No início deste mês, na Venezuela, o governo do presidente Nicolás Maduro realizou um referendo com a finalidade de obter o apoio da população para a ocupação da maior parte do território da Guiana, provocando forte tensão política na América do Sul. O professor Pedro Dallari repercute a questão: “Em um ano marcado pela tragédia de dois conflitos armados terríveis, na Ucrânia e no Oriente Médio, a guerra pode também chegar na Amazônia, por conta do conflito territorial entre Venezuela e Guiana, dois países com os quais o Brasil tem fronteira.
O risco da guerra na fronteira amazônica é resultado da iniciativa do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de mobilizar a população de seu país em torno do objetivo de invasão e ocupação do território da Guiana, inclusive com a ameaça do uso de força militar. O governo de Caracas alega que a região de Essequibo, que se constitui na maior parte do território da Guiana, pertence na verdade à Venezuela e estaria sendo ocupado indevidamente desde o século 19, quando a Guiana ainda era uma colônia britânica. Essa disputa territorial entre Venezuela e Guiana vem se arrastando há mais de um século e atualmente está sendo examinada pela Corte Internacional de Justiça, que é o principal tribunal da Organização das Nações Unidas.
No entanto, o presidente Maduro não reconhece a autoridade daquele tribunal e decidiu se antecipar a qualquer decisão judicial, convocando a população venezuelana para se manifestar nas urnas, em um referendo em favor de sua pretensão territorial. O referendo se realizou no dia 3 deste mês de dezembro e, embora não sejam confiáveis, os dados disponibilizados pelas autoridades da Venezuela apontam a participação de 50% dos eleitores habilitados a votar, dos quais 95% teriam se manifestado favoravelmente à posição do governo.
Há várias explicações para essa mobilização popular promovida pelo governo Maduro, que não são necessariamente antagônicas. A identificação e o início da exploração de grandes reservas petrolíferas no mar adjacente à costa da Guiana certamente ajudaram a reavivar a reivindicação venezuelana. Mas o motivo mais imediato que tem sido apontado pelos analistas é outro. Mesmo comandando um governo fortemente antidemocrático, Nicolás Maduro se encontra sob a ameaça de ser derrotado na eleição presidencial prevista para o próximo ano. A criação de um conflito internacional, inclusive com a ameaça de uma ação militar, seria, assim, uma estratégia para obter o apoio da população da Venezuela.
Trata-se do mesmo expediente utilizado pela ditadura militar argentina na década de 1980, que, em um quadro de profunda impopularidade, desencadeou a guerra das Malvinas contra as forças britânicas, em uma ação totalmente irresponsável, que fracassou e custou a morte de um grande número de jovens argentinos. Caso a ameaça do governo Maduro se concretize, com a invasão do território da Guiana por tropas da Venezuela, a guerra terá forte impacto no Brasil, sob todos os aspectos: social, econômico e político. Para além da tragédia que, por si só, uma guerra significa, esse conflito provocará grave instabilidade na região amazônica, aumentando a dimensão de graves crises já existentes, como a crise de refugiados e a crise ambiental.
Resta, neste final de ano, desejar que a ameaça do governo venezuelano não se concretize. Para isso, será fundamental que o governo brasileiro use da autoridade política que possui, a fim de demover Nicolás Maduro de seu intento bélico. Isso para que, diferentemente do que ocorre na Europa e no Oriente Médio, a paz possa continuar a prevalecer na América do Sul”.
Globalização e Cidadania
A coluna Globalização e Cidadania, com o professor Pedro Dallari, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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