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Auditório Ruy Barbosa, um dos locais restaurados na Faculdade de Direito da USP - Foto: Reprodução/Facebook
Prédio centenário do Largo São Francisco une modernidade e preservação para receber estudantes da USP
Trabalho de restauração na Faculdade de Direito da USP envolve apoio de ex-alunos e pretende modernizar estruturas para as gerações atuais e futuras de estudantes, preservando o patrimônio histórico e cultural
Que tipo de alterações uma sala de aula com décadas de existência precisa para receber os alunos de hoje? E como realizar as obras sem alterar suas características históricas e culturais mais marcantes? Esse é o caso do prédio da Faculdade de Direito (FD) da USP, no Largo São Francisco, patrimônio histórico da cidade de São Paulo que vai completar cem anos em 2030. Esse centro importante para a história do ensino jurídico brasileiro e para a memória e identidade de São Paulo está passando por obras para adequar suas salas às estruturas necessárias ao ensino no século 21. Os trabalhos também incluem os espaços que precisam de manutenção e restauração.
O edifício da SanFran, como é chamado pelos estudantes, é tombado como patrimônio histórico e cultural pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo (Conpresp) e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado de São Paulo. Por isso, as técnicas para as melhorias em tecnologia e conforto estão de acordo com as diretrizes dos órgãos de preservação e as obras estão sob a responsabilidade da Superintendência do Espaço Físico (SEF) da USP.
A restauração segue um Plano Diretor de Preservação, desenvolvido em 2020 pelos arquitetos e urbanistas Marcio Coelho e Ana Marta Ditolvo e aprovado com a supervisão do Conpresp, em nível municipal, e do Condephaat, em nível estadual. “É um instrumento para entender o edifício na sua totalidade, seu tombamento e como ele deve ser preservado, além de definir diretrizes e prioridades de preservação”, explica Marcio.
“Muitas cadeiras estavam danificadas e não havia tomadas para carregar os computadores”, conta Celso Campilongo, diretor da FD, sobre o estado anterior às obras das salas de aula. “E a faculdade tem seu patrimônio preservado, a única escola de todo o Brasil onde se ensina o Direito desde 1827.”
O diretor da FD Celso Campilongo, à esquerda, e o arquiteto Marcio Coelho, à direita - Fotos: Marcos Santos/USP Imagens
Do ano de sua criação até 1930, a SanFran esteve instalada no Convento São Francisco, que ocupava o mesmo terreno do prédio atual da FD. Depois, a estrutura do Convento foi parcialmente demolida para que se construísse o edifício existente hoje e que comemora seu centenário em 2030.
A modernização e manutenção cobrem mesas, cadeiras, pisos, lambris, pintura, iluminação, forro, ar-condicionado, tratamento acústico e parte elétrica, de áudio e vídeo, com instalação de projetores. Elementos arquitetônicos e o mobiliário, como vitrais, lustres e quadros, também estão sendo restaurados em outros braços da iniciativa. Das ações prioritárias, em primeiro lugar está a reforma da cobertura, já em andamento, para lidar com problemas de infiltração, além de outras questões que representam risco à saúde da comunidade que frequenta o prédio.
Recuperação, modernização e preservação
De 2020 para cá, já foram 17 de 25 salas reformadas nessa primeira etapa. Futuramente, outras salas podem receber planejamentos. A restauração mais recente foi nas salas Pires da Motta e Cesarino Júnior, inauguradas dia 13 de maio. É a diretoria da faculdade que coordena o prosseguimento do projeto.
Sala dos Estudantes
Sala dos Estudantes depois da reforma - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Sala dos Estudantes antes da reforma - Foto: Divulgação/FD USP
É um importante espaço na história da faculdade. Em setembro, sediou a leitura da sentença do julgamento simbólico do Tribunal Permanente dos Povos, que condenou o então presidente da República Jair Bolsonaro por crimes contra a humanidade cometidos em sua gestão da pandemia de covid-19. A reserva da sala para o julgamento foi um pedido da Comissão Arns e outras organizações e viabilizada por um ofício assinado por dois professores da faculdade. Para a restauração do espaço, houve conversas com o Centro Acadêmico XI de Agosto, responsável pela administração da sala.
