Diego Peres, estudante da Poli USP e idealizador do projeto Da Periferia Para o Mundo - Foto: Arquivo pessoal​

Da universidade pública à periferia: aluno da USP cria projeto de reforço escolar

Diego Peres, da Escola Politécnica, lidera ação com outros voluntários para disponibilizar aulas e plantões de dúvida a crianças de periferia; ele busca parcerias para facilitar acesso à internet

12/11/2020

Karina Tarasiuk

Nas sextas-feiras à noite e nos sábados pela manhã, dezenas de crianças se reúnem em uma chamada do Google Meets para assistir pela internet aulas complementares ao que estão aprendendo na escola. As aulas são divididas em dois grupos: um para estudantes do 6º e do 7º ano, e o outro para o 8º e o 9º ano – turma voltada para o “vestibulinho”, prova para ingressar no ensino médio técnico (ETEC) do Estado de São Paulo ou de institutos federais (IF).

O projeto Da Periferia Para o Mundo oferece aulas de oito disciplinas: Artes, Atualidades, Ciências, Inglês, Geografia, História, Matemática e Português. Cada matéria tem uma hora de aula a cada duas semanas, e na semana posterior são disponibilizados plantões de dúvida. Além disso, também são feitos acompanhamentos individuais sobre os estudos e a perspectiva de vida de cada estudante. Tudo isso de forma gratuita. Os professores, mentores e plantonistas são voluntários e utilizam materiais gratuitos para disponibilizar atividades aos alunos, jovens periféricos do Ensino Fundamental II. 

O projeto conta com mais de 40 voluntários, vindos de diferentes unidades da USP, dos cursos de Engenharia Ambiental, Civil, Elétrica, Naval, de Produção, de Materiais e de Minas, também da Arquitetura, do Marketing, da Fonoaudiologia, Lazer e Turismo, de Ciências Contábeis, de Geologia e de Geografia. Mas também existem membros de outras universidades, como a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Mackenzie. Esse encontro e engajamento das pessoas foi possível graças às redes sociais. “Abri as inscrições e divulguei no Instagram e no Facebook, e então um foi chamando o outro. Divulguei entre os meus amigos da faculdade também”, conta Diego Peres, idealizador do projeto.

Diego, de 23 anos, que coordena as atividades de reforço escolar, está no primeiro ano de Engenharia Ambiental na Escola Politécnica (Poli) da USP e é morador de Capão Redondo, bairro no extremo sul da cidade de São Paulo. 

Ele conheceu o que era uma universidade pública no caso, a USP somente aos 19 anos. Neste momento, soube que seria possível uma pessoa moradora da periferia estudar e crescer na vida a partir da educação. Com o seu projeto, ele quer que outras crianças tenham acesso ao ensino de qualidade e tenham seu horizonte expandido em relação à universidade.

Clique no player e veja o vídeo de apresentação do projeto Da Periferia Para o Mundo

Comecei a trabalhar desde muito novo, não gostava muito de estudar. Eu aprendia as coisas bem rápido, mas queria fazer as atividades logo, para trabalhar ou jogar uma bola na rua. Essa realidade dos estudos sempre foi bem difícil pra mim. Não sabia que existia o Instituto Federal e a ETEC [escola de ensino técnico do Estado de São Paulo], muito menos a USP. 

Quando comecei a estudar para o vestibular, ouvi de pessoas bem próximas que não conseguiria passar na USP porque a Fuvest  sempre foi um vestibular muito difícil, assim como a inclusão das periferias em uma universidade pública. Eu disse para mim mesmo que iria passar sim, que iria conseguir. 

Fiz inscrição no cursinho popular do prédio de Medicina da USP. Foi um ano muito difícil, porque eu trabalhava o dia todo na marcenaria do meu pai. Eu trabalhava das 7 às 17h e o cursinho começava às 18h40. Eu sempre chegava atrasado na aula, mas os professores sabiam que eu chegava atrasado por conta do trabalho e me deixavam entrar. Eu dormia pelo menos nas duas primeiras aulas. Mas o material das aulas era de qualidade. Então eu decidi que iria pegar esse material, mesmo se não conseguisse prestar atenção em todas as aulas. 

