As tensões e contradições das questões fronteiriças podem resultar em inovação?

Por Guilherme Ary Plonski, professor da Escola Politécnica e da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP

 14/03/2024 - Publicado há 10 meses

Áreas fronteiriças podem ser perigosas. Em territórios disputados, como a Caxemira, terras agricultáveis são convertidas em celeiros de minas terrestres. Ocultos sob o solo e detonados por quem involuntariamente neles pisa, esses artefatos acarretam milhares de amputações de membros inferiores a cada ano, afetando com maior intensidade a população civil.

Esse histórico trágico gera dois importantes resultados, um de caráter preventivo e o outro voltado a minorar o sofrimento das vítimas. Numa inusual conjunção internacional, celebra-se em 1997 a Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e Transferência de Minas Antipessoal e sobre sua Destruição, conhecida como Convenção de Ottawa. Hoje o número de nações subscritoras é de 164, com algumas ausências notáveis – entre elas as da Índia e do Paquistão, que disputam a totalidade do controle da Caxemira.

É talvez menos conhecido o fato de a recorrente tragédia humana causada pelas minas pessoais ter surtido um efeito transformador, este no campo da inovação, três décadas antes da referida Convenção. Em final dos anos 1960, desenvolve-se na Índia uma prótese ortopédica de custo expressivamente menor do que as utilizadas nos países de renda alta, com uma vantagem adicional: ela é leve e não pressupõe o uso de sapato. Dessa forma, o usuário típico da região fronteiriça, um agricultor “de pé descalço”, mantém a flexibilidade necessária ao desempenho de sua atividade produtiva, que frequentemente requer subir em árvores para colheita dos frutos. Centenas de milhares de vítimas de minas terrestres e outras situações que requerem amputação de pés ou pernas já recuperaram a sua mobilidade e dignidade com o chamado “pé de Jaipur”. Esse produto inovador é precursor de um novo paradigma, a inovação frugal.

Em contrapartida, há exemplos notáveis de fronteiras perigosas que, após entendimentos entre as nações vizinhas, dão lugar a projetos de cooperação com sabor inovativo. Um deles é o Portal do Jordão (em inglês, Jordan Gateway). Trata-se de um parque industrial localizado dos dois lados do rio Jordão, que faz a fronteira entre Israel e a Jordânia. À localização estratégica, permitindo acesso rápido ao porto de Haifa, que leva à Europa e à América, e ao porto de Aqaba, que leva à Ásia, acresce-se o incentivo de ser uma zona livre de impostos.

Os modelos sistêmicos de inovação, introduzidos em artigo anterior (Sobre raposas, porcos-espinhos e os modos de enxergar o mundo e suas complexidades), pressupõem esforços cooperativos entre entes que pertencem a espaços institucionais muito diversos. Instituições científico-tecnológicas, empresas de vários talhes, órgãos e entidades de governo, organizações da sociedade civil e do terceiro setor, o chamado “quarto poder” (a imprensa), precisam articular ações que envolvem entes “do outro lado da fronteira”. É o caso da costumeiramente preconizada cooperação empresa-universidade, cuja intensidade e qualidade são indicativas da efetividade de um sistema de inovação.

Há na realidade brasileira não um, mas dois “rios Jordão” paralelos separando a universidade e a empresa. Um é a natural diferença de finalidade. O outro, frequentemente mais caudaloso e turbulento, é a diferença do corpus de normas jurídicas que se aplicam ao setor privado, em que se enquadra a quase totalidade das empresas, e ao setor público, em que está a maioria das universidades que desenvolvem pesquisa avançada. Duas décadas de esforços multisetoriais, que incluem a promulgação de uma emenda constitucional, geram um marco legal lato, mas que apenas gradativamente consegue fincar os pilares infralegais necessários para erguer pontes firmes entre as margens do rio dúplice.

Em adição ao marco legal, é preciso investir em relações interinstitucionais e interpessoais para conseguir atravessar esse rio e gerar, como no mencionado Portal do Jordão real, um espaço cooperativo abrangente. Justifica-se o investimento quando resulta uma ambiência que favoreça:

(i) a compreensão mútua, respeitosa das diferenças entre os agentes (ethos);
(ii) a valorização da reciprocidade intelectual (logos); e
(iii) o encantamento pela aprendizagem conjunta (pathos).