Sala Ada Pellegrini
Sala Ada Pellegrini depois da reforma - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Sala Ada Pellegrini durante a reforma - Foto: Divulgação/FD USP
É a primeira dependência da FD nomeada por uma professora. Ada foi a primeira mulher a obter o título de doutora em Direito pela instituição e também a primeira docente de Direito Processual da faculdade. A sala é bem diferente das demais por ter terminado de ser reformada antes da instauração do plano diretor: o forro vermelho, por exemplo, não segue as diretrizes. Para reformas futuras, há um projeto de adequação para que o forro se ajuste ao padrão das outras salas.
Sala do Júri após a reforma - Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Sala do Júri
Inaugurada em maio de 2022, é a primeira da faculdade voltada para a simulação de julgamentos de júri e dos conflitos de arbitragem, com telão, púlpito e cadeiras para plateia, advogados e juízes. Antes o espaço era usado para atividades administrativas.
Um projeto de longo prazo com envolvimento dos ex-alunos
O Plano Diretor de Preservação da FD se constituiu a partir de um levantamento sobre o estado atual do prédio nos graus de conservação, originalidade e importância dos ambientes. Ele estabelece de forma permanente diretrizes e padronizações a serem seguidas para futuras alterações nas estruturas, com orientações sobre os tipos de obras e materiais mais adequados. Segundo Marcio Coelho, os procedimentos consideram o tamanho do edifício e a diversidade de seus espaços, além do montante de verba necessária, que é mais viável de ser angariado a longo prazo. A pesquisa histórica sobre o edifício foi realizada por Heloisa Barbuy, professora do Museu da FD.
Até então, a faculdade não possuía orientações de reforma que seguissem as determinações dos órgãos de preservação do patrimônio. As alterações eram feitas de modo pontual e, por isso, nas salas que entraram em obra antes da instauração do plano, há estruturas que fogem às características originais do edifício, como a iluminação e o material dos pisos. “Ao longo do tempo, isso gera o problema de não haver uma unidade na forma como essas obras são feitas”, explica Coelho. Agora, projetos iniciados antes do plano por outros escritórios de arquitetura devem seguir suas diretrizes a partir de revisões específicas, se necessário, para poderem prosseguir.
O financiamento de todo o projeto se dá por recursos da USP e do programa Adote uma Sala, uma iniciativa anterior ao plano diretor em que ex-alunos da FD se reúnem por meio de suas turmas, escritórios e instituições para assumir a responsabilidade pela reforma e manutenção da sala escolhida durante cinco anos. O objetivo do programa também é permitir que as novas gerações de estudantes aproveitem ao máximo as estruturas da faculdade. “A São Francisco tem essa comunidade muito forte dos ex-alunos, que mantêm laços com a faculdade”, conta Coelho.
Os nomes dos doadores ficam grafados em placas instaladas na entrada das salas. Confira mais informações sobre esse programa de custeio nesta matéria do Jornal da USP.
O plano diretor recebeu o Prêmio Boas Práticas de Preservação do Patrimônio Cultural, concebido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP), que reconhece experiências bem-sucedidas de restauro e conservação para que se tornem referências para o ensino, formação e exercício profissional de arquitetos e urbanistas. “O maior ganho com a implantação do plano foi o processo de conscientização de todas as partes, não só dos dirigentes da escola, mas de toda a comunidade jurídica, de que este é um patrimônio que pode ser modernizado sem perder seu grande valor histórico e cultural”, conta Ana Marta Ditolvo, arquiteta especialista em preservação e a outra autora do plano diretor.
