A noção grega de identidade permanece bastante difundida no mundo contemporâneo. Por exemplo, se branco é branco, branco não pode ser não branco, não há terceira possibilidade. A filosofia que fundamentou juridicamente a propriedade privada precisou desta noção de identidade para se afirmar. Propriedade privada estaria intimamente relacionada à identidade individual. A primeira propriedade é a propriedade de si. Uma pessoa é um ser que pode conhecer a si mesmo como si mesmo, como um mesmo ser em diferentes tempos e lugares. A identidade da pessoa seria alcançada por meio de um processo autorreflexivo que constrói a consciência da propriedade de si. A partir da propriedade de si, a pessoa poderia se apropriar das coisas do mundo, de objetos, terras e até mesmo de pessoas, ou ainda, do tempo das pessoas. Por fim, através da descendência as propriedades de uma pessoa seriam transmitidas para seus herdeiros.
Tal modo de pensar encontra ressonância na tradição religiosa que concebe que uma divindade fabricou um mundo povoado por dois tipos de seres, os humanos e os seres da natureza. Os seres humanos (sujeitos) poderiam, então, estabelecer propriedade sobre a natureza (objeto). Tal distinção tem ecos na pesquisa científica que supõe a dualidade entre sujeitos pesquisadores e os objetos da pesquisa, nos processos de construção de conhecimento. Tal distinção também tem ecos na sociedade de classes que trata os proprietários de forma mais humana que os destituídos de posses. Estes, por sua vez, costumam ter sua humanidade muitas vezes colocada sob suspeição por aqueles. Variações sobre o mesmo tema, em que identidade e propriedade hierarquizam distinções concretamente experimentadas na vida, são encontradas nas relações étnico-raciais, de gênero, sexualidades etc.
Por exemplo, por muitos séculos pessoas escravizadas no Brasil não eram consideradas sujeitos de direito. Enquanto propriedades de outras pessoas, eram identificadas como negros. O tráfico negreiro importava pessoas do continente africano e, no Brasil, indígenas escravizados foram chamados de negros da terra. Quando o tráfico negreiro se tornou ilegal em 1850, o preço pago pela propriedade de pessoas escravizadas subiu. O tráfico ilegal e o tráfico interno se tornaram negócios rentáveis para as pessoas não negras. As pessoas negras que por motivos diversos poderiam ter conquistado a liberdade, eventualmente, por meio da compra de cartas de alforria, eram colocadas sob suspeita: tinham que possuir um documento que identificasse tal condição de liberdade como prova, para não serem escravizadas novamente.
Outro exemplo. A extinção oficial de povos indígenas aconteceu em algumas partes do Brasil no século 19, por meio de mudanças classificatórias jurídicas na identificação das pessoas. Indígenas passaram a ser reclassificados como caboclos ou negros da terra, perdendo, com tal reclassificação, a prerrogativa legal que assegurava o direito de viverem em suas terras. Pessoas e comunidades indígenas despossuídas de documentos que as identificassem como proprietárias da terra ou como indígenas foram colocadas sob suspeição. Sem a identidade documentada, passaram a ser legalmente expulsas dos lugares onde habitavam. Como desdobramento, as pessoas expulsas necessitaram vender o seu tempo livre enquanto trabalhadores mal pagos para outras pessoas, que se tornavam proprietárias das terras, das pessoas quando escravizadas, e do tempo das pessoas, quando assalariadas.
Dou um salto no tempo para os dias atuais, em que pessoas pretas, pardas ou indígenas estão conquistando alguma reparação histórica dos danos historicamente sofridos, por meio de políticas públicas afirmativas. O que tenho percebido, recorrentemente, é que, no acesso a tais políticas públicas, pessoas pretas, pardas e indígenas têm sido colocadas novamente sob suspeição. Um questionamento volta-se para se as pessoas que pleiteiam direitos são de fato proprietárias de algo que as identifique em uma das categorias focalizadas na política pública: traços fenotípicos físicos têm sido privilegiados sobre os comportamentais, culturais, a linguagem, a história ou a memória das pessoas. Trava-se uma confusão entre ter ou não ter, que se confunde com ser ou não ser: ter o fenótipo A significaria ser A, não ter o fenótipo A significaria ser não A, não existe terceira opção.
Contudo, tal lógica é desdobramento de uma tradição filosófica e religiosa distinta das tradições de conhecimento e práticas culturais de muitos daqueles que são classificados segundo o princípio aristotélico da identidade. Reflito, então, se as lógicas afrobrasileiras e indígenas de inclusão e pertencimento estão sendo substancialmente consultadas na construção das políticas públicas voltadas a este público-alvo. Preocupa-me o fato de o identitarismo muitas vezes recair na estrutura de pensamento dos opressores, instaurando a divisão entre grupos sociais que precisariam estar mais unidos para efetivamente enfrentar as opressões que os ameaçam. Como nos esquivar destas armadilhas?
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