Comunidade universitária ajuda
LGBTs a enfrentarem desafios durante
a pandemia

Campanhas nas redes sociais e reuniões a distância ajudam a manter contato social e a resolver questões psicológicas e de saúde que surgem no isolamento

01/06/2020

Karina Tarasiuk

Uma série de manifestações ocorridas em junho de 1969, em Nova York, nos Estados Unidos, marcou a luta pelos direitos LGBT (sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), quando um grupo de homossexuais resolveu enfrentar a violência policial que era frequente contra este público.  Por isso, junho foi estabelecido internacionalmente como o mês do orgulho gay, quando as pessoas saem às ruas num evento que se convencionou chamar de Parada Gay.  Em tempos de isolamento social, quando não é possível reunir as pessoas em paradas, eventos ou reuniões em razão da pandemia do coronavírus, o movimento LGBT precisou adaptar suas ações. No dia 14 de junho, por exemplo, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo terá a primeira edição on-line, que poderá ser acompanhada por um canal no YouTube.

Na USP,  a comunidade universitária atua nesse período em diversas frentes de auxílio ao público LGBT. O programa USP Diversidade, vinculado ao Núcleo de Direitos Humanos da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária (PRCEU), trabalha na criação e fortalecimento de ações e de políticas de diversidade que combatem o preconceito e a discriminação. Também recebe denúncias e orienta como a comunidade universitária deve proceder em casos de discriminação, assédio, violência ou preconceito.

“Neste momento da pandemia, estamos elaborando e disseminando pelas redes sociais uma série de infográficos com orientações e dicas importantes para prevenir a disseminação da doença. Também vamos fazer outras ações virtuais relacionadas à cultura e aos direitos humanos, além de um aplicativo em formato de jogo em que a pessoa cumpre missões e pode se identificar com avatares que tem a ver com a diversidade”, explica Ana Paula Morais Fernandes, coordenadora do USP Diversidade. 

A USP também conta com vários coletivos de diversidade sexual e de gênero mantidos pelos estudantes para acolhimento e orientação, principalmente dos alunos que ingressam todos os anos e se sentem isolados num ambiente tão amplo e diverso quanto uma universidade. Eles realizam campanhas, atividades e reuniões periódicas para tratar dos desafios que o público LGBT enfrenta. Confira abaixo como alguns grupos estão trabalhando nesse período e leia os depoimentos de participantes.

Ana Paula Morais Fernandes, professora e coordenadora do USP Diversidade e organizadora da Campanha Viva a Consciência - Foto: Arquivo Pessoal

Ana Paula Morais Fernandes, coordenadora do programa USP Diversidade – Foto: Arquivo Pessoal

Material do programa USP Diversidade para esclarecer sobre os cuidados em tempos de pandemia - Foto: Reprodução/USP Diversidade

Saúde mental com integração

Frente PoliPride é o coletivo de diversidade sexual e de gênero da Escola Politécnica (Poli) da USP. Criado em 2013 com a missão de acolher, integrar e empoderar a comunidade LGBT+ no ambiente politécnico, de forma a conscientizar as pessoas e fomentar a diversidade, o grupo conta hoje com mais de 300 membros de todos os níveis acadêmicos e especialidades, desde funcionários a alunos. A gestão é composta por 12 pessoas, divididas em coordenadoria, conselho e diretorias de comunicação, eventos e financeiro-jurídica, além de contar com aproximadamente 20 apoios organizacionais em suas ações.

Com a pandemia, as reuniões quinzenais foram adaptadas para o ambiente virtual e muitas das preocupações se voltaram à saúde mental dos membros da comunidade, por conta do ambiente familiar não ser sempre um inclusivo a pessoas LGBTQIA+. Por isso, o grupo está realizando integrações mensais e sessões de filmes chamadas de Popcorn Pride, seguidas de rodas de conversa sobre diversos assuntos que tangem a comunidade. Além disso, considerando as consequências do afastamento de ingressantes, estudam a possibilidade de realizar um programa de mentores LGBTQIA+.

