Instituto de Educação Caetano de Campos (1943) foi um dos locais que sediou aulas do Colégio Universitário da USP - Foto: Acervo histórico da Escola Caetano de Campos/Seduc-SP

Arquivos revelam história esquecida de colégio preparatório da USP

Documentos encontrados por funcionários do Arquivo Geral da Universidade descrevem existência de colégio entre 1934 e 1943; o sociólogo e crítico literário Antonio Candido está entre os alunos

28/06/2021

Hérika Dias

Centenas de alunos moradores das cidades de São Paulo e Piracicaba, no interior paulista,  tiveram a oportunidade de cursar parte do equivalente ao ensino médio em um colégio mantido pela USP. Chamado de Colégio Universitário, este Curso Complementar preparava os estudantes que pretendiam estudar na Universidade. Tudo isso foi há mais de 80 anos, no início da Universidade de São Paulo.

Ele está lá, no decreto nº 39, de 3 de setembro de 1934, que trata da criação da USP:

TÍTULO II – Da Constituição da Universidade

CAPÍTULO I – Disposições preliminares

Art. 2º – Constituem o sistema universitário:
1) os Institutos Universitários; 
2) as Instituições Complementares.
Parágrafo único – Será considerado anexo à Universidade o Colégio Universitário

Mas, durante muitos anos, a existência do Colégio Universitário da USP passou despercebida em livros, publicações ou mesmo pesquisas sobre a história da Universidade. Até que, em 2012, funcionários do Arquivo Geral (AG) da USP iniciaram um trabalho de identificação de conjuntos documentais da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), atual FFLCH. Um deles chamou atenção: o do Colégio Universitário da USP.

E o próprio decreto de criação da Universidade forneceu as pistas iniciais para entender que ele não estava ligado apenas à FFCL, mas fazia parte da estrutura da USP. Anos depois, em 2017, uma das funcionárias do Arquivo Geral resolveu ir a fundo nas pesquisas para desvendar essa história. O resultado saiu no ano passado através da dissertação de mestrado da historiadora e supervisora técnica de Gestão Documental do AG Lilian Miranda Bezerra.

Chamada de O Arquivo do Colégio Universitário da USP: um Instrumento de Pesquisa, a dissertação apresentada à FFLCH teve a orientação da professora Ana Maria de Almeida Camargo e mapeou diferentes locais onde se encontravam os documentos remanescentes sobre o colégio e elaborou um instrumento de pesquisa para quem quer explorar mais essa história. Apesar de ser um trabalho focado na metodologia arquivística, Lilian fez uma reconstituição histórica para realizar o instrumento de pesquisa.

Arquivos do Colégio Universitário da USP

O material foi encontrado por funcionários e pesquisadores do Arquivo Geral, órgão que faz parte do Departamento de Administração da Coordenadoria de Administração Geral (Codage) da USP

O que foi encontrado:

  • 49 caixas-arquivo
  • 192 volumes encadernados (com número variado de folhas)
  • 23 pastas (quantidade distintas de documentos)
  • 1 item documental

Total: cerca de 9 mil itens

Onde estão os arquivos?

SÃO PAULO

  • Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos – Centro de Referência em Educação Mário Covas da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
  • Arquivo Geral da USP
  • Escola Politécnica (Poli) da USP – Setor de Arquivo
  • Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP – Assistência Acadêmica/Centro de Memória
  • Faculdade de Direito (FD) da USP – Seção de Arquivo e Museu
  • Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Serviço de Graduação
  • Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) – Serviço de Graduação
  • Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP – Seção de Expediente
  • Faculdade de Odontologia (FO) da USP

PIRACICABA

  • Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP – Assistência Técnica para Assuntos Acadêmicos
  • Museu e Centro de Ciências, Educação e Artes Luiz de Queiroz 
  • Seção de Expediente

E vamos aproveitar esse levantamento para contar um pouco sobre o colégio. Para começar, por que a USP manteve por quase dez anos um colégio para estudantes? Na sua pesquisa, Lilian resgata a situação da educação no País à época. 

Em 1931, uma reforma educacional organizou os ensinos secundário, superior e comercial (profissionalizante). A Reforma Francisco Campos, nome do então ministro da Educação e Saúde, foi pioneira ao criar programas e métodos de ensino obrigatórios para as instituições de ensino de todo o Brasil. 

