Foto: Reprodução/Arquigrafia

Projeto Arquigrafia conta histórias da arquitetura brasileira com imagens

Com 13 anos de vida, projeto já é um dos maiores acervos imagéticos digitais colaborativos da área de arquitetura da cidade de São Paulo e do Brasil

 02/12/2022 - Publicado há 2 anos

Arte: Guilherme Castro

Você já parou para pensar quantos prédios, monumentos, construções ou espaços públicos foram destruídos por guerras, como a que acontece atualmente na Ucrânia, ou simplesmente foram demolidos para dar lugar a novas construções a fim de acompanhar o progresso e a modernidade ? Esta é uma realidade que nos acompanha há muito tempo e que vem preocupando pesquisadores de algumas áreas.

O patrimônio arquitetônico é composto de edifícios, na sua maioria representativos, que se destacam por seus espaços, formas, estilos, época de construção, técnicas construtivas utilizadas, entre outros aspectos fundamentais, para ajudar a contar a nossa história. Porém, o descaso com o patrimônio arquitetônico e cultural brasileiro, de maneira geral, e as recentes perdas à memória coletiva, como o incêndio no Museu Nacional no Rio de Janeiro, a destruição de parte da Cinemateca Brasileira e o crescimento e adensamento das cidades, ampliam o risco de perdas.

Apesar de existirem hoje, pelo menos no Brasil, leis que colaboram para a preservação do patrimônio urbano e arquitetônico, o uso da tecnologia e a internet têm facilitado o registro e o armazenamento dos registros desse patrimônio por meio de fotografias, desenhos, vídeos e  arquivos digitais. Esse é um dos objetivos do Projeto Arquigrafia 4.0, sediado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), em parceria com outros institutos da USP e da UFSCar, com apoio da Fapesp.

Coordenado pelo professor Artur Rozestraten, o projeto vem há mais de 13 anos se constituindo em um dos maiores acervos imagéticos digitais colaborativos da área de arquitetura da cidade de São Paulo e do Brasil, contando com a participação de pesquisadores associados de diversas áreas do conhecimento, da ciência da computação ao design e da ciência da informação à psicologia social. Dentre eles, a historiadora e professora da FAU-USP, Beatriz Bueno.

Segundo a professora, há uma relação umbilical entre história e arquitetura. Pois as relações sociais se fazem no espaço e deixam marcas na paisagem. A arquitetura é uma dessas marcas. Através dela é possível perceber a passagem do tempo. “Os tempos coexistem na paisagem contemporânea. Ensinar história é ensinar a ler nas rugosidades do presente – para usar uma expressão de Milton Santos – as camadas desiguais de tempos amalgamadas na paisagem contemporânea para projetar sobre seu futuro”, explica.

Ela complementa que a plataforma Arquigrafia dá voz a todos os interessados em patrimônio e memória cultural e não se restringe aos usuários especializados, acadêmicos ou eruditos. “Além de ser aberta e de acesso livre, é desenhada para ser participativa. Nesse sentido, é um repositório de memórias da arquitetura oficiais e não oficiais, sendo memórias e sensibilidades de todos os apaixonados por arquitetura nas cidades”, finaliza.

Beatriz Bueno - Foto: Arquivo pessoal

Beatriz Bueno - Foto: Arquivo pessoal

História, tecnologia e futuro

Uma das maiores dificuldades da humanidade nos dias de hoje é encontrar registros arqueológicos consistentes, imprescindíveis para explicar, por exemplo, a origem humana neste planeta ou, quem sabe, registros que apontem para a confirmação da existência de cidades como Atlântida ou o “El Dorado”, nas Américas. Em uma realidade mais próxima aos nossos dias, registros que possam revelar particularidades a respeito de uma época, de um acontecimento ou até mesmo do patrimônio arquitetônico já não existente. Se os pergaminhos, livros e mapas ajudaram e ajudam neste processo, hoje contamos com a internet e a ciência da informação.

Segundo a professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e pesquisadora em ciência da informação, associada ao projeto Arquigrafia, Vânia Lima, a Biblioteconomia e a Ciência da Informação têm por objetivo a preservação, armazenamento e a organização dos acervos documentais, sejam eles físicos ou virtuais, para disponibilização e acesso ao conhecimento ali registrado, seja esse acesso realizado por especialistas ou pelo público em geral.

