A ciência pela história, episódio 1: Açúcar, colonialismo, política e cores

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 01/03/2024 - Publicado há 9 meses     Atualizado: 04/03/2024 às 19:16

A ciência e a política são realmente separáveis?

Esta pergunta surge a respeito de François Arago (1786-1853), que desenvolveu pesquisas marcantes em eletromagnetismo, óptica, astronomia, meteorologia e geografia física, mas do qual atualmente pouco se fala. Arago se formou em 1805 na Escola Politécnica de Paris e foi durante meio século o interlocutor privilegiado pelos cientistas franceses e estrangeiros que se dirigiam à Academia de Ciências de Paris, na qualidade de seu secretário perpétuo. Dentre outras destaca-se sua interação e amizade com Alexander von Humboldt, Augustin Fresnel e André-Marie Ampère.

A vida científica de Arago foi cercada por conflitos, confirmando que a ciência só avança quando há controvérsias. Entre as batalhas que travou, avultam aquelas relacionadas com a óptica, o que não é de admirar, pois a luz e as cores são temas que despertam paixões desde a Antiguidade, e suas controvérsias avançam pelos dias de hoje. A complexidade da luz se enquadra na observação de Da Vinci: “Observe a luz e considere sua beleza. Pisque tua vista e olhe. O que vês não estava lá e aquilo que estava não mais existe.” Na época de Arago, o estudo da luz pela ciência se mesclava com a metáfora do Iluminismo, simbolizando o avanço de ideias desde o século 18.

Mencionar conflitos na carreira de Arago é recordar a intensa rivalidade com seu colega mais velho, o importante cientista Jean-Baptiste Biot (1774-1862), também ex-aluno da Politécnica.

Na primeira metade do século 19, havia dois campos antagônicos na ciência francesa: o dominante, de seguidores do inglês Isaac Newton, liderados por Pierre-Simon Laplace e onde se colocou Biot; e o dos adeptos da ciência continental, herdeiros do pensamento de Christian Huygens e Gottfried Leibniz – que atraiu Arago.

No entanto, no início de suas carreiras, Arago e Biot foram companheiros em um projeto relevante para a reputação da França pós-revolucionária. O novo sistema decimal de medidas adotado pela Convenção Nacional incluía o metro, definido como a décima milionésima parte da circunferência da Terra, medida em um meridiano. Tinha havido um erro na medição durante o período revolucionário, e o Bureau de Longitudes encarregou em 1805 os dois politécnicos de refazer as medidas, com sucesso. Isto ocorreu durante a expansão napoleônica, mas Arago acabou preso na Espanha, confundido com um espião ao usar instrumentos geodésicos e acender fogos de visualização para Biot.

Ao ser libertado e voltar em 1809 a Paris, Arago sucedeu Gaspard Monge como professor na Escola Politécnica e durante décadas deu aulas não só para alunos de engenharia, mas também de astronomia no Observatório de Paris para um público leigo. Em suas funções na Academia de Ciências, embora oficialmente neutro, Arago fortaleceu os anti-newtonianos, especialmente quando Fresnel se apresentou com uma poderosa teoria ondulatória da luz, baseada em Huygens e se opondo fortemente à teoria de Newton de “partículas” luminosas, o que redundou na vitória de Fresnel. Em 1811, Arago por sua vez havia dado um passo importante na óptica, ao construir seu polarímetro, um tubo em que um arranjo de espelhos e do material interposto podia revelar propriedades da luz polarizada, fenômeno recentemente descoberto. Com seu instrumento foi possível amplo leque de pesquisas, tais como diferenciar se a luz fora emitida por superfícies sólidas, líquidas ou gasosas (como a coroa solar). Logo depois, Biot criou uma versão do seu próprio polarímetro, mas a diferença era menos técnica do que de intepretação: para Biot a luz era corpúsculo, para Arago, uma onda. Ambos queriam medir cores: o que é “azul”?

A polêmica sobre a natureza da luz se projetava na teoria das cores. Adotar um padrão para medir e definir cores implicava em tomar partido entre duas correntes, a teoria das cores de Newton, em oposição àquela de Wolfgang Goethe. A partir das pesquisas científicas, a combinação das cores se tornou objeto de vívida disputa entre artistas, como atestado pelas observações do pintor Eugène Delacroix em suas anotações de 1832, e posteriormente dominou o debate pictórico deflagrado pelo movimento impressionista.

Depois da revolução burguesa de 1830, Arago foi cada vez mais levado para a política. Como deputado seguidamente reeleito, defendeu a educação popular, a liberdade de imprensa e a aplicação da ciência para o progresso tecnológico, enfatizando a construção de canais para navegação fluvial, motores a vapor, ferrovias, telegrafia elétrica e fotografia. Arago pregava maior autonomia para os trabalhadores e a diminuição do abismo econômico que separava opressores de oprimidos. Em um manuscrito arquivado na Biblioteca Dibner do Instituto Smithsonian, Arago condena a exploração da classe trabalhadora, cujo salário era ínfimo para a época, de oito a 10 cêntimos por dia. Biot, por outro lado, tinha uma posição em geral favorável ao mercantilismo e liberalismo econômico, apoiando um governo colonial centralizado e a necessidade de manter os trabalhadores sob rígido controle. O debate travado entre eles tratava, no fundo, do problema da liberdade e de como se define de forma transparente o que é ser livre, questão filosófica e política que se tinha tornado cada vez mais aguda após a Revolução de 1789.

Com o acirramento dos conflitos entre trabalhadores e a burguesia, evidenciado na revolução de 1848, Arago se tornou ministro e presidente do Comitê Executivo, tendo assinado a abolição da escravatura nas colônias francesas. Devido às dificuldades comerciais decorrentes das guerras de expansão imperial napoleônica, o açúcar se tornou uma mercadoria escassa nas mesas da França. Napoleão tentou a substituição do açúcar de cana pelo de beterraba, mas esta indústria praticamente sucumbiu após sua queda em 1814. Os produtores franceses de açúcar conseguiram manter rentáveis as importações de suas colônias sobretaxando fortemente o açúcar barato que vinha do Brasil e da Índia.

Uma dificuldade especial, no entanto, era garantir a qualidade do açúcar depois de refinado, pois vinha misturado em grande proporção com melado, e isto definia o preço, conforme contado pela historiadora norte-americana da ciência, Theresa Levit, em The Shadow of Englightenment. A solução para o problema foi exatamente o uso do polarímetro de Arago e Biot, pois a rotação do plano da luz polarizada que era refletida pelo açúcar refinado permitiu criar a partir de 1832 uma escala que podia indicar com precisão a densidade e, portanto, o grau de pureza do açúcar cristalizado.

Tanto a política acadêmica quanto a social se entrelaçam com a ciência.

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