Quando prestei o vestibular eu tinha acertado 12 das 90 questões na Fuvest. Eu fiquei muito abalado, mas lembrei da pessoa que me disse que eu não conseguiria entrar e tentei de novo. No ano seguinte, eu tinha guardado dinheiro e falei para o meu pai que não poderia trabalhar com ele aquele ano. Comecei a estudar sozinho. Aprendi muita coisa do zero, fiz bastante redação, resolvi muita prova antiga. E, finalmente, consegui entrar.

Diego Peres, idealizador do projeto Da Periferia Para o Mundo - Foto: Arquivo pessoal

Um projeto no horizonte

Diego era voluntário em um projeto de jiu-jitsu para crianças no seu bairro. No ano passado, decidiu parar com a atividade. “Um dos alunos me pediu para que eu voltasse com os treinos, porque muitos ex-alunos começaram a se envolver com drogas e o mundo do crime. Foi um choque pra mim, e eu tive que pensar em algo.” 

A ideia de um projeto educacional começou a surgir quando, em março deste ano, ele percebeu as dificuldades do seu irmão Felipe, aluno do 7º ano, em acompanhar as aulas on-line da escola pública na qual estudava. “Eu via a minha mãe muito nervosa porque não conseguia entender o que a professora pedia nos exercícios.” 

Por estar por perto, pôde explicar alguns conceitos a seu irmão. “Mas eu comecei a pensar naqueles que não têm um irmão, um pai, uma mãe que consiga dar esse suporte. E não são poucos os alunos com essa dificuldade. Mas eu estava bem na faculdade, a Poli me deu um bom suporte, me ajudou bastante para que eu continuasse estudando durante a quarentena, mas saber que pessoas próximas a mim não estavam conseguindo estudar me tirava o sono, e eu precisava criar alguma coisa.” 

No final de abril, o projeto começou com aulas para quatro alunos. Além de Diego, outros três colegas da Universidade aceitaram participar. Um desses quatro alunos que recebiam o reforço escolar era o mesmo do jiu-jitsu e que pediu ajuda meses antes. Diego dava aula de matemática no sábado e fazia o acompanhamento escolar de outras matérias e mentoria para ajudar os alunos com decisões de estudos. 

Em julho, eles organizaram um curso intensivo do projeto. Foram oito dias, um para cada disciplina. O intensivão conseguiu alcançar cerca de 60 alunos e teve em média 45 voluntários. Após o sucesso desse curso, foi decidido criar o extensivo.

Campanha do projeto na rede social Instagram - Foto: Reprodução

Dinâmica das aulas

As aulas ocorrem na sexta-feira à noite e no sábado de manhã. Cada hora é para uma matéria e ocorre uma rotatividade a cada duas semanas: em uma semana são ensinadas quatro disciplinas e na outra as demais. Os plantões são de segunda a quinta-feira. Também existe o trabalho de mentoria, ou acompanhamento escolar dos alunos. Há uma pessoa responsável por estudante, que tira possíveis dúvidas de estudo, acompanha, dá dicas, conversa sobre o vestibulinho e abre novos horizontes em relação à faculdade, mencionando sua existência.

Bianca Gomes Ferrão tem 19 anos, está no primeiro ano de Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e é professora de português do projeto. Durante as aulas,  procura fazer dinâmicas e atividades que prendam a atenção dos alunos. “As aulas acontecem aos sábados, em um dia em que eles poderiam dormir até mais tarde ou ficar descansando, então a gente sempre tenta deixar a aula o mais atrativa possível, para que eles tirem essa ideia de que o estudo é uma coisa chata e cansativa.”

Há uma lista de exercícios para ser feita em casa, que Bianca evita deixar muito grande, para não ficar tão cansativa. As dúvidas dos exercícios podem ser tiradas nos plantões, mas também há resolução em aula, sobretudo os do Vestibulinho. Junto com os exercícios, também é fornecido um texto para eles treinarem interpretação.

