Emendas auspiciosas e o encontro entre universidade e inovação

Por Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP

 Publicado: 18/02/2025 às 18:18

Emendas de fios malfeitas acarretam desperdício de energia elétrica, que aumentam o gasto do consumidor e prejudicam a sociedade como um todo. Em não poucos casos, causam incêndios, cujas consequências são imprevisíveis.

Emendas literárias podem gerar resultados piores do que os produtos originais. Daí a expressão “pior a emenda que o soneto”. Ela é atribuída a um poeta português de séculos passados que teria se recusado a anotar sugestões de aprimoramento numa composição ruim que lhe fora submetida por um autor iniciante.

Um episódio encantador é relatado a respeito da inolvidável canção Retrato em Branco e Preto, fruto do encontro auspicioso entre os geniais Tom Jobim e Chico Buarque. O canto termina com o trecho marcante “Vou colecionar mais um soneto / Outro retrato em branco e preto / A maltratar meu coração”. Tom teria apontado que, diferentemente do proposto por Chico, a expressão usual em português é “preto e branco”. Ao que este retruca com a versão emendada “Vou colecionar mais um tamanco / Outro retrato em preto e branco / A maltratar meu coração”. O epílogo da controvérsia é curioso: prevalece a versão original de Chico no idioma pátrio (ufa!), enquanto no mercado anglófono o título é Portrait in Black and White.

Emendas parlamentares opacas são custosas para o povo sofrido. Elas facilitam malfeitos que desviam recursos financeiros escassos de quem os necessita para enricar catervas de corruptores e corruptos. E aumentam sobremaneira o descrédito da sociedade ampla nas instituições públicas, contribuindo assim para a criação de condições para ascensão política de sebastianistas marotos.

Há, felizmente, emendas auspiciosas. No campo familiar, aprendi cedo do meu saudoso pai que um traje pode ser usado publicamente por décadas, graças a um alfaiate habilidoso nas emendas reparadoras dos puídos decorrentes do uso prolongado.

No campo parlamentar, tive o privilégio de participar do processo que, em fevereiro de 2015, há exatos dez anos, desemboca na Emenda Constitucional n. 85. Esse memorável esforço intersetorial articulou dezenas de entidades adeptas da causa da inovação – acadêmicas, do meio empresarial, organizações da sociedade civil e pessoas do próprio estamento governamental.

A Emenda tem raízes na legislação em prol da inovação no Brasil que remonta à virada do século. Inspirado na lei francesa de 1999 sobre inovação e pesquisa, o então senador Roberto Freire submete projeto de lei para incentivo à pesquisa e à inovação tecnológica. Uma proposta substitutiva, endossada pela Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação de 2001 e aprimorada em consulta pública, é submetida pelo governo FHC ao Congresso Nacional, com solicitação de tramitação urgente. Todavia, o avanço célere da tramitação legislativa é abortado a pedido do grupo vencedor das eleições presidenciais de 2002.

Na conhecida sequência do anda, para e anda novamente, que torna a história do Brasil lenta (conforme aguçada apreciação do professor José de Souza Martins), os esforços para avanço de um marco legal favorável ao desenvolvimento do país alicerçado no conhecimento somente conseguem ser efetivados após a substituição do titular do ministério responsável. Cinco anos depois da iniciativa de Roberto Freire, a chamada Lei da Inovação, aprovada no Congresso com apoio esmagador, é promulgada em dezembro de 2004. O sentimento geral era o de que “agora a inovação vai decolar”.

Mas não foi bem assim. A sabedoria popular cunhou a expressão “No Brasil tem lei que pega e tem lei que não pega”. Seria mais precisa, embora menos impactante, a frase “No Brasil a pegada de uma lei pode variar do tudo ao nada”, dando assim espaço a implementações parciais, em maior ou menor grau. A Lei da Inovação pegou “um pouco”. Pois surgiram obstáculos jurídicos, em especial o reiteradamente alegado conflito com outros dispositivos, como a Lei de Licitações. Esse entrevero dificultava sobremaneira os entendimentos para o aproveitamento de tecnologias desenvolvidas por instituições públicas. A isso se adicionava a relutância das estruturas burocráticas de promover as adaptações infralegais necessárias para que os pesquisadores pudessem se valer das possibilidades ensejadas pela Lei.

Um balanço dos primeiros dois anos foi objeto do seminário Inovação Tecnológica e Segurança Jurídica. O título refletia o objetivo aspiracional comungado pela academia e pelo meio empresarial, mas que se afigurava como quase utópico. A realidade indicava estar acontecendo o seu oposto, ou seja, um estado generalizado de insegurança jurídica.

Um dos momentos do evento que é ao mesmo tempo patético e revelador do caminho a seguir se deve ao argumento do representante de um dos órgãos federais de controle. Após ouvir o rosário de queixas das universidades públicas e das empresas inovadoras quanto à baixa efetividade da tão ansiada legislação, disse que, em termos pessoais compreendia a frustração e concordava com o teor das reclamações. Contudo, como servidor público, era sua obrigação se ater rigorosamente ao que estava prescrito na Constituição. Na sequência, indica o único caminho que, a seu ver, seria eficaz: para que que os órgãos de controle se posicionem de maneira diferente, é necessário mudar a Constituição! Arremata a fala contundente com um recurso retórico inesperado: relembrando o regime de exceção que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, exorta os presentes a se solidarizarem com a conduta dos órgãos de controle de defesa intransigente da Carta Magna, pois dessa forma eles estavam protegendo a sociedade contra eventuais novos ataques à ordem democrática.

