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Processo de descriminalização de drogas no Brasil busca diferenciar tráfico do uso pessoal
Especialistas comentam que a lei tem critérios de definição muito amplos, que causam maior criminalização das pessoas mais pobres
Existe uma discussão sobre a dificuldade de classificar o indivíduo como usuário ou traficante, uma vez que a legislação é muito abrangente – Foto: Lindomar Cruz via Flickr – CC
Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a descriminalização do porte de drogas para o uso pessoal, a partir da modificação do artigo 28 da Lei de Drogas. O processo segue uma certa tendência de países como Portugal e Uruguai, além de atender a uma demanda da sociedade civil. Especialistas da Universidade de São Paulo esclarecem o debate acerca do tema que, em tese, diferencia o uso pessoal do comércio de drogas. Os aspectos legais dessa discussão precisam ser levados em conta. Sérgio Salomão Shecaira, professor do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, aborda a modificação da lei, bem como os possíveis impactos nos julgamentos por posse de drogas que estão em andamento. Maria Gorete Marques, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), por outro lado, afirma que a falta de uma legislação de drogas mais específica ocasiona uma criminalização dos mais pobres.
O que diz a lei
Na lei brasileira, não há especificações sobre o que caracteriza o usuário de drogas e aquele que a comercializa. A atual Lei de Drogas – um dos objetos da votação do Supremo e que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – modificou uma lei de 1976 já considerada superada e que estabelecia uma pena para o usuário de drogas.
No entanto, Shecaira avalia que a lei mantém uma dualidade. “De um lado tem o artigo 33, antigo artigo 12 da lei revogada, que estabelece uma pena mais dura para o traficante; e de outra parte uma pena mais leve para aquele que é o usuário. Na atual lei é o artigo 28, antigo artigo 16 da lei revogada. A diferença principal é que este atual artigo 28 não prevê uma pena privativa de liberdade para o usuário de drogas nesse sentido. Essa lei foi um avanço em relação à lei revogada que previa uma pena de seis meses a dois anos, mas ela não estabeleceu com clareza quem é o usuário e quem é o traficante.”
Uso pessoal ou tráfico?
Maria Gorete explica que, desde a aprovação da lei em 2006 existe uma discussão sobre a dificuldade de classificar o indivíduo como usuário ou traficante, uma vez que a legislação é muito abrangente.
Sem uma delimitação explícita entre as duas tipificações, a pesquisadora ressalta o poder determinante dos policiais e suas narrativas diante dos casos de apreensão de drogas. “Um dos pontos que têm ganhado muita densidade sobre a questão é o poder de definição que acaba sendo dado aos policiais, pois eles que vão oferecer os elementos que vão direcionar para o perfil de usuário ou traficante”, pontua Maria Gorete.
Acompanhe a íntegra da entrevista de Maria Gorete Marques
Assim, a decisão do judiciário cria uma grande dependência do posicionamento das forças policiais que, por vezes, extrapolam a lei e são influenciadas por circunstâncias pessoais e sociais. Em decorrência disso, na visão da pesquisadora, a margem de condenação de pessoas que não estão na condição de traficantes é muito maior e a população mais pobre é a mais afetada.
Schecaira detalha melhor o problema: “Quem vai definir se uma quantidade de droga apreendida é destinada ao uso ou à venda é, em primeiro lugar, o policial militar. Logo depois, o delegado de polícia que vai lavrar o flagrante; depois, o promotor de justiça que vai oferecer a denúncia; e, por último e em quarto lugar, o juiz que vai decidir se aquela pessoa é usuária ou não, se ela é traficante ou não”, explica o professor.
Quando há uma grande quantidade de droga apreendida, se entende que ela se destina à comercialização, mas quando a quantidade é pequena, o critério utilizado é o contexto da apreensão da droga, que dá margem para discriminações por fatores sociais e raciais e demonstra uma falha na lei, avalia o professor. “Aí é que entra um certo filtro humano, que é um filtro muito conservador. Por exemplo, se a droga é apreendida no Jardins, no bairro de Pinheiros, em Perdizes, ou no Leblon e em Ipanema, no Rio, e não na favela da Rocinha, na favela de Heliópolis e Paraisópolis, nós temos uma apreciação por parte dos atores judiciais de uma maneira diversa; 30 gramas apreendidas na favela normalmente se diz que é destinada ao tráfico, 30 gramas apreendidas com alguém no bairro de Perdizes ou em Higienópolis é destinada ao uso.”
Acompanhe a íntegra da entrevista de Sérgio Salomão Shecaira
Schecaira ainda complementa: “Outra leitura que se faz, e também muito tradicional, é que se as pessoas são pretas ou pardas e estão em lugar pobre e têm dinheiro no bolso, essas pessoas muitas vezes são confundidas ou declaradas como traficantes”, argumenta. Na opinião do professor, o que está em jogo é o contexto da apreensão da droga, que precisa ter uma maior segurança jurídica.
Além disso, Maria Gorete acrescenta que a falta de critérios de diferenciação também impacta diretamente os índices de encarceramento. Por exemplo, a pesquisadora conta que o tráfico é o segundo maior motivo de prisões entre os homens e o primeiro entre as mulheres. “É importante olhar para outras experiências, como as de Portugal e do Uruguai. Então, vale a pena o Brasil se atualizar nessa pauta, que também se trata de uma demanda da sociedade civil”, reflete a pesquisadora.
Novas regulamentações
Um dos principais parâmetros para a descriminalização das drogas é a quantidade. Em alguns países do mundo, como Portugal, explica Shecaira, há um modelo que define quantidades mínimas para apreensão de todas as drogas, que considerariam uma pessoa usuária e não traficante. Para além dessa medida, Maria Gorete complementa com a necessidade de uma mudança na política que é muito baseada no policiamento ostensivo e com pouco poder investigativo. Um levantamento do NEV-USP, realizado em 2011, sobre prisão provisória de drogas e suas abordagens apontou que apenas 4% delas eram motivadas por trabalhos de investigação. Os outros casos eram oriundos de flagrante ou policiamento.
“O policiamento ostensivo pega a ponta do tráfico, a pessoa que está atuando tem já uma certa precariedade e, muitas vezes, está exercendo essa atividade até para sobrevivência, mas não se tem um investimento investigativo para saber o circuito dessa droga”, esclarece a pesquisadora. Ela defende a necessidade de ir além da conhecida “política de guerra às drogas” para uma solução mais eficaz. Assim, prender um indivíduo na margem da economia do tráfico não modifica em nada a rede criminal.
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