A modernidade e o “amor ao negro”

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 03/08/2023 - Publicado há 1 ano

A relação entre as vanguardas e as culturas não ocidentais está no cerne de recentes pesquisas que, essencialmente, reexaminam a noção de modernidade, as ideias sobre renovação estética e, densamente, discutem os modelos de autoria, temas e representação do mundo. Estudos tais como Negrophilia: Avant-Garde Paris and Black Culture in the 1920s (ainda sem tradução no Brasil), da historiadora da arte britânica Petrine Archer-Straw, e Modernidades negras. A formação racial brasileira (1930-1970), do sociólogo e professor da USP Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, nos dão pistas sobre o debate que envolve a modernidade, as vanguardas e a estética negra.

Nos anos de 1920, a boemia parisiense se apaixonou pela “arte negra” – esse arrebatamento entrou para a historiografia com o nome de negrofilia (do francês négrophilie, ou ainda “amor ao negro”) – um período no qual os artefatos e outras manifestações, tais como, o jazz, o lindy hop e o charleston davam o tom do que era “ser moderno”. Fernand Léger, Pablo Picasso, Sonia Delaunay, entre outros integrantes da avant-gard, colecionavam esculturas e máscaras, assim como usavam joias e roupas com motivos tribais. Eles eram modernos, abertos ao experimentalismo, atraídos por formas “exóticas” e, sobretudo, viveram os Années folles (os Anos loucos) com intensidade.

Desse contexto histórico e a partir das abordagens atuais, torna-se possível o exercício de reflexão que envolve algumas questões, entre elas: como surgiu esse interesse pelas culturas não ocidentais? Como esse “amor ao negro” fomentou as vanguardas europeias? E quais estigmas estavam envolvidos e, de certa forma, persistem até hoje?

De antemão, pondera-se que a modernidade é uma noção construída para pensar o Ocidente que ganhou força frente ao amplo sentimento de decadência da civilização clássica, particularmente após os desdobramentos da Revolução Industrial e dos horrores da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. E assim, a busca pelo “primitivismo” (primevo, inicial, simples e transcendente) surgiu, na vida moderna, “como remédio” para esse sentimento de desesperança europeia.

Notadamente, o interesse europeu pela arte não ocidental não é algo exclusivo dado à arte africana e tão pouco ao modernismo. Nos séculos 16 e 17, por exemplo, o comércio com o Oriente já demonstrava o gosto pelo considerado “exótico”. No século 19, a ferrovia e o navio a vapor proporcionaram viagens às terras antes inacessíveis à maioria dos ocidentais. Some-se ainda o fato de que os domínios coloniais se estenderam sobre terras na China, Índia, África e ilhas do Pacífico. Todas essas circunstâncias integraram as formas e os motivos orientalistas ao repertório das artes europeias; elas associaram-se à fantasia de opulência e à ideia de “arte não corrompida” pelo homem civilizado.

Esse interesse por fontes e estéticas não ocidentais também estava presente no repertório dos impressionistas, atraídos pela gravura japonesa, disseminada a partir das Exposições Universais (1852, 1867 e 1878), em cidades como Londres e Paris. O japonismo – nome atribuído a essa influência nas artes ocidentais – permitiu aos impressionistas o emprego da assimetria, das cores chapadas e das composições planas. Cópias de ilustrações de Katsushika Hokusai foram levadas a Paris e se tornaram inspiração para artistas, tais como Claude Monet, Edgar Degas, Henri de Toulouse-Lautrec, Van Gogh e Paul Gauguin.

A partir de 1870, após a ocupação de territórios coloniais e expedições exploratórias, a busca por modelos artísticos estendeu-se ao interesse por artefatos vindos das culturas africanas: máscaras, esculturas, cerâmicas, indumentárias, entre outros adornos. Expostos em museus como o Musée d’Ethnographie du Trocadéro em Paris, e seus similares em Berlim, Munique e Londres, eram objetos ligados ao imaterial e não cópias de elementos da natureza. Nas suas sociedades, eram peças relacionadas ao mágico-religioso; usadas em ritos de passagens e guardadas em locais reservados – não eram para a contemplação, tal como as obras de arte à maneira ocidental.

Mesmo assim, a estética africana tradicional tornou-se influência entre os artistas europeus responsáveis pelo desenvolvimento da arte moderna. Matisse, Picasso e seus amigos da Escola de Paris, por exemplo, observaram nos artefatos o tratamento estilizado da figura humana e aliaram-se às proposições derivadas das obras de Cézanne e Gauguin. Expressionistas alemães, como Ernst Ludwig Kirchner, do grupo Die Brücke (A Ponte), combinaram a estética africana com cores dissonantes e distorção da figura. Paul Klee, do Blaue Reiter, elaborou imagens simbólicas transcendentes a partir da estética negra.