Entre as atividades anuais, o grupo organiza, desde 2015, em conjunto com outros coletivos da Poli a Semana de Diversidade da USP (SEDEP) onde se aborda a temática da diversidade nas esferas social, acadêmica e profissional, trazendo profissionais de renome para aprofundar as discussões. Alguns exemplos de presenças em eventos anteriores são a do político Eduardo Suplicy, a da cartunista Laerte Coutinho e a da cantora e dançarina Pepita.

O coletivo realizou em anos anteriores a edição do Prêmio de Diversidade da USP para premiar as melhores iniciativas de diversidade que ocorreram na Universidade, ao longo do ano. O grupo também organiza algumas atividades com outros coletivos da USP, como a festa denominada FoGAYra.

Felipe Medeiros, 22 anos

Estuda Engenharia Ambiental na USP desde 2018
Entrou no coletivo em agosto de 2019

Participar do coletivo PoliPride me ajudou a ter uma relação muito boa com as pessoas e a instituição, foi essencial para o meu acolhimento e conforto na fase de autoaceitação. O ambiente universitário é muitas vezes hostil a pessoas LGBTQIA+. A quantidade de preconceito velado e internalizado na instituição e na sociedade como um todo é extremamente cansativa a todos nós. Temos que usar uma máscara para esconder quem somos, temos que nos limitar por receio de sermos julgados, temos que nos atentar a cada passo que damos. Temos medo de andar na rua, muitas vezes, e temos medo de viver a vida como gostaríamos.

Encontrar um coletivo foi como encontrar um oásis num deserto, pois é um espaço no qual eu posso me expressar livremente, não ser julgado, ser acolhido e compreendido. Consegui encontrar um lugar a que pertenço de fato e externalizar tudo aquilo que senti e pensei minha vida toda para pessoas que compreendem e vivenciam a mesma coisa que eu, e isso é libertador. Conseguir contribuir com a jornada de autoaceitação de outras pessoas também é muito gratificante. É impressionante ver, nas nossas sessões de filmes, a quantidade de experiências e vivências em comum que temos dentro da comunidade. Nós nos compreendemos, fortalecemos e apoiamos. Eu não poderia ser mais grato por ter encontrado essa família.

Gabriel Crepaldi, 22 anos

Estuda Engenharia Civil na USP desde 2017
Entrou no coletivo em fevereiro de 2019

Conheci o coletivo por amigos que obtive ao longo da graduação e comecei a participar de uma série de eventos que eram realizados, entre eles rodas de conversa e a Semana de Diversidade. À primeira vista, o que me fez entrar na comunidade foi saber que era um grupo inclusivo, com regras que protegiam as pessoas que estavam nele e por saber que existiam lá tantas pessoa iguais a mim, buscando acolhimento e pertencimento a um grupo.

A Frente PoliPride representa um marco decisivo no processo de autoaceitação de inúmeras pessoas LGBTQIA+, de maneira a sempre respeitar o tempo individual de cada uma. É incrivelmente satisfatório poder compartilhar experiências com a comunidade, mesmo que de maneira anônima, e saber que teremos sempre alguém que sente ou que já se sentiu daquela forma.

No meu caso, várias pessoas que conheci me fizeram reprimir cada vez mais o que eu sentia. Busquei incessantemente um local em que eu pudesse ser mais autêntico, encontrar pessoas iguais a mim, entender mais sobre o que eu estava passando e como lidar com essas emoções. Pessoas em quem eu pudesse confiar, que me ensinassem que tudo aquilo que eu estava passando era normal, que explicassem coisas sobre mim que eu ainda não entendia. Tudo isso e muito mais encontrei nessa família. Então a Frente PoliPride representa um lugar seguro para essas pessoas, além de ter criado ligações tão sinceras e únicas que eu acredito fortemente que irão se manter por muito mais tempo do que o período de graduação.

Apoio e fortalecimento

O coletivo Frente de Diversidade Sexual e de Gênero da USP não tem ligação com uma unidade específica da Universidade, ele foi criado em 2013 justamente com o objetivo de fortalecer a atuação dos quase 40 coletivos LGBT+ espalhados no campus da capital. Possui cerca de 90 pessoas que se engajam em realizar reuniões periódicas para tratar dos temas mais emergenciais do momento, além de discutir assuntos por meio de grupos no WhatsApp.