Pela primeira vez, estabelecia-se programas das disciplinas, a forma de avaliação dos estudantes, a frequência mínima obrigatória às aulas, o ano letivo regular de março a novembro, a duração de 50 minutos de cada aula, os intervalos entre elas etc. 

A reforma dividiu o ensino secundário em dois ciclos: o fundamental, com duração de cinco anos, e o complementar, de dois anos. “O ensino secundário seria semelhante, hoje, ao ensino fundamental II e ao ensino médio. O curso complementar tinha o que a gente chama de caráter propedêutico, ele preparava o aluno ao curso de ensino superior que cursaria em seguida. Então se vou cursar Direito, tenho algumas disciplinas preparatórias para o curso”, explica a pesquisadora. 

O complementar foi considerado requisito para acesso ao ensino superior. Mas havia um problema: naquele momento, não havia professores licenciados aptos para preparar os estudantes para as universidades, já que elas ainda eram raridades por aqui.

Foto: Arquivo pessoal

Lilian Miranda Bezerra - Foto: Arquivo pessoal

O próprio Ministério da Educação foi criado um ano antes da reforma, em 1930. O Estatuto das Universidades do País fez parte da Reforma Francisco Campos e saiu praticamente junto com a reforma do ensino secundário. Ele previa que uma universidade deveria constituir-se, no mínimo, de três dessas faculdades: de Educação, Ciências e Letras; de Direito; de Medicina; e Escola de Engenharia.

A solução foi permitir que as instituições superiores ficassem responsáveis pelos cursos complementares. Assim, quando a USP foi criada para formar as “elites intelectuais e de promoção da cultura livre e desinteressada”, ela também precisaria exercer outro papel: preparar os jovens que seriam futuros universitários.

Controle de frequência e termo de matrícula entre os documentos do Colégio Universitário da USP - Foto: Reprodução/AG

Como funcionava o Colégio Universitário da USP?

No decreto que instituiu a USP, estava previsto que o Colégio Universitário (denominado, neste decreto, de Curso Complementar) funcionaria na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), responsável por preparar os estudantes para todas as outras unidades da Universidade, menos para o Instituto de Educação, que teria seu curso complementar próprio.  

Lilian acredita que essa centralização foi deixada de lado devido à falta de infraestrutura da FFCL, que não tinha prédio próprio nos seus primeiros anos de existência. 

1ª Seção, de filosofia, ciências sociais e auxiliares para a preparação aos cursos oferecidos na Faculdade de Direito e nos cursos de Filosofia, Ciências Sociais, Geografia e História da FFCL

2ª Seção, de ciências químicas e naturais para preparação aos cursos da Faculdade de Medicina, Faculdade de Medicina Veterinária, Faculdade de Farmácia e Odontologia, FFCL (curso de Ciências Naturais) e Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz

3ª Seção, de ciências físicas e matemáticas para a Escola Politécnica e aos cursos de Ciências Matemáticas, Ciências Físicas e Ciências Químicas da FFCL

4ª Seção, de ciências e educação para preparação ao curso superior de formação da Escola de Professores do Instituto de Educação (antiga Escola Caetano de Campos, que ficou vinculada à USP de 1934 a 1938)

5ª Seção, de letras para o curso de Letras Clássicas e Modernas da FFCL

“No mesmo ano de 1934, foram lançados decretos específicos do colégio, o primeiro deles muda o nome de Curso Complementar para Colégio Universitário e estabelece cinco sessões atreladas às escolas e faculdades.”

Essas cinco seções estavam vinculadas às oito unidades da USP que existiam. A divisão das seções era de acordo com as disciplinas oferecidas. Elas usavam o corpo administrativo das faculdades e deveriam responder diretamente aos diretores dessas unidades. Questões não solucionadas por eles eram submetidas ao Conselho Universitário (Co) da USP. 

Cada seção poderia ter no máximo duas turmas com até 80 alunos. Os professores eram contratados especificamente para trabalhar no colégio, o que não impedia de atuarem também na USP. “Temos professores importantes que deram aula no Colégio Universitário e depois em faculdades, como André Dreyfus [do Departamento de Biologia, do curso de História Natural da FFCL] e Eduardo d’Oliveira França [do Departamento de História da FFCL]”, exemplifica a autora da pesquisa.

O curso complementar se dividia em dois anos, chamados de 1ª e 2ª série. Já as aulas, em geral, eram de segunda-feira a sábado. Para entrar no colégio, era preciso ter concluído o 5º ano ginasial e, caso o número de candidatos fosse maior que o de vagas, havia exame de seleção. 