De tudo, artistas, marchands e críticos da época eram colecionadores das peças africanas e responsáveis pela atribuição de seu valor estético. Multiplicaram-se as exposições públicas da estatuária africana. Em 1916, por exemplo, Paul Guillaume realizou a mostra Exposition d’art nègre – sendo essa a primeira de uma série de mostras organizadas pelo marchand francês. Três anos depois, ele organizou a Fête nègre no Théâtre des Champs-Élysées. Em 1921, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars lançou Anthologie nègre e, dois anos depois, Léger encenou o espetáculo La création du monde, com cenário inspirado nas máscaras africanas.

Durante grande parte do século 20, esse interesse foi frequentemente descrito como primitivismo, ou seja, uma perspectiva sobre culturas não ocidentais que hoje é vista, no mínimo, como problemática. A colonização e a ideia de primitivo atribuíram ao negro a inserção no mundo civilizado por duas perspectivas: a primeira, ligada ao animalesco (entre os exemplos, as exibições de etnias africanas no Jardin Zoologique d´Acclimatation, nas revistas do Folies Bergère e a bizarra história da Vênus Hotentote) e a segunda, relacionada ao exótico e ao sensual (entre os exemplos, as “vênus negras” de Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé) – esses escritores estavam atentos ao mal-estar criado a partir da compreensão dos limites da civilização e como se tornou estreita a diferença entre a natureza e os demais povos.

Esse primeiro fluxo de influência da estética negra (pré-guerra) despertou a vanguarda parisiense para “todas as coisas africanas”. Móveis foram decorados com peles de animais e desenhos africanos; roupas com tecidos naturais e peles da selva; as joias ostentavam metais e pedras preciosas.

A “paixão” estava no auge quando, em 1925, surgiu Josephine Baker, a Vénus noire de Paris. Vinda do Harlem, Baker exibia uma dança frenética, tornando-se destaque em La Revue Nègre de André Daven no Théâtre des Champs-Élysées. Na sua noite de estreia, estavam os artistas Francis Picabia e Kees van Dongen e os escritores Blaise Cendrars e Robert Desnos. Tempos depois, outros artistas e escritores, incluindo Picasso, Henri Laurens, Georges Rouault, Louis Aragon e Alexander Calder, a procuraram como modelo e musa. Para eles, Baker era a musa selvagem de Gauguin ou Rousseau que teria ganho vida. Jean Dunand a retratou num cenário com bananeiras e coqueiros e com um vestido africano estilizado. Calder dedicou sua primeira escultura totalmente em arame a ela. Ela era a expressão da liberdade sexual feminina; um animal indomado; sua negritude instigava deslumbramento, mas também a colocava em contradição aos costumes sociais da época.

Como Baker, os negros que se encontravam em Paris eram colocados em evidência. Alguns eram soldados ​​que não desejavam retornar aos EUA. Outros eram músicos e artistas que descobriram o interesse dos brancos em danças como charleston, lindy hop, black bottom e shimmy. A presença dos negros em Paris, aos olhos da boemia, era rejuvenescedora. Esses boêmios frequentavam os clubes de jazz e se autodenominavam “negrófilos” – eram figuras como o poeta Apollinaire e o já citado marchand Paul Guillaume. “O amor ao negro” era um sinal de sua modernidade, refletida nos artefatos africanos que juntavam às suas coleções de pinturas abstratas.

Cabe ressaltar que, nesse “amor ao negro”, nos Anos loucos parisienses, a representação, na maioria das vezes, era de brancos sobre os negros (algo que ainda persiste nos tempos atuais, não é mesmo?). Isto porque aceitar a cultura negra é uma coisa; aceitar o negro como civilizado é outra. A aceitação de Joséphine Baker, na Paris de 1925, não significou o fim da visão racista do negro como animal – ele não era mais um animal ameaçador, mas sim rítmico, musical e divertido.

A situação só se alterou quando os negros tomaram a cena e a autoria de suas representações. Evidenciaram-se figuras tais como Sidney Brechet, Langston Hughes, Alain Locke, William Edward Burghardt Du Bois e outras ligadas ao Harlem Renaissance que se mudaram para Paris, fugindo da segregação racial norte-americana. Esses artistas e escritores desmontaram narrativas históricas e pseudocientíficas e, acima de tudo, atuaram em modelos e práticas anticoloniais, despertando ativismos negros na África e em territórios afrodiaspóricos. Mas, essa é uma outra etapa nesse processo de inserção dos negros na modernidade.

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