Com a pandemia, o grupo tem promovido reuniões esporádicas e trabalhado nas questões de apoio psicológico. “Não é fácil ser uma pessoa LGBT+ no contexto atual, especialmente quando alguns ambientes familiares são hostis, e contar com o apoio do coletivo tem se tornado importante”, comenta Marina Rodrigues, integrante do coletivo.

Entre as ações importantes que realizaram, destaca-se uma campanha de 2018 em que o grupo espalhou cartazes pelas várias unidades da USP com fotos de personalidades LGBT+ do Brasil e do mundo, gerando visibilidade para o coletivo.

Marina Rodrigues, 29 anos

Estuda Letras - Italiano na USP desde 2019
Está no coletivo desde o início de 2019

Entrei no coletivo quando vi o anúncio de uma reunião aberta e me identifiquei com os temas tratados na época. Sinto que o ambiente na USP é um pouco mais respeitoso com a comunidade LGBT+, mas não tanto. Apesar de ser uma “bolha”, ela ainda é representação de parte da nossa sociedade, que é avessa a essas questões. Entrar no coletivo ajudou a me fortalecer enquanto pessoa LGBT+, a questionar determinados comportamentos e, é claro, a fazer noves amigues.

Ações e redes

O coletivo Todas as Letras, formado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, foi criado no final de 2019. Na primeira reunião havia apenas entre três e cinco pessoas, mas com a recepção aos calouros daquele ano o grupo saltou rapidamente para 50 membros, embora apenas metade seja ativa atualmente no grupo que se identifica como um movimento estudantil autogerido e apartidário.

 “Desde sempre a gente juntou dinheiro pelas pessoas que estavam no coletivo. As postagens nas nossas redes sociais são feitas por integrantes do grupo, tudo é feito por nós”,  destaca Luisa Almeida, integrante do coletivo.

Mesmo com a pandemia, as atividades do grupo se mantêm. “A gente conversa muito pelo WhatsApp do grupo. Todas essas 50 pessoas estão integradas e participam dele”, explica Luisa. Além disso, o coletivo tem reuniões quinzenais para discutir ações. “Porque é possível, a gente acredita que é possível ter ações on-line. Então a gente faz muitas postagens nas nossas redes sociais, nos stories do Instagram e no Facebook”, completa.

Atualmente, o grupo está divulgando atendimentos da rede de apoio psicológico e postando nos stories. Também pesquisa redes de apoio financeiro e material para o público-alvo do coletivo, como na ação em que doou dinheiro para ajudar pessoas LGBT do Capão Redondo durante a pandemia.

Por ser um coletivo recente, as arrecadações geralmente acontecem graças à calourada, na venda de alimentos e bottons, com o objetivo de mostrar que este público pode receber apoio na Universidade.  Em outra ação, o coletivo orienta sobre o uso do pronome neutro para se referir à não binaridade de gênero. “Estão usando o pronome neutro de forma equivocada, e isso se perpetua muito. Estão usando com X, e, na verdade, o pronome neutro é o E”, comenta Luisa. “A linguagem não é só um movimento, não é só a gente falar da boca pra fora, ela é sexista e precisa ser mudada. Muitas pessoas se identificam com o pronome neutro, então é questão de não ferir indivíduos”, conclui.

Luisa Almeida, 19 anos

Estuda Letras - Português e Linguística desde 2019
Entrou no coletivo em 2019

Conheci o grupo através de algumas pessoas que queriam fazer um coletivo, então fui à primeira reunião e gostei muito de participar, de fato fui acolhida e correspondeu às minha expectativas. O coletivo tem discussões sérias, tem trabalho de base, mas também tem amizade que é realmente a base, que é a razão de existência de um grupo como esse. As pessoas que convivem comigo foram amigas e me acolheram diante de uma situação em que eu não me sentia acolhida na Universidade, um lugar difícil para quem é LGBT, ainda mais com pessoas negras vindas de escola pública, como eu. 

