Desinformação: “É como entrar no esgoto das redes todos os dias”

Daniel Bramatti, editor do Estadão Verifica, conta como funciona uma agência de checagem e reflete sobre o papel do jornalismo no combate à desinformação

 01/09/2023 - Publicado há 10 meses

Fotomontagem: Jornal da USP - Imagens: Flaticon/Mayor Icons, Freepik e Reprodução/Estadão Verifica

Se você fica cansado de tanto ver notícias falsas na internet, imagine como é a rotina do jornalista Daniel Bramatti. Todos os dias, por força do ofício, ele e sua equipe passam horas procurando, dissecando e desmentindo boatos, teorias conspiratórias, fake news e outras formas de desinformação em massa que circulam pelas plataformas digitais. “As pessoas que trabalham nessa atividade, realmente, precisam ter uma espécie de carapaça, porque é como entrar no esgoto das redes todos os dias”, relata ele.

Bramatti é o editor do Estadão Verifica, um serviço de fact-checking (checagem de informações) do jornal O Estado de S. Paulo, criado em 2018 para combater a desinformação nas eleições daquele ano. Hoje o serviço funciona com uma equipe de 25 profissionais, checando conteúdos que são enviados por leitores ou que eles mesmos detectam nas redes sociais, ou que são apontados como suspeitos pelas plataformas digitais parceiras (Facebook, WhatsApp, TikTok e Telegram). Juntando tudo, são cerca de 200 a 250 checagens por dia, segundo ele. Algumas dessas verificações são publicadas no site do Estadão Verifica e enviadas por WhatsApp a assinantes cadastrados; outras são submetidas como um relatório às plataformas, para que elas possam ajustar seus algoritmos de modo a reduzir a visibilidade desses conteúdos, marcá-los com algum tipo de aviso ou até mesmo tirá-los de circulação.

Também editor do Estadão Dados e ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Bramatti participou de um evento no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo, em 24 de agosto, que discutiu a atuação do jornalismo brasileiro na última década. “Qual é o papel do jornalista? Uma resposta fácil seria: o papel do jornalista é informar. Mas hoje, o que a gente vê é que o público não está mais interessado na informação e nos fatos”, afirmou ele. No cenário atual de comunicação digital, quem está se saindo melhor “é quem monetizou o ódio e a desinformação”, e não quem faz jornalismo sério ou advoga por causas nobres, completou ele.

Nos dias seguintes ao evento, Bramatti conversou com o Jornal da USP sobre o problema da desinformação. A entrevista abaixo se soma a uma série de reportagens especiais que o jornal vem publicando sobre esse tema desde o início de julho, chamada Desconstruindo a Desinformação.

Daniel Bramatti - Foto: Arquivo Pessoal

Como é a rotina de trabalho de vocês no Estadão Verifica?

Todos os dias a gente faz uma espécie de varredura nas redes sociais, usando ferramentas que as plataformas nos oferecem e práticas que desenvolvemos para procurar desinformação. A partir desse monitoramento, a gente prioriza determinados conteúdos para serem checados, levando em conta o potencial de viralização e os efeitos danosos que aquele conteúdo pode ter na sociedade. 

Como funciona essa parceria com as plataformas?

O Facebook nos dá acesso a uma plataforma na qual a gente enxerga conteúdos suspeitos, que são potencialmente falsos, enganosos, sem contexto e assim por diante. O TikTok, também. E tem uma ferramenta que a gente usa que é específica para o WhatsApp, porque nesse caso a gente não pode entrar e ver o que está acontecendo lá dentro (em função da criptografia das mensagens); a gente precisa da contribuição de algum usuário que nos envie um conteúdo para verificarmos se ele é falso ou não. Mais recentemente, começamos a fazer checagem também no Telegram, mas é um programa que ainda está meio que engatinhando, e nesse caso tivemos que desenvolver algumas ferramentas próprias de monitoramento.

No caso dessa varredura manual, como é que vocês escolhem onde olhar e o que procurar?

