O clube da luta – Sheik dos Bitcoins, Safadão e Marçal

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 10/10/2024 - Publicado há 1 mês

Finalizado o primeiro turno da histórica eleição paulistana, Pablo Marçal deve seguir trocando agressões e sopapos com outros adversários. Fora do segundo turno, em dezembro deste ano, disse que vai participar de uma luta de boxe ao vivo, com ringue, luvas, gongo, plateia e transmissão pela tevê. Segundo afirmou em um vídeo no site da Fight Music Show, Marçal pretende brigar com o boxeador baiano Acelino Popó de Freitas, na sexta edição do evento. O anúncio foi feito em julho, antes de ele se tornar o furacão eleitoral que deixou todos atônitos. “Eu vou lutar. Vou virar um boxeador em seis meses”, prometeu.

Por que continuar falando de Marçal e do circo dos influenciadores digitais? Por que não o deixar escanteado em seu limbo pop, milionário e virtual? Arrisco dois motivos que justificam escrever sobre o tema: primeiro, porque ainda falta entender como Marçal foi capaz de seduzir um terço do eleitorado paulistano; e, segundo, porque o mundo de onde ele veio revela-se cada vez mais influente e real. Vivemos um cotidiano apressado, focado no presente, que leva muitos a verem a vida como uma disputa acirrada em que vence o mais forte e rico, mesmo trapaceando. Marçal parece ser visto como um guia para ajudar a sobreviver nessa selva.

O clube da luta formado por celebridades, influenciadores, lutadores de MMA e artistas é um microcosmo dessa cultura masculina e competitiva da qual Marçal faz parte. Sua história ajuda a entender um pouco do contexto cultural e dos valores pelos quais ele e muitos de seus semelhantes são festejados.

O Fight Music Show foi idealizado pelo coach e empresário paranaense Mamá Brito, faixa preta de jiu-jítsu, dono de academias e vendedor de cursos motivacionais, que ganhou fama como treinador de dois lutadores famosos de MMA, seus primos Rodrigo Minotauro e Rogério Minotouro.

A ideia de criar o evento surgiu em um momento difícil da vida do empresário. Em dezembro de 2021, Mamá e mais 15 mil clientes estavam preocupados porque a Rental Coins, empresa que dizia negociar criptomoedas e pagar juros bem acima do mercado, tinha começado a atrasar os pagamentos. Eram os primeiros sinais de que a pirâmide financeira que movimentou R$ 4 bilhões começava a ruir, o que significava prejuízos pesados aos seus investidores.

À frente dessa fraude financeira estava Francisley Valdevino da Silva, conhecido como o Sheik dos Bitcoins, visto como bom-moço, religioso, abençoado pelo Espírito Santo, empreendedor bem-sucedido, amigo de celebridades e influenciadores, com quem aparecia festejando nas redes sociais. Mamá também era amigo do Sheik. Montou uma empresa chamada Holly Spirit, que havia ajudado a captar R$ 5 milhões para a pirâmide da Rental Coins. Parte desses recursos, R$ 1,3 milhão, tinha sido investida pelo próprio Mamá e por seus familiares – pai, esposa, Clemilda Thomé, e os dois primos.

A ideia de produzir a luta entre celebridades começou a sair do papel no mês em que os primeiros sinais dos calotes da pirâmide começaram a aparecer. Algumas pessoas não conseguiam mais sacar seus investimentos da Rental Coins. Antes que o esquema desmoronasse de vez, Mamá propôs a criação do Fight Music Show para Francisley.

Ele tinha visto um evento semelhante em Dubai, nos Emirados Árabes. O modelo de negócio consistia em colocar celebridades para lutar e depois ganhar dinheiro com a criação de NFTs com imagens dos lutadores – NFTs são tokens digitais que se tornam criptoativos e podem ser negociados no mercado financeiro.

Era preciso, no entanto, muito dinheiro e articulação para tirar a empreitada do papel em menos de um mês. Francis, mesmo com sua pirâmide desmoronando, topou entrar na parada e bancar o projeto com uma de suas empresas, a BlocPlace.

Além de dar o dinheiro para a produção, o Sheik dos Bitcoins acionou seu poderoso networking de celebridades, uma irmandade de homens brutos, ricos e famosos, que ajudam uns aos outros a enriquecer. Um dos participantes foi Wesley Safadão, cantor que tinha investido perto de R$ 10 milhões na pirâmide e foi chamado para fazer um dos shows do evento.

Depois que a pirâmide quebrou, Francisley parecia preocupado em ajudar os brothers, enquanto os demais clientes sofriam com suas perdas. Safadão, por exemplo, trava uma disputa judicial com as vítimas da pirâmide porque recebeu de Francis, em 2023, um avião como forma de pagamento de sua dívida com a Rental Coins. A suspeita era de que a Fight Music Show tinha sido criada com o mesmo propósito: reduzir os prejuízos da irmandade de homens fortes que tinha amargado prejuízos na pirâmide.

Foi chamado para fazer parte do evento o boxeador Popó de Freitas, que também era adepto dos investimentos em criptomoedas e foi vítima de golpe. Na época, Popó investia na Braiscompany, uma empresa de Campina Grande, na Paraíba, que enganava seus clientes da mesma maneira que Francis, oferecendo juros irreais para aluguel de bitcoins.

