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Pela primeira vez, todos os Comentários Gerais do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) foram traduzidos para a língua portuguesa. A edição inédita de Comentários Gerais dos Comitês de Tratados de Direitos Humanos da ONU – Comitê dos Direitos da Criança foi uma iniciativa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e já está disponível neste link. A tradução foi realizada pela Clínica de Direito Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito (FD) da USP, em parceria com os Núcleos Especializados da Infância e Juventude e de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, com o Instituto Alana e com a Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Foram traduzidos os comentários que monitoram a Convenção dos Direitos das Crianças das Nações Unidas, com auxílio de alunos e alunas da Clínica da USP, sob a coordenação de André de Carvalho Ramos (professor associado do Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP), e revisados por defensores públicos e representantes do Instituto Alana. Para ilustrar a publicação, foi realizado um concurso de desenhos com adolescentes da Fundação Casa, em parceria com a Secretaria de Justiça e Cidadania. Ao todo foram selecionados 25 desenhos de 121 enviados.
O documento traz diretrizes para orientar governos, empresas e sociedade civil sobre os diferentes temas de que trata a Convenção sobre os Direitos da Criança. Os Comentários Gerais são documentos elaborados pelo Comitê dos Direitos da Criança, órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável por monitorar a aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança nos 196 países que a ratificaram, como o Brasil, segundo o site do Instituto Alana. Esses documentos trazem interpretações do Comitê sobre os direitos mencionados no tratado internacional e recomendações formais a esses países, abordando temas específicos e detalhando sua aplicação prática.
O documento aborda ainda medidas para garantir que outros atores, incluindo empresas, cumpram sua responsabilidade em garantir essa proteção. Entre outras recomendações, reforça o dever dos Estados em tomar as medidas adequadas para prevenir, monitorar, investigar e punir qualquer desrespeito aos direitos da criança. Inclui-se a proteção infantil frente à exploração comercial, inclusive com relação à publicidade infantil e o marketing baseado em dados.
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“O estudo da interpretação internacionalista da Convenção sobre os Direitos da Criança por intermédio da edição dos Comentários Gerais é imprescindível”, afirma o professor da USP André de Carvalho Ramos, que assina o texto de apresentação. Ramos é procurador regional da República e ex-secretário de Direitos Humanos da Procuradoria-Geral da República (2017-2019), e para ele a publicação com as traduções dos Comentários Gerais é um “passo importante na divulgação da adequada interpretação de diversos direitos previstos nos tratados de direitos humanos, o que impacta positivamente na vida cotidiana de todas e todos no Brasil”.
O que são os Comentários Gerais?
O artigo 44 determina que os Estados Partes se comprometam a apresentar ao Comitê relatórios sobre as medidas que tenham adotado com vistas a tornar efetivos os direitos reconhecidos na Convenção e sobre os progressos alcançados no desempenho desses direitos, no prazo de dois anos, a partir da data em que entrou em vigor para cada Estado Parte e, a partir de então, a cada cinco anos, como informa Ramos. Segundo ele, os relatórios devem indicar as circunstâncias e dificuldades que afetam o grau de cumprimento das obrigações derivadas da Convenção, além de informações sobre a implementação da Convenção no país.
Ramos também lembra que o Comitê recebe informes de organizações não governamentais que apresentam o chamado “relatório sombra”, que busca revelar criticamente a real situação dos direitos da criança naquele país. “Após, o Comitê aprecia o relatório oficial e as demais informações obtidas, emitindo relatório final contendo recomendações, sem força vinculante ao Estado. Além dessas observações específicas a um determinado Estado, o Comitê de Direitos Humanos elabora as chamadas ‘Observações Gerais’ ou ‘Comentários Gerais’, que contêm a interpretação do Comitê sobre os direitos protegidos pelo tratado, aqui traduzidas para o português”, destaca o professor, completando que elas “são hoje repertório precioso sobre o alcance e sentido das normas de direitos humanos”.
Atualmente, há 26 Comentários Gerais. Na apresentação, Ramos enumera os últimos adotados, a partir de 2016: sobre os recursos públicos destinados à implementação dos direitos da criança (art. 4º da Convenção, nº 19); sobre a implementação dos direitos da criança na adolescência (nº 20); o que trata da situação dos “meninos de rua” (nº 21); sobre migração internacional e seus princípios gerais, em conjunto com o Comitê dos Trabalhadores Migrantes (nº 22); sobre migração internacional e os deveres dos Estados de trânsito e destino, também em conjunto com o Comitê dos Trabalhadores Migrantes (nº 23); e sobre os direitos da criança no sistema de justiça voltado à criança e ao adolescente, em conjunto do sistema de justiça juvenil (nº 24). Em 2021, foi adotado o Comentário Geral nº 25 sobre os direitos das crianças no ambiente digital; e em 2023 foi lançado o nº 26, que trata sobre os direitos da criança com relação ao meio ambiente e às mudanças climáticas.