“A ciência da informação estuda a informação, desde a sua criação até a sua utilização, passando pelas questões de armazenamento e tratamento registrados nos mais variados suportes. Para a modelagem conceitual da plataforma, pelos colegas da ciência da computação, é essencial contar com os princípios e instrumentos da biblioteconomia e ciência da informação, na definição dos atributos e valores dos metadados que possibilitarão a organização, a representação e a recuperação da informação e do conhecimento em arquitetura e urbanismo, onde se inclui a questão da preservação do patrimônio arquitetônico”, esclarece a professora Vânia.

Vânia Lima - Foto: Arquivo pessoal

Vânia Lima - Foto: Arquivo pessoal

Outro aspecto inovador apontado pela professora é como a plataforma  pode vir a colaborar com a preservação e o acesso às informações sobre determinada edificação. Segundo ela, o sistema poderá funcionar de modo que responda à consultas simples, do tipo: “Como é a fachada do Teatro Ramos de Azevedo?”, ou mais elaboradas, como “a transformação da cidade de São Paulo antes e depois do plano de avenidas de Prestes Maia”. “Isso será possível porque as imagens disponibilizadas na plataforma são documentos, digitalizados ou nato digitais, e, como tais, são registros de um conhecimento, portanto, disponibilizam informações que poderão ser utilizadas para a tomada de decisões quanto à preservação do patrimônio arquitetônico”, adianta.

Hoje a plataforma do Arquigrafia contribui para a preservação do patrimônio arquitetônico e da própria arquitetura brasileira por meio do seu acervo. Além de ter incorporado o acervo imagético da biblioteca da FAU, conta com mais de 13 mil imagens desde os anos de 2010, que remetem a espaços urbanos, prédios, praças, e estruturas que compõem o patrimônio arquitetônico brasileiro e conta com imagens e vídeos incorporados ao acervo por colaboradores de todo o País.

Arquigrafia e patrimônio arquitetônico

Para aprofundar o tema ouvimos o coordenador do projeto Arquigrafia e professor da FAU-USP, Artur Rozestraten, e a conversa serviu para entender melhor o processo entre a plataforma e a preservação do patrimônio arquitetônico.

Perguntamos a ele como se dá a relação entre arquitetura e história. Ele nos revelou que as relações entre arquitetura e história são muito profundas, pois essa abordagem pode ocorrer a partir de qualquer fenômeno arquitetônico. Ele entende que essa relação é indissociável de uma compreensão da história e todos os fenômenos arquitetônicos que são entendidos como fenômenos que se perpetuam e se transformam no tempo, se tornando um índice social. “A história está presente nas características gerais de uma sociedade, dos seus valores, do seu imaginário, das suas formas de habitar, das suas maneiras de representar a arquitetura”, explicou.

Perguntamos como ele avalia a plataforma do projeto Arquigrafia enquanto aliada à preservação do patrimônio arquitetônico e histórico. O professor  respondeu que percebe a existência de três dimensões distintas e complementares com relação ao patrimônio, que enfocam na atividade: a primeira é que o projeto tem uma coleção de representações fotográficas e desenhos de edifícios e espaços públicos que em si são parte do nosso patrimônio material, do nosso patrimônio construído. A segunda é a possibilidade de pensar que essas imagens e fotografias, especialmente as que integram as coleções públicas, são também patrimônio e adquirem esse sentido de compartilhamento patrimonial muito próprio dos acervos de museus e de coleções das nossas bibliotecas. Por fim, ele entende que a produção contemporânea de imagens digitais se soma àquilo que já foi consolidado como parte do nosso património e acrescenta uma camada em movimento e que gradualmente vai assumindo essa característica patrimonial com o passar do tempo.