Uma coisa que ajuda muito é que os leitores do Estadão e as pessoas que acompanham o Estadão Verifica nos enviam conteúdo suspeito. Nossa linha de WhatsApp recebe cerca de 200 mensagens por semana. A gente não sabe se essa amostra é representativa do universo da desinformação, mas sabemos que, quando começa a aparecer o mesmo conteúdo vindo de diferentes fontes, isso é um indício de viralização. A desinformação é transplataforma, ela pula de uma rede para outra: se tem um vídeo circulando no WhatsApp, é muito provável que a gente vá encontrá-lo também em outras plataformas; então a gente faz uma busca ativa com base nesses indícios. Além disso, se você sabe que algum conteúdo está forte naquele dia, ou se tem um depoimento polêmico na CPI, e você sabe que aquele assunto fomenta grupos de desinformação, você pode se antecipar ao problema e fazer uma busca ativa. Aí, se você encontra algo, você já faz uma checagem, que funciona um pouco como uma vacina. Mesmo agora, que a gente está fora de um período eleitoral, a política é quem dá o ritmo da desinformação. Já tivemos a pandemia cumprindo esse papel, com muita desinformação circulando sobre o vírus, sobre falsos tratamentos, sobre vacinas; mas isso cedeu bastante agora, e a política voltou a ser esse aspecto preponderante.

Nesse contexto, como é que a polarização política se conecta com a questão da desinformação?

Tem uma conexão muito forte. Porém, isso não quer dizer que os dois polos da política sejam igualmente responsáveis pelo volume ou pelo efeito que a desinformação tem no País. Por exemplo, na pandemia, eu posso dizer com muita tranquilidade que mais de 90% dos conteúdos que circulavam nas redes e que eram nocivos em termos de saúde pública vinham de grupos politicamente motivados da direita ou da extrema direita. Tem alguns tópicos que também acendem muito a esquerda e a levam a difundir desinformação, mas são casos bem menos frequentes do que a gente vê na extrema direita, com vários influenciadores difundindo uma mesma narrativa que é feita para enganar o eleitorado deles mesmos. Eles inventam histórias para defender o Bolsonaro e atacar a esquerda que não têm nenhum sentido real. 

O fato de vários influenciadores compartilharem um mesmo conteúdo significa que tem alguém criando esse conteúdo para eles? Como funciona essa dinâmica de criação e propagação da desinformação?

A gente não tem elementos para afirmar que existe um grupo formal, digamos assim, que toda manhã faz uma “reunião de pauta” para definir os assuntos do dia. Mas é muito curioso ver como alguns temas são tratados de maneira muito similar. Isso parece indicar uma articulação, que não necessariamente é uma articulação centralizada, mas é uma forma de trabalho em rede. Existe uma conexão muito grande entre esses grupos, e há alguns softwares de visualização dessas conexões no Twitter que nos permitem enxergar isso. Eles não fazem nenhum tipo de ponte com perfis que estão fora da bolha deles, perfis que não são, necessariamente, politicamente motivados, ou perfis de grandes veículos de comunicação. Eles preferem se isolar e compartilhar informação só entre eles, o que significa que tem uma bolha gigantesca de brasileiros que estão sendo constantemente desinformados por pessoas que imitam a aparência do jornalismo. Eles publicam coisas que têm título, foto, legenda, texto, mas que de jornalismo, na verdade, não têm nada; é pura propaganda.

As plataformas têm sido muito cobradas a fazer mais contra a desinformação. Essa é uma cobrança justa, ou elas já estão fazendo o que é possível fazer?

