidade

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 26/08/2024 - Publicado há 3 meses

O que estaria fazendo um computador num navio naufragado há mais de dois mil anos no Mediterrâneo?

A resposta tem a ver com a astronomia, uma das ciências mais antigas que conhecemos. Os homens desde a pré-história observam o céu e fazem construções tentando compreender os movimentos e regularidades dos corpos celestes e a sua relação com o ambiente terrestre. Os conhecimentos científicos assim adquiridos permitiram buscar explicações para a existência humana no Cosmos e impulsionaram o avanço da filosofia.

No ano de 1900, pescadores de esponjas marinha encontraram um navio antigo naufragado perto da costa da pequena ilha grega de Anticítera (Antikythera, entre o Sul da Grécia continental e Creta), do qual retiraram muitos objetos, principalmente estatuetas de bronze e mármore, vasos de vidro e prata. Havia algo, entretanto, que se revelou muito valioso para a história da ciência e da cultura: fragmentos de um mecanismo misterioso.

O historiador da ciência norte-americano Derek de Solla Price estudou detalhadamente esse mecanismo a partir da década de 1950 e sugeriu que teria sido construído na época do naufrágio, estimado no ano de 87 a.C. Concluiu que se tratava de um instrumento astronômico muito sofisticado, destinado a reproduzir e prever uma grande quantidade de movimentos celestes. O instrumento podia ser acondicionado numa caixa de madeira de tamanho reduzido, com mais ou menos 30 cm de altura e uma base de 12 cm por 12 cm. Esta caixa tinha dois lados opostos com mostradores associados ao calendário, ao Sol, à Lua e a planetas. A data de sua fabricação permanece controversa: outros estudos sugerem uma construção mais remota, entre os séculos 4 e 1 a.C.

Uma das possibilidades aventadas para uso desse instrumento e hoje considerada pouco provável é o de que seria uma espécie de computador de bordo, capaz de dar informações de calendário, meteorológicas e de navegação – inclusive latitude e longitude. Naturalmente, se trata de um computador analógico mecânico, cujo funcionamento é muito diferente dos modernos computadores digitais. O cálculo aproximado da longitude podia ser feito em conjunto com a movimentação da Lua, conforme método descrito pelo astrônomo Hiparco de Niceia (190-120 a.C.). Embora pudesse ser utilizado a bordo, a maioria dos cálculos teria pouca relevância para as navegações de então.

Foi verificado que o mecanismo calcula a posição do Sol, da Lua em suas fases, e prediz com grande exatidão eclipses solares e lunares. Possui diversos calendários, alguns baseados em períodos complexos, como o ciclo lunisolar de 19 anos (mais tarde relacionado com o cálculo da Páscoa cristã), bem como outros ciclos conhecidos já desde a astronomia babilônica. A aplicação mais sugerida para o mecanismo tem sido o de calcular esses eventos e outros que eram importantes na vida política e cultural da Grécia, como as Olimpíadas.

A controvérsia que envolve a função principal do instrumento vem sendo discutida ao longo de mais de um século. De toda forma, seja como um computador analógico e calendário, seja como uma espécie de planetário portátil, evidencia-se que seria um mecanismo que traduzia uma teoria bastante elaborada. A mecânica grega e o desenvolvimento da astronomia e da matemática a ela associadas esperaram séculos para que a complexidade desse instrumento fosse gradualmente igualada, primeiro pelos árabes e depois pelos europeus. Fragmentos de astrolábios islâmicos do século VI d.C., com engrenagens internas e mostruários de horários conforme a localidade (era possível ajuste para 16 localidades no Mediterrâneo), podem indicar uma ponte entre artefatos helênicos como o de Anticítera e outros posteriores.

A construção de instrumentos foi essencial para o preparo dos empreendimentos ligados às Grandes Navegações a partir da Península Ibérica, com seus impactos na filosofia e na visão de mundo e que, a partir do Renascimento, retomaram uma longa linhagem de navegações e descobertas feitas no mundo antigo.