Estudar na USP tinha custos. Para fazer a seleção para o colégio, havia taxa; se aprovado, pagava ainda um valor pela matrícula do primeiro semestre e outra pela do segundo semestre, de cada série.

Taxas eram cobradas também para prestar o exame final e, se não passasse, precisava pagar novamente para fazer outro exame. Se o aluno tivesse feito o primeiro ano do curso complementar em outro local, tinha a possibilidade de pedir transferência mediante prova e pagamento de taxa.

Ilustres estudantes

Os documentos encontrados pela pesquisadora não contemplam a quantidade de alunos que passaram pelo Colégio Universitário. Mas alguns dados mostram que, em 1938, chegou a ter 1.200 alunos; em 1941, 1.609. 

Entre esses estudantes, alguns se tornaram estudantes e depois professores da USP, como a historiadora e professora livre-docente da FFLCH Anita Novinsky, que se graduou em 1956. “Para ela, ficou mais marcada a experiência no Colégio Universitário do que no curso de graduação na Universidade. Ela lembrava do nome dos professores, do processo de seleção que fez”, relata Lilian, que teve oportunidade de conversar com a professora. 

Outro saudosista do tempo do colégio era o crítico literário, sociólogo e professor da FFLCH Antonio Candido. “Ele chegou a se candidatar para dar aulas no Colégio Universitário, mas não deu certo”, lembra a pesquisadora, que encontrou diversas entrevistas em que ele mencionava sua passagem pelo Colégio Universitário, como esta:

Anita Novinsky, professora da FFLCH USP que passou pelo Colégio Universitário da USP- Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Antonio Candido chegou a concorrer a uma vaga de professor no Colégio Universitário. Na imagem, o crítico literário durante aula na Faculdade de Assis - Foto: Fundo Antonio Candido de Mello e Souza/IEB-USP

O professor Setembrino Petri, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, se formou na oitava turma de História Natural em 1944, e dedicou toda sua carreira à Universidade. Mas antes passou pelo Colégio Universitário, assim como a escritora Lygia Fagundes Telles. 

Sobre a passagem do colégio para a graduação na USP, Lilian explica como funcionava o processo. “Os decretos que falam sobre o Colégio Universitário dizem que se tiver mais vagas do que alunos, você entra direto, não precisava fazer o vestibular novamente. Mas na prática começou a ter mais alunos interessados tanto no Colégio Universitário quanto no ensino superior, então os alunos tinham que fazer o vestibular ou concurso de habilitação, como eles chamavam na época.”

Assim como uma legislação federal permitiu à USP manter um colégio de nível secundário, uma outra reforma educacional colocaria fim ao Colégio Universitário. Sob o comando do ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, um decreto de 1942 extinguiria o curso complementar. A divisão do ensino secundário continuou em dois ciclos, mas o nome se alterou para ginasial e colegial, sendo que este último subdividido em curso Clássico e Científico.

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Setembrino Petri, professor do Instituto de Geociências que se formou no Colégio Universitário - Foto: Marcos Santos / USP Imagens

“A Reforma Capanema tira o nível secundário  do âmbito das universidades e diz que ele vai funcionar de forma independente. Isso porque na reforma de 1931 não havia professores formados para dar aulas nos cursos complementares. Mas na década de 1930 e 1940, as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras vão se estabelecendo no Brasil, formando professores para este nível de ensino”, segundo Lilian.  

Para uma parte da Universidade, o fim dos cursos complementares sob responsabilidade da USP seria um alívio. A pesquisadora encontrou diversos documentos com relatos de unidades reclamando da falta de infraestrutura, como espaço, principalmente a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito. 

Ao longo dos nove anos de existência, as três unidades e a Esalq foram as únicas que não tiveram mudanças de local do colégio e, por isso, muitas vezes, precisaram receber alunos de outras unidades. “Não era um contingente desprezível ter 1.600 alunos na década de 1940. E essas faculdades precisavam abrigar tanto os universitários quanto os alunos do colégio”, destaca a autora da pesquisa.

O último ano de funcionamento integral do Colégio Universitário da USP foi em 1942, no ano seguinte, apenas as turmas de 2ª série existiram. E, em 1945, ele foi oficialmente extinto.

Para conhecer o instrumento de pesquisa formulado por Lilian e outros detalhes de sua dissertação de mestrado, é só clicar aqui.