Promoção da saúde em comunidades isoladas através do abastecimento de energia

Por Flavio Martins, pesquisador da Bartlett School of Sustainable Construction, Juliana Pascchotto Caneppele, pesquisadora do Grupo de Pesquisas em Gestão, Formação, Saúde e Trabalho da Universidade Federal de São Carlos, e Fernando de Lima Caneppele, professor da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP

 21/10/2024 - Publicado há 5 meses
Flavio Martins – Foto: Arquivo pessoal
Juliana Pascchotto Caneppele – Foto: Arquivo pessoal
Fernando de Lima Caneppele – Foto: Arquivo pessoal
A promoção da saúde em comunidades isoladas é um desafio global, especialmente em regiões de difícil acesso onde a infraestrutura básica, incluindo o fornecimento de energia, é escassa. No Brasil, muitas comunidades na Amazônia, Pantanal e regiões semiáridas enfrentam essas dificuldades diariamente. Mesmo no Estado de São Paulo, existem comunidades “esquecidas”. Sem acesso adequado à eletricidade, postos de saúde locais funcionam de forma precária, e a população sofre com a falta de condições mínimas para a atenção primária, como a conservação de vacinas e medicamentos essenciais. O abastecimento de energia nessas regiões pode transformar não apenas o acesso à saúde, mas toda a dinâmica de desenvolvimento dessas comunidades.

A relação entre energia e saúde é profunda. O fornecimento de eletricidade não se limita à iluminação, mas também possibilita a refrigeração de vacinas, a operação de equipamentos médicos essenciais e a garantia de água potável por meio de sistemas de purificação e saneamento. Quando essas necessidades básicas são atendidas, o impacto sobre a saúde pública é imediato e significativo. Em muitas dessas áreas, a falta de energia agrava doenças preveníveis e impede o tratamento adequado, contribuindo para a vulnerabilidade dessas populações frente a surtos e epidemias.

Um dos principais benefícios do abastecimento de energia é a melhoria dos serviços de saúde locais. Pequenos postos de saúde, que muitas vezes atendem comunidades inteiras, dependem de energia para funcionarem de maneira eficaz. A eletrificação permite a operação de equipamentos médicos essenciais e viabiliza a conservação de medicamentos e vacinas, fatores cruciais para o controle de doenças.

Além disso, o acesso à energia é um indicador civilizatório e um determinante social da saúde crucial, influenciando diversos aspectos da vida que impactam diretamente o bem-estar das comunidades. Os determinantes sociais da saúde englobam as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem. O fornecimento de energia afeta diretamente estas condições, melhorando a qualidade de vida e as oportunidades econômicas. Por exemplo, a eletricidade permite melhor iluminação para estudos, facilitando a educação, que por sua vez está intimamente ligada a melhores resultados de saúde. Além disso, o acesso à energia possibilita a conservação adequada de alimentos, reduzindo o risco de doenças transmitidas por alimentos. A energia também viabiliza o uso de tecnologias de comunicação, permitindo o acesso a informações de saúde e facilitando a telemedicina em áreas remotas.

Nessas comunidades, as energias renováveis surgem como uma solução sustentável e viável. A energia solar, por exemplo, pode ser aproveitada mesmo em regiões extremamente isoladas. Sistemas fotovoltaicos com armazenamento de energia por baterias são uma alternativa prática para fornecer eletricidade de forma contínua. A energia eólica também apresenta potencial em áreas com ventos constantes. Essas fontes de energia são ecologicamente responsáveis e podem ser instaladas com impacto ambiental reduzido.

Entre as tecnologias sustentáveis que estão transformando a realidade das comunidades isoladas, os sistemas de bombeamento fotovoltaicos para fornecimento de água merecem destaque especial. Estes sistemas representam uma interseção crucial entre energia renovável e saúde pública, oferecendo uma solução integrada para dois desafios fundamentais: acesso à energia limpa e à água potável.

O impacto na saúde pública é significativo. O acesso à água limpa, facilitado por esses sistemas, é fundamental para a prevenção de doenças transmitidas pela água, como doenças gastrointestinais, que são particularmente perigosas em áreas remotas com acesso limitado a cuidados médicos. Além disso, a disponibilidade de água limpa melhora as condições de higiene, essenciais para a prevenção de diversas doenças infecciosas.

