O assassinato de Marielle e a polícia sob o comando de Tarcísio

Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

 09/08/2023 - Publicado há 1 ano

Existem pontos em comum nos assassinatos da vereadora Marielle Franco, ocorrido em março de 2018, no Rio de Janeiro, e do policial da Rota Patrick Bastos Reis, morto no final de julho, no Guarujá. Ambos são tragédias que transcenderam o drama das vítimas, de seus parentes, amigos e colegas de trabalho. Os crimes se transformaram em um problema social e político porque desafiaram as instituições democráticas.

Tanto os matadores de Marielle como os de Reis queriam passar um recado quando os assassinaram. Eles atacaram o que as funções das vítimas representavam; atingiram a pessoa jurídica, além da física. A vereadora Marielle lutava pelos direitos das mulheres e dos moradores das favelas, entre outras causas; o soldado Reis, como policial, zelava pelas leis e pelos direitos dos cidadãos do Guarujá. Os assassinos queriam fragilizar o trabalho que eles faziam em nome do interesse público, em benefício do poder e dos lucros ilegais deles e de seus aliados.

A resposta a esses crimes por parte do Estado, portanto, deveria ser firme, eficiente e rápida, em defesa do estado de direito, algo que, infelizmente, nem as autoridades do Rio nem as de São Paulo conseguiram fazer. Os excessos e as ilegalidades da resposta oficial paulista e a omissão e a lentidão da fluminense ajudaram a fragilizar ainda mais a legitimidade das instituições de segurança e de justiça, o que acaba fortalecendo o poder dos criminosos desses locais.

As 16 mortes ocorridas durante operação da Polícia Militar no Guarujá, a segunda mais letal da história da PM paulista, afetaram a credibilidade de uma corporação que vinha acumulando conquistas importantes, aos trancos e barrancos, a partir do esforço de seus oficiais. No ano passado, com a instalação das câmeras em uniformes dos policiais, a PM de São Paulo reduziu a taxa de letalidade em 31%. Foram 0,9 mortos por 100 mil habitantes, o que a colocou na 24ª colocação no ranking de letalidade nacional.

A taxa de letalidade da polícia paulista foi 11 vezes menor do que a da polícia da Bahia, por exemplo, uma corporação cada vez mais descontrolada, que resiste aos esforços do atual governo baiano em retomar as rédeas da situação, que já vem degringolando há anos. Nesse rumo, a corporação segue um caminho semelhante ao percorrido pela polícia do Rio de Janeiro, historicamente a mais letal do Brasil, que se autonomizou e se livrou das amarras legais para contribuir para a formação das milícias, o maior grupo criminoso do estado.

A violência policial é irmã siamesa da corrupção policial. Violência e corrupção são as sementes que permitiram às milícias crescerem e se espalharem em território fluminense. Os integrantes de uma corporação que recebe carta branca para matar são estimulados a se aproveitarem desse superpoder para ficar mais ricos e influentes no mercado do crime. No Rio, policiais corruptos e matadores passaram a se associar aos interesses de políticos desonestos no assalto aos cofres públicos. Estes, por sua vez, estavam conectados há décadas com os bicheiros, que eram vinculados aos militares linha-dura da ditadura, que formavam grupos de extermínio na Baixada Fluminense, e por aí vai. Com o tempo, essa longeva e ampla rede de bandidos se fortaleceu a ponto de se criar uma máfia poderosa que controla parte das instituições fluminenses.

A força desse poder ilegal explica o assassinato de Marielle em plena intervenção federal, quando as forças armadas e toda a imprensa estavam de olho no estado. Como se sentiam intocáveis, milicianos deram prosseguimento aos seus planos homicidas. Cinco anos depois da morte de Marielle, a irmandade de criminosos continuou no poder e está mais forte do que nunca. Resta a esperança nas investigações feitas pela Polícia Federal para quebrar o pacto de impunidade e descobrir quem mandou matar a vereadora e por quê.

É para esse caminho de descontrole que os discursos do governador Tarcísio de Freitas e de seu secretário de Segurança Guilherme Derrite apontam ao incentivar a autonomia dos praças nas ruas e ao sabotar as apurações de eventuais ações criminosas durante a operação com 16 vítimas. No primeiro quadrimestre de 2023, a letalidade da polícia em São Paulo cresceu 8,6%. O governador e a cúpula da segurança, ao mesmo tempo, estão abandonando o plano de ampliar os investimentos nas câmeras dos uniformes, que foram instaladas em 10 mil fardas de um total de 80 mil policiais.

