Buenos Aires, entre o divã e os jacarandás em flor

Por Marcello Rollemberg, editor de Cultura do “Jornal da USP”

 13/12/2019 - Publicado há 4 anos
Marcello Rollemberg – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Buenos Aires está linda. Neste final de primavera, com os jacarandás em flor margeando avenidas como a enorme e ampla 9 de Julio, o céu sem nuvens, a cidade impressionantemente limpa – para quem a viu não faz nem um ano – e o trânsito nem tão caótico assim, a capital de todos os argentinos parece tentar recuperar o glamour de tempos idos. Parece. Porque, como diz aquela velha frase, “por fora, bela viola, por dentro…”.

Jacarandás em flor no bairro da Recoleta – Foto: Carla Risso

Olhe mais atentamente: há muita gente nas ruas, mas poucas nas lojas. Os preços estão nas alturas – apenas a alimentação, pasmem, está a valores mais acessíveis –, a relação peso x dólar, a 1 x 60, deixa a economia mais uma vez à beira de um ataque de nervos. Em agosto do ano passado, um dólar comprava 20 pesos argentinos. Em fevereiro deste ano, comprava 40 pesos. Agora, compra 60, quiçá 65. E a conta só faz subir. Bom para o turista? Não necessariamente, porque mesmo com o câmbio favorável até para os brasileiros – 1 real compra entre 13 e 15 pesos –, os preços em geral, como já se disse aqui, não estão nem um pouco convidativos. A não ser que você queira comprar só medialunas e alfajores. Mas descarte os da Abuela Goye, um alfajor, digamos, “nutella”: custam coisa de quatro vezes mais do que os tradicionais e mais populares. Tem turista que encara o desafio, mas as lojas da abuelita andam mais vazias do que de costume.

Mas o caso aqui não é falar de acepipes portenhos. A questão é a alma e a mente do argentino. Mas dá para dimensionar como está o argentino só a partir de Buenos Aires? Talvez. Não é o caso de levarmos em consideração aquela frase atribuída ao genial – e conservadoríssimo – Jorge Luís Borges, que dava conta que “a Argentina é Buenos Aires. O resto é deserto e índios”. Afinal, do norte mais assemelhado ao Peru e à Bolívia – Jujuy e Salta que o digam –, ao gelado sul patagônico, passando pelas vinícolas de Mendoza, quase ali no Chile, a Argentina é um cadinho cultural e, algumas vezes, étnico. Mas é Buenos Aires sua grande síntese.

O país tem cerca de 45 milhões de habitantes. Só a área metropolitana da capital federal chega a 14 milhões. Ou seja, um terço da população está ali, entre os bares da Boca, o burburinho do microcentro e os limites de Avellaneda. Então, sim, Buenos Aires dá o tom de como o argentino está encarando seus desafios cotidianos. Que não são poucos.

E a recente posse do novo presidente, Alberto Fernandez, não parece trazer muito otimismo. Até porque otimismo não faz, digamos, parte da essência argentina. A depressão, sim. Ninguém cria o tango impunemente. Não é à toa que Buenos Aires é uma das cidades com mais psicanalistas no mundo. Os especialistas fazem parte da Previdência Social e são frequentados por quase metade da população. “Na Argentina, a psicanálise não é apenas uma terapia, é uma ideologia”, disse, há alguns anos, a analista Sara Gola à revista Meridiani.

E nem mudanças políticas, que acenam com possibilidades de mudanças, parecem que vão deixar o divã vazio. Porque poucos por lá acreditam em um câmbio de fato. Nos quatro dias que passei em BsAs (como a cidade é nomeada) em finais de novembro, a apatia com o cenário político local era grande. Quando Maurício Macri assumiu a presidência, havia a proposta de mudança depois de anos da família Kirshner, Néstor e Cristina. Agora, com sua saída – e a volta de Cristina ao poder, desta vez com uma bem tramada vice-presidência –, não parece mais haver motivos para empolgação. Macri fez muito menos do que prometeu, a crise econômica está aí para provar. A única coisa a seu favor é que, nas últimas décadas, foi o único presidente não peronista a concluir um mandato. Pouco, muito pouco.

Já a dupla Fernandez-Cristina também não empolga. “Mais do mesmo. Ela é acusada na Justiça, agora será Macri. Não muda nada e nós continuamos ladeira abaixo”, me disse um taxista pra lá de cético.

Talvez as últimas décadas de promessas não cumpridas tenham levado a este estado de espírito. O argentino cansou de ser ludibriado: a artificial paridade do austral (que substituiu o peso por um período) com o dólar e que, quando fez água, foi um tsunami; o “corralito”, um confisco muito pior do que aquele de Fernando Collor; presidentes renunciando e se alternando no poder em prazo curtíssimo; o kirshnerismo surgindo como derivação do peronismo. E os sem-teto aumentando nas ruas, senhores bem vestidos (com ternos cheirando a naftalina) pedindo dinheiro – “una moneda de su país” –, a economia solapada. Não há panelazo que mude isso. Até porque, como disse uma amiga portenha, até essa forma de protesto perdeu um pouco sua essência. “O argentino reclama de tudo, qualquer coisa vai para as ruas. Para quem está de fora, parece participação política, mas não é, necessariamente. É vontade de reclamar, só isso. E de tanto bater panela por qualquer coisa, o protesto acaba perdendo sua força.” Algo para se pensar…

Só uma coisa não perde a força entre os portenhos: a fé na tradição e na sua história cultural. O que, no final das contas, acaba servindo de amálgama para o espírito portenho e bálsamo para as mazelas cotidianas.

Gente que ainda fala de Carlos Gardel como se estivesse vivo – “Carlito está cantando como nunca” –, que vê em Eva Peron uma quase santa – e não são poucos os que se benzem diante de seu mausoléu no cemitério da Recoleta –, que curte a parrilla de final de semana, que ama as livrarias e o futebol e que bebe fernet com coca-cola e mate amargo. E nem os recentes gols de Gabigol pelo Flamengo na final da Libertadores contra o tradicional River Plate são capazes de mudar o quadro. Mas, se for preciso, é só procurar o psicanalista mais próximo, passando por avenidas com jacarandás em flor.

 


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