Eu acho que há uma escala. Eu vejo que o assunto da desinformação é tratado de maneira séria por alguns setores dessas plataformas, mas a gente não sabe se há um consenso dentro das empresas com relação a isso. As pessoas com quem a gente tem contato direto são ótimas; muitas, inclusive, vêm do meio jornalístico e têm uma noção muito forte do efeito que a desinformação causa. Mas todas as plataformas poderiam fazer mais, certamente, e algumas delas poderiam fazer pelo menos um pouco, não é? Tem alguns setores dessas mídias que realmente estão devendo à sociedade, e acho que eu posso citar aqui o YouTube, especificamente. O YouTube é uma plataforma na qual tem muito conteúdo falso, muita gente monetizando a mentira, monetizando a enganação, e o YouTube não tem um programa específico de ataque a esses conteúdos, que seja uma parceria com as agências de checagem, ou que seja uma parceria com jornalistas.

Juntando o que as plataformas estão fazendo e as agências de checagem estão fazendo, isso está provocando alguma diferença? Vocês conseguem mensurar o efeito prático desse trabalho, no sentido de reduzir a circulação de desinformação nos meios digitais?

É muito difícil medir esse impacto, mas os elementos que a gente tem indicam que ele existe. A gente só consegue medir aquilo que a gente enxerga, não aquilo que escapa ao nosso radar. Com a melhoria das tecnologias, a gente consegue atacar os assuntos que são mais importantes, que têm mais efeito e que são mais virais. Quando a gente faz uma checagem, ela não tem efeito apenas sobre uma postagem específica, mas é usada como um sinal pelo algoritmo da plataforma de que aquilo é falso, e que aquilo não pode ter visibilidade ou precisa ser tirado de circulação de alguma forma. Outro efeito importante é que, em todas as checagens que fazemos, a gente preenche automaticamente uma espécie de formulário que se chama claim review, que fica invisível para o leitor, mas é detectado pelo robozinho do Google que indexa as nossas páginas. Então, quando o robozinho do Google entra lá, ele sabe que aquilo é uma checagem, ele sabe qual foi o assunto checado e qual foi o veredito, se aquilo é falso, enganoso ou não. Então, se alguém fizer uma pesquisa para saber se vacina causa câncer, por exemplo, muito provavelmente o primeiro resultado não vai ser o do boato, mas o da resposta àquele boato.

O contato constante com a desinformação pode ser muito desgastante do ponto de vista psicológico e emocional. Como é que vocês lidam com essa questão, para não enlouquecer fazendo esse trabalho?

As pessoas que trabalham nessa atividade, realmente, precisam ter uma espécie de carapaça, porque é como entrar no esgoto das redes todos os dias. Algum tipo de desgaste mental é inevitável. Às vezes eu mesmo, que tenho uma casca grossa com relação a isso, às vezes sou alertado por pessoas da minha família e me dou conta de que estou de mau humor, porque passei horas e horas vendo coisas que são revoltantes, absurdas, irritantes e tal. O que a gente procura fazer para proteger a saúde mental da nossa equipe é limitar a exposição temporal à desinformação. Então, quando alguém atinge um patamar “x” de checagens, ele ganha o direito de sair daquela rotina específica e fazer alguma outra coisa relacionada ao trabalho por um tempo, para sair um pouco do massacre do dia a dia e não ficar sempre imerso naquele esgoto, digamos assim.

Nós já falamos sobre o papel das plataformas, agora queria ouvir sua opinião sobre o papel da imprensa. Qual é a responsabilidade da imprensa nesse cenário de desinformação e de polarização que se instalou no Brasil nos últimos anos?

Tem vários aspectos aí. Um deles é que o jornalismo mostrou, nesse período recente, que pode dar uma contribuição muito positiva no combate à desinformação. A consolidação do movimento dos fact-checkers é um sinal muito importante disso. Hoje tem uma organização internacional de fact-checking, a IFCN (International Fact-Checking Network), que está presente em quase todos os países, exceto naqueles onde não há jornalismo, como Cuba e Coreia do Norte. Eu digo sempre que o jornalismo está sendo chamado a resolver um problema que ele não criou. É óbvio que sempre existiu mentira, sempre existiram boatos, mas a disseminação e a amplificação algorítmica desses conteúdos são um problema mais recente, que não é proposital, mas é intrínseco ao modelo de negócio das plataformas digitais. Se as plataformas priorizam os conteúdos que geram mais engajamento, é óbvio que ali vai haver desinformação, porque a desinformação atua muito com o emocional, com o que gera uma resposta direta do usuário e o leva a querer compartilhar aquilo com outras pessoas. 

