A reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) começou com grande estilo e grande público neste domingo (23 de julho) em Curitiba, com apresentações culturais e cerimônias que lotaram o tradicional Teatro Guaíra, no centro da capital paranaense. O clima era de festa, mas também de reflexão, sobre as ameaças que precisaram ser vencidas no passado recente e os desafios que permanecem à frente para serem confrontados pela comunidade científica brasileira nos próximos anos.
“Essa é a nossa primeira reunião anual depois do pesadelo que matou 500 mil brasileiros acima da média mundial”, disse o presidente da SBPC e professor da USP, Renato Janine Ribeiro. Ele se referia ao fato de a mortalidade da pandemia no Brasil ter sido quatro vezes maior do que a média global — fato decorrente, segundo Ribeiro, do negacionismo científico e do descaso com a saúde pública, perpetrados por um governo de extrema direita que promoveu uma “cultura de ódio, armamento e morte” no País.
“A SBPC, todos sabem, não é uma organização partidária. Seu estatuto e sua tradição determinam que ela não se subordine a nenhum partido, mas isso não nos impede de tomar posições políticas, sempre que política se escreva com pê maiúsculo”, disse Ribeiro. “A grande política do mundo de hoje parte de um princípio básico, o compromisso com a verdade. Não é fortuito que cientistas e jornalistas sejam alvo preferencial do ódio da extrema direita negacionista, aqui e mundo afora. A ciência lida com a verdade dos fenômenos; a imprensa livre, com a verdade dos fatos. Ora, a verdade é insuportável para quem vive da mentira e do ódio.”
“É preciso agora cortar a erva daninha do ódio e da letalidade pela raiz; e a ciência é nossa principal arma para tanto”, concluiu Ribeiro.
A cerimônia contou com a participação de várias lideranças do mundo acadêmico e político, incluindo a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, do PCdoB, que anunciou um investimento de R$ 3,6 bilhões na recuperação e expansão da infraestrutura nacional de pesquisa. “O nosso famoso Proinfra está de volta”, disse a ministra, referindo-se ao tradicional programa de apoio à compra de equipamentos e manutenção de instalações de pesquisa no País — fortemente desidratado nos últimos anos pelos cortes orçamentários do governo federal.
Os recursos serão distribuídos nos próximos dois anos por meio de editais da Finep, a agência de fomento vinculada ao ministério, responsável por gerir os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) — que foi totalmente descontingenciado na atual gestão e tem R$ 10 bilhões em caixa para investimentos neste ano. Segundo Santos, R$ 300 milhões serão destinados exclusivamente às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por meio de editais realizados em conjunto com as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) dos Estados. “Nosso objetivo é ampliar o número de equipamentos científicos nessas regiões, descentralizando a base tecnológica do País”, disse a ministra. Outros R$ 500 milhões, segundo ela, serão destinados a investimentos em temas considerados prioritários, como saúde, defesa, transição energética, transição ecológica e transformação digital.
“O Proinfra tem a perspectiva de resgatar a capacidade das nossas instituições de produzir ciência de qualidade e tecnologia de ponta, que possam ajudar o país a crescer, a reduzir a assimetrias regionais e gerar emprego e renda”, disse a ministra.
Santos foi ovacionada em vários momentos da cerimônia, em uma demonstração de apoio da comunidade científica à permanência dela no cargo, que ficou ameaçada nas últimas semanas pelas negociações políticas que visam a acomodar mais partidos do Centrão na base aliada do governo. Ribeiro reiterou ao microfone a manifestação de uma carta conjunta da SBPC e da Academia Brasileira de Ciências (ABC), divulgada em 19 de julho, em que as entidades expressam preocupação com as “notícias alarmantes” de que MCTI “estaria sendo cobiçado por aqueles que não têm compromisso com as causas do conhecimento científico e do progresso econômico e social”.
O reitor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Ricardo Fonseca, também saiu em defesa da ministra. “O MCTI não pode ser objeto de barganha de nenhum tipo”, disse.
“Estar aqui hoje, de volta com a ciência, de volta com a democracia, é um momento único, que nós temos que guardar para sempre, e lembrar que a democracia se conquista diariamente. Não podemos esquecer isso”, disse, emocionada, a presidente da ABC e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helena Nader. “A gente esqueceu, e veja no que deu.”
O presidente da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG), Vinicius Soares, exaltou a capacidade da comunidade científica do País de sobreviver ao que ele chamou de “uma noite muito longa de obscurantismo e de repressão aos cientistas”; mas alertou que “a fuga de cérebros continua” e que uma crise de recursos humanos está à vista no horizonte, em função dos milhares de jovens que desistiram de cursar ou tiveram que abandonar a pós-graduação nos últimos anos.
“Apesar de a ciência estar voltando, precisamos estar atentos”, disse Soares, que faz doutorado em saúde coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Estamos perdendo gerações e precisamos criar condições para mudar essa realidade.”
Esta é a 75a reunião anual da SBPC, cujos encontros são considerados o maior evento científico da América Latina. O evento, hospedado neste ano pela UFPR, vai até sábado, 29 de julho, com uma extensa agenda de atividades científicas e culturais, incluindo 131 debates presenciais e outros 93, realizados de forma virtual. Clique aqui para mais informações.