O acúmulo de frustrações leva, a partir de 2011, a uma mobilização crescente de atores dos campos acadêmico e empresarial e, também, de alguns membros do Congresso Nacional e do Poder Executivo, com vistas a um novo avanço no campo jurídico em prol da inovação no Brasil. A proposta inicial previa um Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação que consolidaria, em uma única lei, todas as normas atinentes a essa temática. A expectativa era que esse tipo de dispositivo abrangente, como são o Código Eleitoral ou o Código Nacional de Trânsito, contribuiria para desanuviar o ambiente confuso gerado pelas dissonâncias interpretativas nas diversas instâncias jurídicas, inclusive as procuradorias instaladas nas universidades públicas.

Também esperava-se superar dois outros entraves à inovação no País. Um era o conjunto de limitações que regem a atividade dos servidores públicos em dedicação integral ao ensino e à pesquisa, situação em que se encontra a maioria absoluta dos pesquisadores vinculados à academia. Essas limitações afetavam uma das vias principais de transferência de tecnologia, que é a criação de empresas por pesquisadores, permitida pela Lei da Inovação.

O outro entrave era a insensibilidade das autoridades envolvidas na liberação de insumos importados para fins de pesquisa. Ele gerava imprevisibilidades temporais – e, por vezes, custos adicionais – que dificultavam sobremaneira a produção tempestiva de resultados importantes para o avanço da ciência. Não poucas vezes a demora inviabilizava a própria continuidade da pesquisa, em face da deterioração dos insumos armazenados por tempo elevado em armazéns aeroportuários, nem sempre nas condições requeridas pelas normas que regem a qualidade dos procedimentos laboratoriais.

Com o amadurecimento do movimento, optou-se por uma estratégia ousada: ao invés de lutar pela criação de um Código Nacional, cujas limitações se tornavam claras, concentrar os esforços na busca da inserção da inovação no próprio texto constitucional. Essa epopeia de vários anos tem momentos difíceis e episódios pitorescos. Um destes foi a solicitação a um congressista para que estendesse o quanto possível a sua fala no plenário, a fim de dar tempo para arregimentar no território brasiliense, inclusive no aeroporto, o elevado número de parlamentares necessários para a aprovação de uma emenda constitucional. O quórum é de dois terços de votos do total de membros de cada uma das Casas do Congresso Nacional, e não o de dois terços dos membros de cada uma das Casas presentes à sessão.

A essência da emenda está no acréscimo de três palavras (grifadas) ao final do artigo 218, que passou a ter a redação seguinte: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”. O efeito positivo nos organismos de controle começa logo após a aprovação da emenda. Uma ilustração é o estabelecimento de um programa de inovação no Tribunal de Contas da União, o TCU, diretamente vinculado à sua presidência. Essa iniciativa leva, adiante, à criação do Laboratório de Inovação do TCU, denominado “coLAB-i”.

Dez anos passados, há ainda um caminho expressivo a percorrer para que a Emenda n. 85 e o Novo Marco Legal da Inovação que dela deriva contagiem amplamente a Administração Pública de um país extenso e diverso como é o Brasil. Mas alguns resultados já conseguidos são expressivos. Por exemplo, a mudança na compreensão da complexidade do ecossistema de inovação por parte de operadores jurídicos em posições-chave, superando a ideia reducionista de que a inovação seria atribuição exclusiva de empresas. É assim justo comemorar o 10º aniversário dessa emenda auspiciosa.

Outra efeméride auspiciosa de fevereiro no campo da inovação é a comemoração, pela Universidade de São Paulo, do 20º aniversário de criação da Agência USP de Inovação, a Auspin. É oportuno reavivar o episódio fundador que a originou, nos idos de 1986. Trata-se da iniciativa do professor José Goldemberg de, no primeiro ano da sua gestão reitoral, criar o Grupo de Assessoramento ao Desenvolvimento de Inventos, o Gadi.

Atribui-lhe a ampla responsabilidade “pela execução de medidas concernentes aos inventos ocorridos na Universidade de São Paulo, bem como por qualquer trabalho de assessoria técnica a ser prestado pela Instituição à comunidade”. Inspirado nos Escritórios de Transferência de Tecnologia das universidades estadunidenses, que se multiplicaram na esteira da Lei Bayh-Dole de 1980, o Gadi é precursor do modelo de Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) no Brasil. A lei estadunidense é também um dos precedentes exitosos que inspiraram a Lei da Inovação brasileira, promulgada quase um quarto de século mais tarde.

Inicialmente o Gadi é vinculado ao Departamento de Serviços Administrativos e, na sequência, à Procuradoria-Geral da Universidade. Na década de 1990, ele é incorporado pelo professor Jacques Marcovitch à Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais, a Cecae, órgão da Reitoria que se destacava na contribuição para a dinamização das relações da USP com o seu entorno relevante. Na Cecae, o Gadi se integra ao Programa de Cooperação Universidade-Empresa, somando-se a outras iniciativas pioneiras, como o Disque-Tecnologia USP.

As ações desse programa constituem a base concreta a partir da qual a Auspin inicia a sua caminhada.

A adoção do modelo de agência reflete uma postura em amadurecimento da USP no então bastante controverso espaço de encontro entre a universidade e a inovação. Ao longo das primeiras duas décadas de atuação, a Auspin vem ajudando a posicionar a USP nas fascinantes transformações pelas quais a inovação passa, entre as quais se destaca o movimento pelo empreendedorismo inovador.

Suas realizações nessa vertente se refletem, entre outros, no significativo fato de ser a USP enxergada pelos estudantes de graduação brasileiros como a universidade mais empreendedora no País. Um resultado que é “pra lá de auspicioso”!

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