Outro aspecto importante é o quanto nós, jornalistas, temos que ser rigorosos no tratamento daquilo que a gente publica. A gente tem que ser muito preciso; não podemos fazer títulos que permitam uma dupla leitura ou uma leitura equivocada, porque se isso acontece e o título é compartilhado, ninguém se dá ao trabalho de ler o texto e o efeito de desinformação é gigantesco. Esse cenário de desinformação nos impõe um desafio muito grande, e acho que estamos sendo muito lentos em responder a isso. Se o tratamento que a gente der, principalmente ao título, for enviesado ou for feito de uma forma que permita uma dupla leitura, a pior leitura possível é a que vai predominar, pode ter certeza. 

Em cima disso tem a erosão do modelo de negócios da imprensa…

Esse é outro aspecto que eu gostaria de citar: que tudo isso está acontecendo em meio a uma crise muito profunda do modelo de negócios da própria imprensa. As redações estão encolhendo, os jornalistas mais experientes e com os salários maiores estão sendo demitidos, as redações estão mais inexperientes, veículos pequenos estão fechando e desertos de notícia estão se formando ou se intensificando. No momento em que esse cuidado com a informação é mais necessário, tem pessoas ali que não necessariamente têm a capacidade ou a experiência necessárias para colocar isso em prática. Então é um caldo de cultura, um cenário de tempestade muito complicado. Assim como na política, não existe vácuo de informação. Se não tiver alguém ali, dando informação de qualidade, alguém vai entrar nesse espaço e dar uma informação muito ruim — uma informação que, na verdade, é desinformação.

Você disse que a política dita o ritmo da desinformação, e que essa desinformação parte principalmente da extrema direita. Nesse contexto, muita gente acha que a imprensa falhou nas eleições de 2018, ao relativizar a ameaça que Jair Bolsonaro, como um candidato de extrema direita, representava para a democracia no Brasil. Você acha que essa é uma cobrança justa?

Sim, acho que é uma cobrança justa. Eu acho que o bom jornalismo não pode tomar partido; mas também acho que o jornalismo é instado a descer desse pedestal de neutralidade quando existe uma ameaça clara ao sistema democrático. Se a imprensa como um todo — e aqui estou falando não só da imprensa brasileira, mas do mundo — normaliza candidatos que representam uma ameaça clara à democracia, ela está falhando. Candidatos que desprezam a democracia, que desprezam as instituições, que desprezam as regras democráticas, como Bolsonaro e Trump, não podem ser tratados como os demais; eles precisam ser mostrados como o que de fato são: uma ameaça à democracia.

Depois de tantos anos trabalhando nesse combate à desinformação, qual é o seu sentimento atual: está mais otimista ou mais pessimista com relação ao futuro? Como acha que as coisas vão se desenrolar daqui para frente?

Vou me colocar como levemente otimista, mas ainda em situação de alerta máximo. Acho que tem alguns avanços: o jornalismo e a academia estão mais bem preparados para analisar e se contrapor ao fenômeno da desinformação; algumas plataformas se mostram mais alertas a esse problema; e a gente vê que, por mais que a desinformação tenha sido grave no Brasil e nos Estados Unidos, esses candidatos que chegaram ao poder, vinculados a movimentos grandes de desinformação, não se reelegeram. Isso mostra que essa não é uma tendência irrefutável. Então, acho que tem alguns sinais de céu azul, mas se a gente der dois passos atrás vamos ver que as nuvens de tempestade ainda estão muito presentes e muito fortes. Então é preciso ficar muito atento; é importante que se invista mais no jornalismo e no uso de tecnologia no combate à desinformação, porque esses grupos que são politicamente e monetariamente motivados têm muitos incentivos para continuar alimentando esse cenário. 

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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