Foto: Arquivo pessoal

Bianca Gomes Ferrão, voluntária no projeto
Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Vinícius Jakuk, plantonista do projeto
Foto: Arquivo pessoal

Para Bianca, ajudar é uma motivação. “Eu sempre fui muito ligada à educação, então foi uma oportunidade que tive de conseguir aplicar o que eu sempre quis, e proporcionar uma oportunidade que eles não teriam se não fosse o projeto.”

Vinícius Jakuk, de 22 anos, é um dos plantonistas de português do projeto. Ele está no terceiro ano de Engenharia Ambiental na Poli. Junto com Maria Eduarda Pereira, também plantonista de português, auxilia Bianca durante a aula, sempre atento ao chat. Durante a semana, ele recebe as tarefas das crianças para corrigir e tirar dúvida.

“Nós vimos que grande parte dos alunos de escola pública que entram em universidades públicas estudaram em ETECs e Institutos Federais, escolas normalmente superiores às escolas públicas comuns. Nós temos essa ideia de preparar os alunos para isso, dando um foco maior para as provas dos Vestibulinhos e explicando como funciona a ETEC”, conta Vinícius.

Natália Souza Lopes de Almeida, de 13 anos, está no 7º ano do ensino fundamental e entrou no projeto em agosto. Ela conta que se motivou a participar das aulas pelo fato de o projeto ajudar nos estudos, principalmente neste momento de ensino a distância. “Para mim, significa uma oportunidade, um auxílio com os estudos e aprendizagens diversas. Ele incentiva os estudantes a aprimorarem os conhecimentos junto à escola.”

O projeto a ajuda a reforçar e relembrar conteúdos aprendidos na escola. “Minha rotina de estudos está mais agitada no momento. Tenho aula pelo Centro de Mídias SP (CMSP) e Google Classroom, para acesso a atividades e trabalhos aos quais serão atribuídas notas. Muitas vezes, acabo me confundindo ou até esquecendo conteúdos anteriores. O projeto reforça esses conteúdos, tirando as dúvidas e me ajudando a relembrar outros temas abordados.”

Natália Souza Lopes de Almeida, participante do projeto Da Periferia Para o Mundo
Foto: Arquivo pessoal

O desafio da inclusão digital

Diego sabe que, por ser on-line, o projeto não atinge as pessoas mais necessitadas. “O que me deixa triste é que muitas crianças não vão conseguir ter acesso ao projeto neste ano porque não temos condições de alcançar pessoas sem internet. O sofrimento em meio a essa pandemia está bem escancarado, isso é nítido. É difícil chegar em um pai, uma mãe, perguntando se eles querem que o projeto ajude os filhos nos estudos sendo que está faltando comida em casa. Eles estão passando fome, têm outras necessidades”, destaca o coordenador do projeto.

Mas o estudante de engenharia acredita estar ajudando uma grande parcela, pois os próprios alunos do projeto conseguem ajudar seus amigos da rua que não têm acesso à internet. “Isso tem uma importância muito grande para a sociedade aqui da periferia do Capão Redondo e de outras periferias também, porque esse projeto é aberto para todos, qualquer aluno que quiser pode participar. Por ser on-line, conseguimos alcançar até crianças de outros Estados”, explica. Muitas delas não conseguem participar do momento da aula, mas assistem às gravações depois. “Essas crianças têm muita vontade de estudar, o que falta é esse suporte.”

Ele também comenta que uma das maiores satisfações é receber mensagens positivas, de crianças e voluntários que agradecem pelo projeto. Com esse retorno, o estudante está providenciando o cadastro da iniciativa para criar uma associação e conseguir verbas e parcerias principalmente para viabilizar o acesso à internet de outras crianças. Também há a possibilidade dos interessados em apoiar o projeto serem padrinhos ou madrinhas de algum dos alunos e ajudarem de alguma forma.

“Todo mundo sabe que é uma causa justa e nobre e, com a ajuda das pessoas, faremos uma grande diferença na vida das crianças e adolescentes alcançados pelo projeto”, conclui o estudante.

 

Saiba mais sobre o projeto Da Periferia Para o Mundo nas redes sociais:

Facebook: https://www.facebook.com/Daperiferiaparaomundo 

Instagram: https://www.instagram.com/daperiferiaparaomundo