O que é a Convenção sobre os Direitos da Criança?
Segundo o professor da USP, neste ano são comemorados os 34 anos da elaboração do texto da Convenção sobre os Direitos da Criança. Adotada pela Resolução nº 44/25 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 20 de novembro de 1989, foi elaborada após décadas de lenta evolução de diplomas internacionais relativos aos direitos das crianças, que remonta, no plano internacional, à Declaração dos Direitos da Criança, conhecida como “Declaração de Genebra”, de 1924, ainda sob os auspícios da Liga das Nações, como explica Ramos. “Nesses primórdios, a criança não era tida como sujeito de direitos, mas como objeto da proteção por parte dos Estados.”
Foi só após a criação da Organização das Nações Unidas que deu-se início a trabalhos de atualização da Declaração de Genebra, comenta o professor, afirmando que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1959 (também denominada Declaração Universal dos Direitos das Crianças) foi aprovada em Assembleia Geral da ONU. “Tal Declaração é composta por dez princípios, os quais dialogam com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas focam especificamente os diversos direitos das crianças e os deveres de promoção dos Estados”, relata.
Segundo Ramos, “apesar da adoção de tratados gerais, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a intensa vulnerabilidade das crianças, em especial em ambientes de miséria e falta de condições materiais mínimas de sobrevivência, impulsionou a redação de um tratado de direitos humanos próprio, que desse visibilidade à necessidade de políticas de proteção aos direitos das crianças”. Essa preocupação, diz o professor, foi exposta pela Polônia em 1978, em carta à Divisão de Direitos Humanos da ONU, na qual foi incluída uma minuta de Convenção dos Direitos da Criança.
“O Brasil atuou ativamente nos trabalhos preparatórios, aproveitando, inclusive, a edição da Constituição de 1988 (a Convenção é de 1989) como baliza no reconhecimento dos direitos das crianças”, observa o professor. “Na visão da Delegação brasileira, o Brasil sempre enfatizou a relação existente entre a situação das crianças e a questão do desenvolvimento em geral, aduzindo que o texto final da Convenção deveria trazer todos os direitos humanos desde a perspectiva específica das crianças”, assegura Ramos. “Em 1989, houve a aprovação do texto do tratado a ser submetido à ratificação por parte dos Estados interessados”, complementa.
O professor lembra que a Convenção foi elaborada em um momento histórico de transição: “Em 9 de novembro de 1989, alguns dias antes da aprovação da Convenção, ocorreu a queda do Muro de Berlim, o qual simbolizava a separação e o antagonismo entre os blocos capitalista e o do socialismo real”. Ele revela ainda que sua entrada em vigor foi “meteórica”: a Convenção sobre os Direitos da Criança entrou em vigor internacional em 2 de setembro de 1990 (menos de um ano de sua edição), no trigésimo dia após a data de depósito do vigésimo instrumento de ratificação ou adesão junto ao secretário-geral das Nações Unidas. “Atualmente, é a Convenção que possui o mais elevado número de ratificações em todo o Direito Internacional, já que conta, em 2023, com 196 partes (incluindo a Santa Sé e o Estado da Palestina); apenas os Estados Unidos não a ratificaram”, declara.
Os direitos das crianças
A Convenção sobre os Direitos da Criança leva em conta o direito de que as crianças recebam cuidados e assistência especiais, em virtude da falta de maturidade física e mental, afirma o professor. “Embora outros diplomas internacionais também confiram proteção às crianças, a Convenção sistematizou não só direitos civis e políticos, mas também econômicos, sociais e culturais em um só texto, voltado especificamente para a sua proteção”, destaca Ramos. Segundo ele, a Convenção foi assinada pelo Brasil em 26 de janeiro de 1990, e entrou em vigor para o Brasil em 23 de outubro de 1990, sendo promulgada por meio do Decreto, em 21 de novembro de 1990.
No preâmbulo da Convenção constam, entre outros, tópicos como: Recordando que na Declaração Universal dos Direitos Humanos as Nações Unidas proclamaram que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais; Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade; Reconhecendo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão; e Considerando que a criança deve estar plenamente preparada para uma vida independente na sociedade e deve ser educada de acordo com os ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade. Tudo para garantir os direitos das crianças.
Leia na íntegra os Comentários Gerais dos Comitês de Tratados de Direitos Humanos da ONU – Comitê dos Direitos da Criança neste link.