O projeto ainda previa que as imagens das câmeras fossem diretamente acessadas pelo Ministério Público. Isso nem sempre funciona, e os promotores acabam dependendo do envio das imagens pela própria PM. No caso de Guarujá, a polícia entregou apenas sete imagens entre as 16 ocorrências. Em três casos, a imagem não teria sido feita por supostas falhas no aparelho; em seis, o uniforme dos policiais não tinha o equipamento.

Os próprios testemunhos dados por parentes das vítimas podem ajudar na investigação. São depoimentos corajosos, porque, ao falar, passam a correr risco de vida. Essas falas, contudo, foram desacreditadas pelo governador, que as chamou de “narrativas”, como se se tratassem de elucubrações feitas no Twitter e não de vida real. Se não existe Justiça para esse tipo de crime, se o superior hierárquico dos policiais incentiva o desrespeito às leis, eles podem se sentir incentivados a seguir o rumo cada vez mais atraente do lucro ilegal, que já ameaça corporações policiais em diversos estados brasileiros.

Essa omissão pode ser extremamente grave e produzir tragédias típicas de uma sociedade injusta, incapaz de barrar a covardia de poderosos que pode esmagar pessoas indefesas. Foi o que ocorreu com a cabelereira Vera Lucia dos Santos, em Santos, na Baixada Santista, em maio de 2006. Em toda minha vida como jornalista e pesquisador, nunca vi nada tão cruel. Vera foi uma das mães que criaram o movimento Mães de Maio, formado por familiares de vítimas da polícia. A organização nasceu para denunciar execuções praticadas pela polícia de São Paulo depois dos ataques feitos contra agentes públicos por integrantes do PCC.

Do dia 12 ao 14 de maio de 2006, 59 policiais bombeiros e agentes penitenciários foram assassinados a mando do PCC. Na semana seguinte, 425 pessoas foram assassinadas. As ações de policiais fardados ou com trajes civis foram apontadas como causadoras da matança, em pelo menos 200 homicídios suspeitos de execução. Apenas um policial foi condenado e as investigações foram abandonadas ou arquivadas.

Ana Paula, a filha de Vera, de 20 anos, foi uma dessas vítimas. Ela estava grávida de nove meses. Bianca iria nascer no dia 17 de maio, data em que a mãe havia marcado a cesariana na Santa Casa da cidade. Na véspera, uma terça-feira, dia 16, por volta das 19h, Ana Paula foi com o marido Eddie comprar leite para as crianças e tomar uma vitamina na padaria, depois de assistirem a um filme no videocassete. O clima estava tenso por causa da caçada policial, mas eles não atentaram para os riscos que corriam.

Um carro passou a segui-los enquanto eles caminhavam para a padaria. Além de Ana Paula e do marido, estavam presentes o compadre e o cunhado do casal. Os dois correram quando homens encapuzados enquadraram o grupo. Ana Paula e Eddie ficaram. Talvez a gravidez amenizasse a tensão. Todos, no entanto, foram executados, incluindo Bianca. O massacre não foi suficiente. Vieram recados para que Vera não velasse a filha, mas ela não obedeceu. Quando o velório acabou, dois participantes foram perseguidos ao deixar a cerimônia. Um deles morreu e outro virou evangélico depois de ferido.

Foi quando Vera sentiu coragem para ajudar Debora Silva a criar o Mães de Maio. Em 2008, depois de organizar o movimento e dar seguidas entrevistas denunciando a violência policial na Baixada Santista, Vera teve sua casa invadida pela polícia, que quebrou seus móveis e rasgou as roupas de sua família, a partir de uma suposta denúncia de tráfico de drogas. Apesar de ser acusada pelos mesmos policiais que ela denunciava, Vera foi condenada pela Justiça e passou três anos presa. Ela proibiu os familiares de visitá-la, temendo mais uma armação da polícia. Depois de sair da prisão, Vera morreu no dia 3 de maio de 2018. Foi encontrada deitada na cama de seu quarto, ao lado da foto de sua filha Ana Paula. Caso o governador ainda não saiba, uma polícia descontrolada pode produzir monstros.

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