Ana Marta Ditolvo, uma das arquitetas responsáveis pelo Plano Diretor de Preservação da FD - Foto: Arquivo pessoal
Técnicas de restauração
Confira algumas técnicas que estão sendo aplicadas na restauração da FD e orientações sobre como devem ocorrer as obras:
Prospecção na parede do corredor da FD
Estratigrafia
É o nome para o estudo das ações construtivas do edifício
Prospecção exploratória
Por meio dessa técnica, são removidas e identificadas as camadas de pintura e de revestimento e os materiais das superfícies utilizados ao longo do tempo. O processo permite analisar as alterações históricas pelas quais as salas passaram
Qual cor?
A partir dessa coleta de dados, a equipe técnica decide, por exemplo, qual cor aplicar na nova pintura das paredes — que não necessariamente é a cor da primeira camada. Por enquanto, a diretriz é usar a cor branca fosca, mais neutra, em todos os espaços da FD, sem remover as camadas atuais
Projeto cromático
Mais adiante, o plano diretor inclui o desenvolvimento de um estudo do projeto cromático para identificar todas as tonalidades das cores originais do prédio e definir aquelas que devem ser usadas nas pinturas futuras
Detalhe da manivela e do forro na Sala do Júri
Madeira recobre várias áreas da Sala João Arruda
Manivela
As manivelas originais das janelas foram mantidas em algumas salas.
Forro
O forro precisou ser atualizado para ter uma estrutura adequada às instalações técnicas de tecnologias mais avançadas, como projetores e ar condicionado. O plano determina que a estrutura nova fique afastada da parede para que, nas salas onde houver, parte do forro original e os detalhes decorativos de seu acabamento estejam visíveis.
Madeira dos pisos e lambris
Para as partes que precisem de restauro, há um tratamento específico a ser seguido: a eliminação de cupins nas áreas infestadas, junto da aplicação de uma camada de proteção química para impedir novas proliferações desse e outros insetos; o tratamento da umidade provocada por infiltrações; a reidratação da madeira, para protegê-la e dar um acabamento; e a recuperação das partes degradadas por meio de peças idênticas, dentre outros procedimentos.
Tijolo aparente
Em três salas da faculdade, o tijolo das paredes está visível, com um exemplar até guardado em uma caixa especial. Uma delas é a dos Estudantes. Apesar de essa não ser a disposição original das paredes, foi mantida pois mostrar os tijolos é uma forma de contar a história da Bucha*, organização secreta que reunia alguns alunos da FD e teve uma atuação influente na política da República Velha do Brasil. Dada essa razão, o descasque foi aceito pelos órgãos de preservação. Caso as paredes sejam recobertas futuramente, o plano determina a diretriz de que elas devem seguir o padrão das demais do prédio.
*Bucha: Fundada na década de 1830 por Júlio Frank, professor alemão naturalizado brasileiro que dava aulas de história e filosofia no que hoje pode ser considerado um cursinho preparatório para ingressar no curso.
Fotos: Marcos Santos/USP Imagens
Mas por que restaurar um prédio tão antigo?
Muitas pessoas acreditam que não vale a pena manter prédios antigos, que seria menos trabalhoso demoli-los e construir novos a partir do uso das tecnologias mais modernas. “Nós vivemos numa cidade que cresceu com o pensamento de que o bom é o novo, o novo é sinônimo de progresso”, explica Coelho. Segundo ele, há séculos a cidade de São Paulo vem se desenvolvendo com a lógica de que não há outra solução senão derrubar e refazer tudo para resolver seus problemas. Mas como o ciclo de reconstrução continua, “percebemos que esse novo também não está resolvendo as questões da cidade”, avalia. E essa troca afeta até prédios em bom estado.
Além dessa questão, do ponto de vista da sustentabilidade, reformar os prédios é usar os recursos de forma mais eficiente e reduzir o impacto ambiental das construções. “Você chega a uma relação muito próxima da preservação cultural com a ambiental.”
Confira algumas das salas restauradas até o momento:
Fotos: Marcos Santos/USP e Facebook/FD USP
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