A produtividade do agronegócio, o setor mais dinâmico da economia brasileira nos últimos anos, depende de fábricas que forneçam insumos como fertilizantes e biocidas, máquinas e equipamentos e que processem os produtos agrícolas multiplicando seu valor. Uma saca de 60 kg de café vale no mercado internacional cerca de US$ 200, enquanto uma cápsula com 5-6 g é vendida no mercado mundial por US$ 0,6 – 0,8, uma valorização entre 35 e 50 vezes o valor da matéria-prima agrícola que o Brasil exporta. A indústria consegue multiplicar o valor de matérias-primas, oferece empregos e capacita pessoas. Seu papel é fundamental para equilibrar a balança de pagamentos, necessário a um desenvolvimento de longo prazo.
No entanto, nos últimos anos a participação da indústria brasileira no PIB vem caindo. Em outras palavras, a indústria brasileira está encolhendo. Contrastando com a agricultura, a penetração de tecnologias digitais na indústria é baixa, com menos de 1/3 das indústrias usando sensores e automação. Em consequência, a produtividade da indústria brasileira é baixa, afetando os salários, elevando os custos e destruindo a competitividade. Como é tradicionalmente a indústria que concentra parte importante dos empregos com melhores salários da economia, isto reduz também a renda do trabalho. A precoce desindustrialização que experimentamos compromete o crescimento sustentável da economia brasileira como um todo e ameaça a qualidade de vida da população.
Ao mesmo tempo, a produtividade industrial global acelera, impulsionada por um ciclo rápido de inovações, o que progressivamente vem deixando boa parte da indústria nacional cada vez mais longe dos padrões internacionais. As novas tecnologias são de menor impacto ambiental, particularmente, de baixo carbono. Outro fator importante que impulsiona a inovação é a digitalização, ou Indústria 4.0, a fusão das máquinas com os softwares e o intenso uso de dados para ganhos de produtividade em todo o ciclo de vida do produto. A crescente robotização da moderna indústria reduz progressivamente a importância do custo da mão de obra na competitividade, destruindo uma vantagem tradicional da industrialização dos países emergentes. Outro vetor importante de inovação na indústria global é o desafio da redução da pegada de carbono, que exige a substituição das tecnologias e produtos atuais em prazo recorde. A crescente frequência de eventos climáticos extremos, como as ondas de calor na Europa, deve acelerar os investimentos rumo a esta transformação. Com poucas exceções, como a indústria de cimento, a indústria e a sociedade brasileiras encontram-se despreparadas para explorar as oportunidades oferecidas, embora o País conte com uma matriz energética limpa, que é potencialmente uma enorme vantagem competitiva.
A estratégia de industrialização voltada para o mercado interno para garantir saldo na balança de pagamentos – conhecida como substituição de importações – não tem sido viável. Isto é particularmente verdade nos setores intensivos em tecnologia que demandam cadeias industriais complexas e que se estendem por vários continentes. Estes setores experimentam uma atualização tecnológica permanente, que demanda investimentos de PD&I planejados em médio e longo prazo e de significativa disponibilidade de capital para investimento de risco, algo somente viabilizado em mercados globais. É isso que demonstram exemplos de empresas industriais brasileiras, que no últimos 20 ou 30 anos tornaram-se multinacionais. A experiência de sucesso destas empresas enseja lições valiosas. Para sobreviver, a empresa industrial precisa ter padrão mundial, com uma cadeia global de suprimentos e de clientes.
A reindustrialização do Brasil vai exigir um esforço coordenado da sociedade, que depende da participação da academia, e a da USP em particular. Em primeiro lugar, a atividade industrial competitiva moderna é fortemente dependente de um fluxo constante de recursos humanos capacitados nas mais modernas tecnologias. É evidente que, quanto maior a parcela da população economicamente ativa com capacitação vocacional elevada (nível superior ou técnico avançado), maiores serão a produtividade e o crescimento econômico.
