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Laços familiares, tradições geracionais e cantorias: a cultura submersa das baleias jubartes
Marcos César de Oliveira Santos comenta que durante seus mergulhos, com registros de baleias que passaram quatro horas embaixo d’água até retornarem à superfície em busca de oxigênio, as baleias cantam, se relacionam e constroem tradições
Baleias jubarte são velhas conhecidas da cultura popular. Sendo um dos maiores mamíferos da face da terra, esses animais chamam a atenção humana por diversas razões. O tamanho, de em média 15 metros de comprimento, é o primeiro a saltar aos olhos. As acrobacias e saltos no ar, desafiando a gravidade e projetando suas dezenas de toneladas para fora d’água também são um sucesso de bilheteria. Milhares de pessoas viajam todos os anos em busca de assistir alguns segundos de uma das cenas mais exuberantes do reino animal. O famoso esguicho da sua respiração também é memorável. Expelindo o ar quente do seu corpo para fora, o simples ato de respirar de uma jubarte se torna um evento natural, criando uma nuvem de vapor e água que pode chegar a nove metros no meio dos oceanos. Apesar de já se mostrarem seres incríveis na superfície, é nas profundezas dos oceanos que esses animais impressionam ainda mais, durante seus mergulhos, com registros de baleias que passaram quatro horas embaixo d’água até retornarem à superfície em busca de oxigênio, as baleias cantam, se relacionam e constroem tradições.
Um álbum interespacial
O primeiro registro das cantorias das baleias jubarte veio em 1970, pela pesquisa bioacústica de Catharine e Roger Payne. O álbum Songs of the Humpback Whale foi resultado de um conjunto de esforços. O canto foi gravado em 1950 por Frank Watlington, um engenheiro marinho trabalhando em uma estação acústica americana construída para detectar submarinos russos durante a guerra fria. Localizada na região das Bermudas, a estação utilizava hidrofones mergulhados na água. Os equipamentos captam as vibrações do som na água e registram sinais elétricos correspondentes às frequências. Em certos momentos do ano, Frank captava padrões sonoros peculiares vindos do mar. Curioso, o pesquisador gravou os sons misteriosos por vários anos, até chegar à conclusão de que se tratava de um grupo de baleias jubarte, que passava o inverno nas proximidades da costa das Bermudas.
Em 1966, Roger Payne tomou conhecimento das gravações. Roger tinha experiência com ecolocalização de morcegos e corujas e Catharine Payne, sua esposa e também pesquisadora da bioacústica, em teorias musicais. Após análise do material armazenado, o casal de pesquisadores descobriu que os sons emitidos pelas baleias tinham estruturas análogas à rima, com frases se repetindo em intervalos rítmicos, como em canções humanas. Além disso, foi observado que cada grupo de baleias no oceano canta sua própria canção, uma composição única feita ano a ano.
Os estudiosos decidiram divulgar os sons captados e as descobertas através de um álbum, o Songs of the Humpback Whale. Sucesso nos anos 70, o disco chegou a vender mais de 125 mil cópias e se tornou a gravação da natureza mais popular da história. Na ficção e nos cinemas, as músicas foram parar no espaço, ganhando as telas no filme Star Trek IV: The Voyage Home e indo a bordo da espaçonave Voyager 2, uma sonda à deriva no espaço desde 1977. O disco Voyager Gold Record, enviado junto com a sonda, contém saudações humanas e diversas amostras da vida complexa presente na Terra, destinado a qualquer forma de vida extraterrestre que o encontre.
Baleia jubarte vista no Canadá – Foto: Buiobuione/Wikimedia Commons
Acústica e Evolução
Os cetáceos são responsáveis por uma das principais identificações de cultura em animais não humanos. A partir da análise de um extenso banco de dados de gravações de sons emitidos pelas baleias construído ao longo dos anos, foi possível observar dinâmicas de comunicação e transmissão de hábitos e costumes entre grupos distintos de jubartes em moldes parecidos com os dos humanos. Para o professor, a dificuldade em entender a forma como as baleias se comunicam se dá pela diferença entre os mundos terrestre e aquático. “Nós somos primatas, chegamos na terra há cerca de 300 mil anos. Entendemos o mundo enquanto primatas e lidamos com um ambiente terrestre. Ser um primata e estudar cetáceos é uma tarefa difícil. Não sabemos o que é viver integralmente no ambiente aquático e nem como é depender do som. Cetáceos são um grupo de organismos que tem uma história evolutiva muito maior que a nossa, é um nível muito mais complexo de linguagem do que a nossa. Se nós continuarmos pensando e agindo como primatas para analisar a comunicação entre esses animais, não vamos avançar”, afirma.