Iniciativas tecnológicas inovadoras vêm transformando a expansão energética em áreas remotas. Redes elétricas isoladas, conhecidas como “mini grids”, são uma das opções mais utilizadas para garantir energia a essas comunidades. Essas minirredes podem operar independentemente da infraestrutura nacional, utilizando fontes locais de energia renovável. Sistemas híbridos que combinam energia solar, eólica e baterias de armazenamento de longa duração estão sendo cada vez mais empregados para garantir a estabilidade do fornecimento de energia.

As mudanças climáticas representam uma ameaça significativa para regiões vulneráveis como a Amazônia e o semiárido brasileiro, onde podem agravar os desafios de saúde existentes. Neste contexto, a resiliência climática torna-se crucial. A Organização Mundial da Saúde enfatiza a importância de sistemas de saúde resilientes ao clima, capazes de antecipar, responder e adaptar-se a choques climáticos. Uma solução robusta para este desafio são os sistemas de energia renovável descentralizados, incluindo sistemas fotovoltaicos de bombeamento de água. Esses sistemas não apenas aumentam a confiabilidade do acesso à água e energia, mesmo em condições climáticas adversas, mas também garantem um fornecimento estável de energia para serviços de saúde essenciais. Além disso, contribuem para a sustentabilidade ao reduzir as emissões de gases de efeito estufa. A implementação dessas fontes de energia renovável reduz a vulnerabilidade das comunidades isoladas a eventos climáticos extremos, alinhando-se com os objetivos de resiliência climática. Como resultado, promove-se uma maior estabilidade no fornecimento de serviços de saúde vitais, aspecto crucial para essas regiões.

Estudos demonstram o impacto significativo desses programas na saúde pública. Na África Subsaariana, comunidades eletrificadas apresentaram redução de 9,3% na mortalidade infantil e aumento de 18% nas consultas pré-natais; exemplos semelhantes na Índia, Bangladesh e México demonstraram como o fornecimento de energia em comunidades isoladas pode reduzir drasticamente a mortalidade infantil, melhorar a educação e fomentar inclusão social e o desenvolvimento econômico.

O programa Luz para Todos, no Brasil, exemplifica como o abastecimento de energia pode transformar comunidades isoladas. Desde 2003, beneficiou 3,7 milhões de famílias, aproximadamente 17,5 milhões de pessoas. Entre 2020 e 2024, o foco intensificou-se na Amazônia Legal, onde mais de 44.835 famílias ganharam acesso à eletricidade. Apesar desses avanços, 330 mil famílias ainda vivem sem energia elétrica, e o Ministério de Minas e Energia mantém o compromisso de combater a pobreza energética. Estima-se que o Luz para Todos contribuiu para uma melhoria de 23% nos indicadores de saúde básica, incluindo redução de doenças gastrointestinais e respiratórias.

Esses resultados evidenciam que o acesso à energia em comunidades isoladas é crucial para a saúde, educação e desenvolvimento econômico, indo muito além da mera conveniência.

Apesar dos avanços, a implementação dessas soluções ainda enfrenta muitos desafios. Os custos iniciais de instalação, a logística de transporte de equipamentos para áreas de difícil acesso e a formação de mão de obra local são obstáculos comuns. Além disso, o suporte técnico e a manutenção regular dos sistemas instalados exigem um planejamento adequado. A superação desses desafios depende de parcerias multissetoriais. Governos, organizações não governamentais, empresas privadas e instituições acadêmicas precisam colaborar para criar soluções que sejam tanto economicamente viáveis quanto socialmente justas.

O fornecimento de energia em áreas remotas reduz significativamente as disparidades de saúde, permitindo o funcionamento adequado de instalações médicas, facilitando o armazenamento de vacinas e medicamentos, e possibilitando a telemedicina e educação em saúde. Além disso, a eletrificação baseada em energias renováveis traz benefícios ambientais, reduzindo o desmatamento e a poluição do ar ao substituir fontes como lenha e geradores a diesel. Esta abordagem promove uma distribuição mais equitativa de recursos e oportunidades de saúde, alinhando-se com princípios de justiça social e beneficiando particularmente comunidades marginalizadas, como populações indígenas e quilombolas.

O abastecimento de energia em comunidades isoladas transcende a mera solução técnica, tornando-se um catalisador para a inclusão social e equidade. Ao romper o ciclo de pobreza e exclusão perpetuado pela falta de eletricidade, essas iniciativas promovem desenvolvimento sustentável. Para garantir a continuidade e expansão desses benefícios, é crucial manter o apoio e investimento em projetos de eletrificação, tanto do setor público quanto privado, incluindo programas de incentivo e políticas públicas que facilitem a implementação e manutenção de sistemas de energia renovável em áreas remotas.

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