Cracolândia não pode ser apenas questão policial

A solução está na resposta multisetorial complexa que envolve moradia, cuidado, política de redução de danos e políticas sociais

 26/07/2023 - Publicado há 11 meses

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A professora Raquel Rolnik, colunista da Rádio USP, destaca que há três décadas os governos divulgam anúncios sucessivos de que a Cracolândia vai acabar, inclusive anúncios de que a Cracolândia acabou, sem nenhuma efetividade. Uma pesquisa recente do LabCidade mostrou que o número de usuários nas cenas de uso de drogas da Cracolândia está absolutamente estável há anos, ou seja, as medidas que estão sendo tomadas no sentido de terminar com esse lugar foram absolutamente inócuas. O que elas fizeram, muito claramente, foi definir uma escalada ainda maior de violência na região e uma espécie de espalhamento dessa violência e desse conflito no centro em função de uma política de dispersão.

A  ideia de que não se deixaria mais os usuários concentrados num lugar, mas, sim, numa estratégia basicamente policial de espalhá-los, na verdade multiplicou cenas de uso de drogas se espalhando pelo bairro de Santa Cecília e Santa Efigênia e gerando evidentemente mais conflitos, inclusive com moradores e comerciantes no local.

A mais nova frente então passou a ser a ideia de transferir essa concentração de usuários para um outro lugar. Primeiro, para embaixo de uma ponte, a Ponte Estaiadinha – literalmente para colocar o problema de baixo da ponte; segundo, para levá-lo ao bairro do Bom Retiro, o que evidentemente além de não ter sido nem um pouco efetivo também causou enorme discussão com os próprios moradores e comerciantes do Bom Retiro. O fato é que está absolutamente claro que as estratégias de fazer desaparecer aquelas cenas de uso e aquela concentração de pessoas, refugiados urbanos, é simplesmente absolutamente ineficaz e apenas reproduz e exacerba cada vez mais a violência.

Uma rede de entidades e organizações que trabalham tanto no campo da saúde mental como no campo da habitação, do urbanismo e das políticas sociais, que vem acompanhando a região e mostrando o que está acontecendo, tem demonstrado que não tem “bala de prata”, não tem política única e, sobretudo, a resposta à situação que está colocada ali não pode e não é uma resposta no nível da segurança pública ou no nível policial, que na verdade só está aumentando cada vez mais o conflito e fazendo com que grupos privados de segurança pública passem a também vender e estabelecer uma verdadeira guerra entre vários grupos de segurança, só piorando a situação no local.

A resposta é uma resposta multisetorial complexa que envolve moradia, envolve cuidado, envolve política de redução de danos, envolve associação de política de moradia com políticas sociais, coisa que os governos têm uma enorme dificuldade de fazer, exatamente por uma atuação absolutamente setorial e também por uma hegemonia da ideia de que uma questão como essa – que é eminentemente social e territorial e, portanto, urbanística, habitacional e no campo também das vulnerabilidades sociais – se resolve com uma ação policial. Fazer desaparecer através da dispersão dos usuários, ou tirar da frente, como na internação compulsória, aparece como respostas fáceis de anunciar, mas muito difícil de ter qualquer tipo de efeito, que é o que demonstrou a prática até os dias de hoje.


Cidade para Todos
A coluna Cidade para Todos, com a professora Raquel Rolnik, vai ao ar quinzenalmente quinta-feira às 8h30, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e TV USP.

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