Essa ambiência é condição para evoluir do modus operandi, em que a atenção está focalizada na correta realização de atividades formalmente pactuadas, até atingir o modus cooperandi, em que se estabelece uma plataforma cognitiva compartilhada, capaz de idear e desenvolver produtos coletivos.

O fato de a cooperação empresa-universidade ser objeto de milhares de textos acadêmicos, alguns de autoria deste servidor, apontam para a rugosidade do percurso. Em artigo anterior nos deparamos com a agora habitual metáfora de ecossistemas, aplicada a sistemas de inovação. Há lentes novas, capazes de melhorar o nosso entendimento a respeito dos fenômenos que ocorrem quando empresa privada e universidade pública se encontram, ambas com o desígnio de inovar?

A metáfora de ecótonos, regiões de transição entre duas comunidades ecológicas vizinhas, tem sido tentada em anos recentes como instrumento para aprofundar essa compreensão.

Exploremos três dentre os nexos possíveis entre o conceito de ecótono nas biociências e o campo dos estudos sobre inovação.

Uma das características de um ecótono é conter tanto espécies das comunidades limítrofes como espécies peculiares da região. Se soa intuitiva a ideia de espécies das comunidades limítrofes estarem presentes também na região de transição, é menos evidente o surgimento de espécies peculiares. Mas é relativamente fácil vislumbrar tal fenômeno no ecótono de inovação conhecido como “incubadora de empresas intensivas em conhecimento”. Ali se instalam espécies híbridas, os incubados, que conjuminam elementos díspares: por um lado, atuam como laboratórios acadêmicos públicos de pesquisa e desenvolvimento e, pelo outro, estão sendo capacitados a atuarem como empresas privadas no competitivo ambiente de negócios.

A influência recíproca das comunidades ecológicas presentes num ecótono gera o efeito de borda. As alterações em fatores essenciais para a vida nessas comunidades, tais como a luminosidade, a umidade e a temperatura média podem estressar plantas sensíveis que, ao serem fragilizadas, afetam relações ecossistêmicas já estabelecidas. Em casos extremos, o estresse pode levar à extinção de espécies da flora ou da fauna. No campo de interesse do presente artigo, é possível associar o efeito de borda a algumas situações decorrentes da atuação das fundações de apoio, modelo de ecótono de inovação criado há mais de meio século como “região de transição” entre a universidade pública e a empresa privada. Se há evidências mais do que suficientes para concluir pelos benefícios das fundações à cooperação entre as comunidades acadêmica e empresarial, não há como negar a geração de tensões, em graus diversos, principalmente no seio do ecossistema universitário.

Um terceiro exemplo de ecótono, este de inovação organizacional, é a Caixa de Areia (no inglês, Sandbox), denominação geralmente acompanhada do qualificativo “regulatório”. Esse ecótono, que pode ser entendido como região de transição no tempo, é objeto de um capítulo na Lei Complementar de 2021 que institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador. Trata-se de espaços de experimentação que permitem o teste de soluções inovadoras de modo cooperativo em um ambiente real, com afastamento temporário de normas aplicáveis. O ecótono permite uma alternativa às posturas frequentes que inibem ab ovo a inovação, como ilustram expressões tais como “a legislação não permite” ou “vamos esperar para ver”.

O presente artigo avança na utilização de metáforas sistêmicas, especialmente as inspiradas em estruturas conceituais da Ciência Ambiental. O conceito de ecótonos de inovação pode ajudar a identificar pontos sensíveis nas interações entre os múltiplos agentes dos sistemas de inovação, realçando com maior acuidade as contradições e tensões que ocorrem nas áreas fronteiriças. Ao mesmo tempo, ajuda a apontar espécies peculiares que contribuem para aumentar a efetividade dos esforços inovativos.

O conjunto de atividades preparatórias à 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que se realizará em junho de 2024, é um ensejo interessante para explorar mais as metáforas inspirada na natureza, sob uma perspectiva interdisciplinar e pluri-institucional.

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