O “baleiês” na vida real
Marcos Oliveira indica dois pontos importantes para o avanço no estudo da comunicação e musicalidade nas jubartes: a digitalização dos dados e a aplicação de inteligências artificiais na análise dos sons armazenados. “Com a tecnologia analógica, só era possível captar uma parte desses sons emitidos por esses animais. A tecnologia digital desvendou uma série de outras frequências que antes não eram vistas. Isso, somado a uma inteligência artificial capaz de analisar milhares de dados em uma velocidade que é impossível para um ser humano, fez com que os avanços fossem muito mais rápidos”, elucida.
“Após as gravações na bacia das Bermudas, foram feitos outros trabalhos em outras bacias oceanográficas e começamos a perceber que grupos de baleias cantam músicas diferentes, e aí surgiu a primeira definição de cultura em cetáceos. Trabalhar com a definição de cultura é essencialmente importante porque nós também temos nossas culturas humanas, que são passadas entre gerações. Desde 1970 até aqui, foram armazenados anos de gravações e sons vindos desses animais. Assim, nós avançamos muito nessas investigações e na conceituação de que baleias e golfinhos são espécies não humanas que comprovadamente também apresentam cultura. Nesse sentido, as músicas cantadas pelas jubartes são as principais provas de que existe transmissão de cultura nessas espécies”, esclarece.
“Além de compor, as jubartes migram de áreas tropicais e subtropicais para áreas polares, e nem sempre voltam para a mesma área. Não raramente elas viajam para regiões onde estão outros grupos de baleias, e levam uma canção para outra área. Então, quando elas começam a vocalizar as canções, ocorre uma transferência de cultura entre as populações. Com o advento da digitalização de dados e uso da inteligência artificial, nós avançamos muito nessa ciência. Antes, dependíamos de um grupo de pesquisa na África do Sul, outro grupo de pesquisa na Austrália, outro na Nova Zelândia, e eles tinham que se reunir para pôr todos os dados juntos e trabalhar nas análises, todo esse trabalho braçal de análise de dados dificultava muito a situação. Só que agora, com a inteligência artificial, esse trabalho ficou muito mais rápido”
Oliveira acrescenta que “existem várias vocalizações que são feitas por esses animais, com diversos significados que ainda estamos tentando entender. Atualmente, a partir do uso das IA´s, conseguimos identificar que existem blocos de sons que parecem saudações, outros que exercem a função de coordenar ações entre eles durante a alimentação, entre outras interações. A estatística que conseguimos obter hoje comprova essas teses”.
Baleia jubarte – Foto: ArtTower/Pixabay
O ser social
Cetáceos em geral são seres altamente sociáveis e cultivam laços familiares e também entre grupos que não fazem parte do mesmo núcleo familiar. “As associações sociais entre eles são muito fortes. Um exemplo muito ilustrativo é a relação da mãe com a cria. As fêmeas pagam um preço muito alto com os filhos porque, praticamente em 100% das espécies, é ela quem paga o ônus da gestação, do parto e da amamentação. Ela se mantém com a cria até que ela seja independente, o que pode variar entre um e cinco anos dependendo da espécie. Isso tem um custo muito alto. Então essa é uma associação de cuidado muito parecida com a das mães humanas com filhos e filhas. E isso não se restringe às jubartes. Orcas, belugas, entre outros cetáceos, demonstram uma complexidade afetiva impressionante. Existe um processo de coexistência e de convivência com seus congêneres muito similar aos humanos. Orcas, por exemplo, na costa oeste da América do Norte, formam grupos sociais fixos a vida inteira. Então, você tem uma fêmea que gerou um filhote do sexo masculino, ele vai crescer e vai interagir junto com as fêmeas do grupo, só que esse filhote que é do sexo masculino não copula as fêmeas do seu próprio núcleo. Quando esse grupo se encontra com outro, aí tem um cruzamento de machos e fêmeas de grupos sociais diferentes”, finaliza Oliveira.
*Estagiário sob supervisão de Marcia Avanza e Cinderela Caldeira
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