O coletivo representa a minha sensação de bem-estar na USP. Eu sou uma bissexual e genderqueer, então eu não me encaixo muito nessa cisgeneridade, em se identificar 100% com o gênero imposto ao nascimento. Um espaço elitista vai te podando, mas me sinto bem participando do coletivo porque é sensacional lutar pelo que acreditamos, lutar por um espaço melhor, tentar alcançar mais estruturas, mais espaços plurais.

Respeito e engajamento

O Coletivo Ferro’s, formado por alunos da Faculdade de Direito (FD) da USP, foi criado em 2017 após a dissolução de outro coletivo, abrigando de 10 e 15 membros ativos que fazem a gestão de maneira horizontal, sem a presença de hierarquia. Eles criam projetos e trabalham nas publicações nas redes sociais.

“É um espaço em que você pode sair e entrar quando você precisar. Não é pra ser um compromisso pra ninguém, não é uma obrigação. Por mais que eu me sinta particularmente conectada ao coletivo e goste de participar e estar presente nas reuniões, não é todo mundo que se sente assim, então também respeitamos isso”, destaca Carolina Corrêa Fernandes, integrante do coletivo.

Na pandemia, o grupo deu continuidade às reuniões a distância, que são abertas a LGBTs da SanFran e de outras unidades da USP, além da comunicação por grupo de WhatsApp. Nesse período, a questão mais importante que o coletivo encontrou foi o bem-estar de pessoas LGBT em suas casas, visto que muitas não são compreendidas ou aceitas pela família, preocupação que se estende a quem não tem família e precisa ficar sozinha. Com isso, surgiu a ideia de ajudar pessoas “que não têm o mesmo privilégio que a gente agora e estão desamparadas pelo Estado e que é nosso dever ajudar”, conforme explica Carolina. 

Uma campanha de solidariedade para LGBTs do Capão Redondo arrecadou dinheiro, alimentos não perecíveis, álcool gel, produtos de higiene e máscaras. O dinheiro foi convertido em cestas básicas, resultando em cerca de 600 produtos, entre eles arroz, feijão e materiais de limpeza e higiene. Estima-se que aproximadamente 150 LGBTs tenham sido beneficiados pela situação. “Parece que não é o suficiente, mas são pessoas que estão precisando de doações agora”, ressaltou Josimar Monteiro, idealizador do projeto.

Em 2019, o coletivo realizou outras atividades de impacto social como na questão da criminalização da homofobia no Supremo Tribunal Federal, com debates sobre o tema. Também, na realização de um mutirão de retificação de gênero e nome, quando grupo forneceu auxílio no processo de emissão dos documentos. A realização de uma semana jurídica LGBT e, por fim, com o mês da visibilidade lésbica, com intervenções na faculdade que permaneceram até o final do ano.

Carolina Corrêa Fernandes, 19 anos

Estuda Direito na USP desde 2019
Entrou no Coletivo Ferro’s em 2019

Foi a divulgação em redes sociais que me fez conhecer o coletivo. Agora, tenho muitos amigos lá, que são os meus melhores amigos da faculdade, num ambiente em que me sinto bastante confortável.

O coletivo é tanto um espaço de acolhimento quanto de mobilização política, que ocorre principalmente pela troca de experiências. A gente fez, por exemplo, uma roda de conversa sobre LGBTs na quarentena e a respeito de como realmente estamos nos sentindo, só pra tentar relaxar um pouco. Com isso a gente inova e consegue unir forças para esquentar um pouco o coração. Quanto à mobilização política, a gente participou de protestos no ano passado sobre o tema da educação, que acredito ser uma pauta que a comunidade LGBT precisa se engajar e expor o que pensa.

O ambiente da SanFran é normalmente bastante acolhedor para a comunidade LGBT mas existem as suas exceções. De vez em quando acontece um caso ou outro de assédio, principalmente nas festas. Estamos observando casos de transfobia em que cabe ao coletivo tentar entrar em contato com essas pessoas para unir forças e mostrar que não estamos sozinhas.