7 de Setembro: o Museu do Ipiranga e a reconstrução da democracia

Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 05/09/2022 - Publicado há 2 anos

O Museu do Ipiranga reabre e vamos voltar a visitá-lo. A USP investiu muito na sua restauração. Saber, conhecimento, cultura e história foram investidos na recuperação e ampliação do museu. Devemos em grande parte à sabedoria do ministro Rouanet- cuja memória seja louvada- a legislação que legou parte do valor e apoio à cultura. Os que odeiam a cultura tentaram, capitaneados pelo secretário da “incultura” do governo federal, boicotar a restauração do Museu do Ipiranga e ainda proibir que a USP inaugurasse obra desse vulto! Os jornais noticiavam ameaças do governo federal, por meses, procurando boicotar a inauguração do museu e querendo transformá-la num ato partidário eleitoral. Num gesto de grandeza, para evitar destruir a bela festa cívica do patrimônio brasileiro, antecipou-se a inauguração para o dia 6 de setembro. Concordo que não se queira empalidecer a festa, mas lamento que nos tenham “sequestrado” (na expressão de Lilian Schwarz) o dia 7 de setembro, privando-nos de usufruir e convidar todo o povo de São Paulo e do Brasil para essa festa de cultura, de povos, de história. Festejar o 7 de Setembro trazendo alunos de escolas públicas para conhecê-lo foi uma democrática solução.

Mas esse gesto precisa instaurar um novo recomeço. Talvez me acusem de ser nostálgica ao lembrar que não faz tanto tempo quando nossas escolas desfilavam pelo Anhangabaú no 7 de Setembro. E que comemorávamos trazendo centenas de estudantes para fazer ginastica artística no Pacaembu. Nada semelhante aos desfiles de tipo hollywoodiano que algumas escolas hoje imitam. Vestíamos nosso uniforme habitual e essa roupa nos irmanava ricas e pobres. O 7 de Setembro era uma data de liberdade, alegria, encontro com outras escolas, públicas e privadas, moças e rapazes. Andávamos pela rua, um dia de liberdade. A cidade era nossa.

E quem eram os alunos e alunas dessas escolas? Tomemos uma delas, pública, localizada no Parque Dom Pedro, perto do Brás. Filhas de brasileiros migrantes e de imigrantes, a cor da pele variava conforme múltipla origem. Uma se dizia orgulhosa descendente de Fernão Dias! Outra tinha um tio músico, profissão nada comum na época; um pai era feirante, as irmãs de outra eram operárias, meu pai, comerciante. Vínhamos de vários bairros, morávamos longe ou perto da escola, em casa, vila ou cortiço. Tínhamos em comum “nossa” escola, era um orgulho estar nela, sentíamos o privilégio de pertencer. Apontávamos mil defeitos, mas sabíamos que era uma das melhores de São Paulo como nos diziam e acreditávamos! Nosso uniforme nos irmanava. O 7 de Setembro era uma data de liberdade, andávamos pela rua como estudantes. Tenho certeza de que aqueles que hoje destroem o espaço de uma escola estão na verdade manifestando o desejo oculto de serem acolhidos por ela (mas essa questão fica para um próximo texto).

O Museu do Ipiranga também tinha um outro significado que encontro ao observar fotos de lazer de imigrantes, especialmente de judeus. Vejo-os visitando dois lugares em particular: o Jardim da Luz e o Museu do Ipiranga. Alguns posavam na frente do monumento, com suas roupas caprichadas, e mandavam as fotos para os parentes e amigos que não tinham imigrado para o Brasil. Perdi a chance de lhes perguntar por que iam ao Museu do Ipiranga. Não foi o caso do Jardim da Luz. Lá, me contaram que iam para usufruir a liberdade que não dispunham na maioria dos países da Europa antissemita. Era extraordinário viver num país que liberou os bancos dos jardins para todos, antes proibidos aos “cães e judeus”.

A liberdade que buscaram quando vieram para o Brasil está simbolizada nas fotos posadas nos jardins e na frente do Museu do Ipiranga. Para cada um de nós, o 7 de Setembro, o Museu do Ipiranga, trazem diversas memórias: a Independência, o significado da liberdade e a certeza de que estudamos, trabalhamos, educamos, ensinamos pensando na Democracia. Hoje precisamos banir o autoritarismo e reinaugurar o Museu do Ipiranga dotando-o da certeza da reconstrução democrática no País.

Agradeço a Olivia Blay de Castro Abreu os comentários a este texto.


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