Artur Rozestraten - Foto: Arquivo pessoal

Artur Rozestraten - Foto: Arquivo pessoal

Questionamos ainda sobre como, na prática, o acervo do projeto colabora com patrimônio arquitetônico. Segundo o professor, isso ocorre a partir das imagens que estão disponíveis na plataforma colaborativa do Arquigrafia, pois com elas é possível contar histórias sobre um lugar, sobre como esse lugar se transforma no tempo, sobre como esse lugar é percebido e registrado em imagens a partir de perspectivas distintas, ou seja, na visada de pessoas diferentes que têm interesses específicos e que se relacionam com esses lugares por meio de uma produção de imagens. “Essa riqueza e essa diversidade de compreensões de um mesmo espaço ou edifício, que reconhecemos como sendo uma construção coletiva de múltiplas compreensões a respeito das cidades e do nosso patrimônio construído”, complementou.

Sobre o fato da união e da preservação de acervos de outras instituições serem importantes para a preservação do patrimônio arquitetônico, Rozestraten afirmou que o compartilhamento de imagens provenientes de acervo públicos e privados pode encontrar na plataforma uma condição de preservação e de difusão, justamente por conta da digitalização desses acervos e da existência de um material disponível on-line que duplica o acervo físico, material original. “Nesse sentido, a plataforma colabora, sim, para a preservação do material original, entendendo que esse material original sempre será fonte de futuras digitalizações. E é o material fotográfico original que demanda todos os cuidados, justamente por ser essa fonte onde ou sobre a qual futuras digitalizações serão feitas”, lembrou.

Para finalizar, questionamos se realmente é possível contar uma história ou recriar ambiente por meio de registros fotográficos. Sobre isso, o professor é categórico em afirmar que sim, “é possível pensarmos que uma coleção de imagens pode, sim, contribuir para o restauro, a reconstrução, a intervenção em um edifício que, eventualmente, sofreu algum tipo de transformação, algum tipo de dano ou perdas significativas. Afinal de contas, essas imagens tornam registros reais, elas podem ser entendidas como documentos de um determinado estado daquela edificação, das suas condições materiais, do seu sistema construtivo, da sua forma, e por isso podem ser recuperados a partir de imagens fotográficas”, finalizou.

Edifício Wilton Paes de Almeida, um exemplo da preservação do patrimônio arquitetônico

Um bom exemplo da relação entre a preservação da memória do patrimônio arquitetônico, cultural e histórico e a iniciativa do Arquigrafia pode ser confirmado a partir do incêndio no edifício Wilton Paes de Almeida, que culminou no seu desmoronamento. Projetado pelo arquiteto Roger Zmekhol em 1961, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, e considerado um arranha-céu na época, o incêndio causou, além da perda irreparável de vidas, a destruição de um exemplar da arquitetura moderna brasileira, tombado em 1992 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp).

A tragédia, ocorrida no dia primeiro de maio de 2018, chamou a atenção da sociedade e da mídia para a situação do edifício, que se encontrava esquecido e abandonado desde meados dos anos 2000 e que havia sido ocupado e era habitado desde 2015. O Arquigrafia foi uma das plataformas de busca de imagens desse edifício na internet após o incêndio e seu desabamento completo. Foi então que o público percebeu que o olhar sensível de uma jovem arquiteta, usuária e colaboradora do sistema, havia produzido e compartilhado on-line uma série original e única de 10 imagens fotográficas do edifício Wilton Paes de Almeida feitas em 2014, sob uma licença Creative Commons.

Edifício Wilton Paes de Almeida - Foto: Reprodução/Arquigrafia

As fotografias apresentam o edifício em sua situação urbana, de forma geral e em detalhes, possibilitando apreender tanto suas qualidades arquitetônicas quanto seu estado de abandono. A partir daquele momento, a iniciativa fotográfica passou a ter um valor patrimonial significativo, indicando, de maneira exemplar, uma contribuição cultural-educacional-patrimonial efetiva da dimensão coletiva de colaboração iconográfica proposta pela plataforma.

A constituição de uma coleção digital gratuita e aberta sobre a arquitetura e o urbanismo brasileiros é o exemplo do potencial da Experiência Arquigrafia 4.0 em produzir resultados concretos, verificáveis, que podem amparar, em termos científicos, tecnológicos e metodológicos, protótipos e pilotos derivados, iniciativas similares e políticas públicas pertinentes à arquitetura.

Texto: Ulysses Varela,  jornalista bolsista JC-3 Fapesp junto ao projeto Experiência Arquigrafia 4.0


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