A USP possui uma grande capacidade de formação de recursos humanos de nível superior tradicional, que pode ser aperfeiçoada para formar profissionais criativos e capacitados para a aprendizagem permanente. É também necessário atualizar a formação de profissionais de mercado dentro dos mais novos conceitos e tecnologia, o que exige escalar a educação continuada, uma tarefa facilitada pelas modernas tecnologias de aprendizagem aberta. Um desafio particular é preparar egressos da pós-graduação, particularmente das áreas de tecnologia e informação, para desenvolver as atividades de PD&I na indústria, única forma de atingir e manter os padrões globais de competitividade necessários à indústria e ao País.
O segundo desafio é aprofundar o apoio à inovação, o que exige derrubar os muros que nos separam da sociedade, aprofundando a colaboração com a indústria e a sociedade em geral. Sem esta colaboração, os conhecimentos gerados na universidade – de nível de maturidade tecnológica tipicamente baixo – raramente chegam ao mercado, condição para que tragam benefícios tangíveis para a sociedade. Isto requer o estabelecimento de canais estruturados de diálogo e colaboração permanentes entre pesquisadores, associações setoriais e empresas líderes, buscando identificar oportunidades, como, por exemplo, a produção e atualização de rotas tecnológicas e de ambientes cooperativos de inovação que sejam abertos à adesão de empresas, como é o caso do hubIC (hub de inovação em construção digital) voltado para a construção, criado pela USP e a ABCP. Um dos desafios é difundir e criar mecanismos ágeis que permitam conectar de forma criativa o conhecimento de múltiplas disciplinas, gerando soluções inovadoras para problemas reais da sociedade e da indústria e que sejam atrativas.
Diferente da soft-tech, a inovação industrial é tipicamente deep-tech, que exige conhecimentos científicos, substancial infraestrutura de pesquisa, ambos disponíveis tipicamente nas universidades. A introdução da inovação deep tech disruptiva no mercado exige parceiros que possuam capacidade técnica e sejam capazes de realizar investimentos de risco de ordens de grandeza superiores aos investidos na universidade, incluindo a concepção de novas rotas de fabricação, a construção dessas novas fábricas e o desenvolvimento de cadeia de suprimentos e mercados. Felizmente, dispomos de financiamentos como os da Fapesp – PIPE e PITE, e a criação da Embrapii – Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial, que financia parcialmente a pesquisa em unidades credenciadas e com capacitação garantida, reduzindo o risco do investimento inicial. A USP vem progressivamente se adequando e desenvolvendo mecanismos ágeis de contratos e novas formas de parceria, organizando grandes projetos interdisciplinares em cooperação com a indústria. Este processo precisa ser aperfeiçoado e escalado. Um desafio particular é a implantação dos mecanismos de colaboração com startups deep-tech que não dispõem de recursos para investir na pesquisa, em especial as oriundas das atividades dos grupos USP.
Finalmente, a universidade deve se envolver na formulação de políticas públicas consistentes para promover a industrialização com padrão global. Isto inclui incentivos para inovações que aumentem a produtividade e reduzam progressivamente o impacto ambiental da indústria. É particularmente urgente o desenvolvimento de uma política pública de médio prazo previsível que seja capaz de precificar o carbono, ferramenta adotada nos países desenvolvidos para viabilizar as novas tecnologias que irão ser dominantes no futuro. São também necessárias políticas públicas que garantam o oferecimento de matérias-primas e energia limpas, abundantes e de custo competitivo, incentive inovações que produzam soluções competitivas no mercado global e adequadas às mudanças climáticas, simplificações e modernização do sistema tributário e ainda melhorias profundas no funcionamento da justiça. Incidentalmente, estas políticas não interessam somente à indústria, mas coincidem com a busca de melhor qualidade de vida para todos.
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Vanderley M. John é engenheiro civil, professor titular da Poli-USP, coordenador da unidade Embrapii Centro de Inovação em Construção Sustentável e do hubIC Hub de Inovação em Construção Cimentícia.
João Fernando G. de Oliveira é engenheiro mecânico, professor titular aposentado da EESC-USP, sócio-diretor da Scenario Automation e presidente do conselho da Embrapii.