Para o cálculo de tantas efemérides celestes no mecanismo de Anticítera, foi preciso mais do que a tarefa relativamente simples de multiplicar ou dividir proporções; foram construídas engrenagens excêntricas que permitem somar ou subtrair proporções, como é necessário para conseguir modelar um movimento variável e anômalo como o da Lua. De acordo com leis astronômicas explicitadas por Kepler séculos mais tarde, quando a Lua se afasta ou aproxima da Terra, sua velocidade varia, resultando em anomalias de posição no céu visto por nós, posições certamente conhecidas pelos gregos antigos como decorrência de inúmeras observações cuidadosas.

Conjectura-se que esse mesmo tipo de engrenagem servia também para calcular os movimentos dos cinco planetas conhecidos na Antiguidade. De uma maneira geral, a estrutura lógica e matemática com que foram concebidas e interligadas essas engrenagens no mecanismo de Anticítera resulta num modelo de funcionamento bastante ergonômico e compacto. O mecanismo tem sua estrutura e funcionamento explicados por meio da adesão ao modelo de Hiparco, que é geocêntrico, apoiado em epiciclos e deferentes, opondo-se ao sistema heliocêntrico que havia sido aperfeiçoado por Aristarco de Samos (século 3 a.C.).

O conhecimento avançado alcançado na época da Grécia Antiga poderia permitir o grau de detalhe suposto para o funcionamento do aparelho, juntamente com o domínio da metalurgia e da mecânica fina aplicada, concretizada na forma de engrenagens diversas, com dentes e eixos de bronze fabricados com bastante precisão.

Quem teriam sido os inventores do mecanismo? A história das ciências tem apontado que não costuma existir nenhum invento isolado, pois uma invenção resulta sempre de um resultado cumulativo de inovações e aperfeiçoamentos do que existia anteriormente. É possível que o mecanismo de Anticítera seja um amálgama de vários artefatos construídos ao longo de séculos, traduzindo registros de milênios de observações em astronomia de posição, incluindo resultados das civilizações antigas da Suméria, Babilônia, Caldeia, Egito – e, talvez, do Extremo Oriente, dados os intercâmbios culturais frequentes por meio da Rota da Seda. Cientistas com um alto nível de conhecimento teórico e prático, tais como Arquimedes (287-212 a.C.), o já referido Hiparco e Posidônio (135-51 a.C.) poderiam ter sido construtores desse instrumento. Arquimedes possuía uma caixa com diversos instrumentos e modelos astronômicos, levados para Roma após a sua morte trágica e a conquista de Siracusa em 212 a.C.

Desde 2005, um projeto internacional centrado no mecanismo de Anticítera tem avançado com novas pesquisas a partir de mais alguns fragmentos descobertos posteriormente ao naufrágio. Restam ainda muitas controvérsias sobre sua origem e dúvidas a respeito da decifração dos fragmentos, em meio a progressos neste sentido propiciados por equipes multidisciplinares. O uso de técnicas modernas, como a tomografia computadorizada, permitiu uma reconstrução em escala exata do instrumento. Há na internet diversos vídeos mostrando o seu funcionamento.

A pesquisadora brasileira Beatriz Bandeira faz parte dessa rede internacional e doou em junho de 2017 uma réplica estática do mecanismo de Anticítera, por ela construída, ao Museu Catavento, em São Paulo, por intermédio do Centro de História da Ciência da USP. A história das ciências pode ser uma oportunidade para incentivar crianças, jovens e adultos a questionar sobre o céu que nos envolve, refletindo sobre o passado e o presente. As propriedades do instrumento ligadas à astronomia, matemática e técnica podem ser trabalhadas de forma lúdica num contexto histórico.

As gerações atuais crescem utilizando equipamentos poderosos com base na computação digital, mas não fazem a menor ideia do funcionamento interno que lhes permite operar. Hoje as informações que o mecanismo de Anticítera fornece estão disponíveis na internet, mas não são por isso mais bem compreendidas em sua essência. O estudo de um computador analógico modelado pela movimentação dos astros, como o de Anticítera, é, portanto, valioso para despertar a conscientização em torno de como foi possível elaborar um instrumento cuja história não pertence exclusivamente ao domínio da ciência eurocêntrica, revelador de um conhecimento que é patrimônio de toda a humanidade.
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