A primeira luta de Popó no Fight Music Show ocorreu em janeiro de 2022. Meses depois, a Braiscompany deu sinais de que iria quebrar. Popó tinha R$ 1,2 milhão investidos da empresa e sua mãe, perto de R$ 100 mil. Mesmo depois de ter sido vítima da Brascompany, Popó continuou anunciando oportunidades de investimento em cripto em suas redes sociais.

O adversário de Popó foi Whindersson Nunes, um dos maiores influenciadores digitais brasileiros. Francisley tinha contato com a agência de Whindersson, a Non Stop, cujo proprietário, Janguiê Diniz, estimava ter perdido R$ 25 milhões na Rental Coins. O Fight Music Show teria ainda a participação de outro agenciado da Non Stop, o comediante Tirulipa, filho de Tiririca, que foi o apresentador das lutas.

Francisley se tornou o principal financiador do Clube da Luta idealizado por Mamá, que aconteceu no Balneário Camboriú e foi transmitida pelo canal Combate, da Globoplay. Chamado para depor na CPI das Pirâmides Financeiras do Congresso Nacional, Mamá negou que a primeira edição do evento tenha dado lucro. Disse aos deputados que ficou no vermelho e que a luta não faturou mais do que R$ 3 milhões. Matéria do jornal Valor Econômico, contudo, informou que Whindersson e Popó receberam, cada um, R$ 12 milhões de cachê e que o evento tinha faturado cerca de R$ 25 milhões.

Na CPI, Mamá contou ainda que, por causa do baixo rendimento do evento e dos prejuízos que teve na pirâmide de Francisley, acabou ganhando de presente a marca Fight Music Show do Sheik dos Bitcoins. Desde então, outras edições foram feitas, com igual sucesso e repercussão. No dia 12 de outubro, ocorre a quinta etapa. Popó luta com o boxeador argentino Jorge El Chino. Celebridades como MC Livinho e Nego do Borel travam outros combates. Em dezembro, caso mantenha a promessa, será a vez do virtual candidato a presidente em 2026, Pablo Marçal.

“Alguns franqueados que captavam clientes para o Francisley acabaram ficando com dívidas enormes e formaram uma associação. Em uma nota disponibilizada pelo Instagram, a associação manifestou descontentamento com o fato de que não estavam recebendo desde outubro de 2021, mas ainda assim Francis injetava recursos na FMS”, afirma o advogado Bernardo Regueira Campos, que representa a maior fatia de credores da Rental Coins.

A história é curiosa e ajuda a compreender mais o mundo de Pablo Marçal. Ele emerge dessa irmandade de machos-alfas, que sabe dialogar com paixões ainda desconhecidas em um mundo em crise, marcado pela crise do emprego e das identidades masculinas.

A força de sua aparição em 2024 teve elementos parecidos com a de Jair Bolsonaro e dialoga com o sucesso da direita e da extrema direita no Brasil. A mensagem de Marçal e dessa trupe levou para a política o discurso da guerra do bem contra o mal; arregimentaram soldados oferecendo propósitos de luta com ajuda das redes sociais e associaram a imagem da esquerda a inimigos a serem vencidos.

O coach, no entanto, trouxe novidades relevantes em seu discurso: os indivíduos – mais do que as instituições (polícias, forças armadas ou igrejas) – assumiriam o protagonismo dessa luta, como se a vida fosse um ringue em que cada pessoa precisa assumir a responsabilidade pela própria vitória, acreditando em seu potencial e reprogramando a própria mente para alcançar o sucesso.

A vitória no combate, nesse caso, pode ser mais importante do que respeitar as regras, já que a sobrevivência está em jogo. E na cidade de São Paulo, dinheiro é oxigênio. Pode ser a diferença entre a vida e a morte, o respeito e a humilhação, entre conduzir e ser conduzido. Um discurso que associa essa liberdade com dinheiro no bolso. Ter dinheiro significa ter poder, dominar em vez de ser dominado. Na visão realista e cínica de Marçal e dos seus parças, vencem os mais ricos ou com mais apetite para ganhar dinheiro, mesmo quando trapaceiam.

Golpes baixos, afinal, fazem parte do jogo. Pode ser um gol de mão, uma simulação de falta para cavar o pênalti ou uma pirâmide financeira que gera riqueza até quebrar. Melhor errar e seguir ganhando e faturando, mesmo que depois tenha que pagar uma multa, do que se omitir e não ganhar, como ele ensina ele em seu curso “Como deixar de ser bonzinho”. É a mentalidade do jogador.

Não é à toa que os seguidores de Marçal e de personalidades empreendedoras e agressivas, como Elon Musk e Donald Trump, são o público-alvo de casas de apostas como as do Jogo do Tigrinho e dos cassinos on-line, que usam hashtags com o nome deles para propagandear seus negócios. Foi o que mostrou uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP.

São pessoas práticas, motivadas por um forte instinto de sobrevivência, dispostas a travar uma luta diária por dinheiro, trabalhando como uber, entregador de comidas, apostador esportivo, jogador profissional e até golpista ou estelionatário – crime que mais cresce no Brasil. Esqueça o Estado e as políticas públicas. É preciso acreditar na própria força e ousadia individuais, como se a vida fosse um ringue gigante, em que só os mais ricos sobrevivem.

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