Violência, multas e racismo: o que as experiências de mulheres egressas da prisão nos dizem sobre o Estado brasileiro?

Em roda de conversa promovida pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, ativistas criticaram a ausência de políticas de apoio aos ex-detentos e denunciaram o racismo estrutural do sistema prisional

 Publicado: 10/07/2024

Texto: Silvana Salles
Arte: Brenda Kapp*

Fotomontagem feita pelo Jornal da USP - Foto: EBC-Empresa Brasil de Comunicação/Flickr

O Estado brasileiro não se preocupa com o que acontece com uma pessoa que foi encarcerada nem antes nem durante e nem depois da prisão. Essa é a visão de duas egressas do sistema prisional que hoje atuam como defensoras dos direitos humanos. Elas trabalham para ajudar outros ex-detentos a reconstruir suas vidas, dar bons exemplos aos jovens de suas comunidades e apoiar familiares de vítimas da violência do Estado. Em junho, essas sobreviventes do sistema prisional participaram de uma roda de conversa organizada pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. A atividade fez parte do ciclo de seminários que o NEV realiza para debater a violência policial na atualidade.

“Pouco se fala sobre os sobreviventes. As pessoas estudam muito sobre a prisão, tem essa fascinação, como se fosse um zoológico, pela prisão. Só que não pensam que essas pessoas [presas] vão sair. Essas pessoas estão saindo, o que que a gente vai fazer?”, questionou a assistente social Camila Felizardo, integrante do coletivo Por Nós – uma rede de apoio para e por mulheres egressas e sobreviventes do cárcere. Para ela, o Estado gasta muito com segurança pública, mas não investe em educação e assistência social de qualidade. A prisão, então, é resultado de violências que acontecem devido à negligência estatal.

Ex-usuária de crack, Camila foi presa logo que completou 18 anos. Na época, era mãe de uma criança pequena e estava em situação de rua. Depois de cumprir a pena, começou a atuar no campo da assistência social. Resolveu se profissionalizar, cursou Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e se formou graças à bolsa de estudos que conseguiu trabalhando em um projeto da universidade. Foi durante a pesquisa para seu trabalho de conclusão de curso que ela percebeu como sua prisão estava relacionada a experiências anteriores de violência e negligência.

Camila Felizardo - Foto: Arquivo pessoal

“Quando fui estudar sobre violência, descobri que eu tinha sido violentada quando era criança e adolescente”, contou a assistente social no evento do NEV. “Eu percebi o quanto que a política do Estado está presente no território. Eu nasci e cresci numa comunidade da Zona Leste de São Paulo, no Sapopemba, onde tem UBS, onde tem escola, onde tem um serviço público de assistência social. Mas de que maneira que eu fui enxergada por esse serviço? Eu fui enxergada pelo Estado através da polícia. Eu era uma menina de 17 anos, estava em situação de rua, em drogadição. Então, onde está a corresponsabilidade da comunidade, da minha família e do Estado? ”, disse.

Se o Estado falha com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, também falha com adultos que cumpriram suas penas e desejam sair do crime. Segundo Andrelina Amélia Ferreira, a Andreia Mf, liderança do Movimento Mães do Cárcere, a superlotação nos presídios está ligada às omissões das instituições estatais. “A grande maioria são reincidentes, mas porque o Estado não prepara. Quando a pessoa erra a primeira vez e ela sai de dentro do sistema, ela pega a sua casa do jeito que ela deixou ou talvez até pior, com reintegração de posse, ou a prefeitura derrubou o barraco. Quais as condições para aquela volta?”, disse.

As dificuldades dos ex-detentos para retomarem suas vidas em liberdade também envolvem cobranças de multas muitas vezes superiores à renda de suas famílias. Uma reportagem da Agência Pública veiculada no ano passado mostrou que desde 2020 os juízes das Varas de Execuções Penais do estado de São Paulo têm exigido o pagamento de multas para extinguir as penas de pessoas que já cumpriram suas sentenças na penitenciária.

“Aquela pessoa pagou, saiu, e aí? A partir daí você tem uma multa pra pagar. ‘Quero saber se você tá trabalhando’, só que a gente precisa pagar a multa pra que seja liberado pra tirar o CPF. E aí você não consegue o registro na carteira. Aí aquele jovem vai chegar naquele outro amigo que mandou o pacote de cigarro pra ele e vai dizer o quê? ‘Coloca eu aí de novo’. E aí é que nós batemos na tecla da reincidência dentro do sistema prisional, que aquele preso não consegue se recuperar. Não existe um curso exatamente dentro do sistema, uma escola, uma universidade”, relatou Andreia.

Andrelina Amélia Ferreira - Foto: Linda Leão/Boqnews

Ela viveu na própria pele o problema da reincidência e conseguiu abandonar a criminalidade quando passou a trabalhar como trancista. Hoje, ensina o ofício a outras mulheres e meninas de sua comunidade. 

 “Eu, como egressa, hoje à frente do movimento, eu sei onde foi que eu errei, certo? Não tive muitas oportunidades na vida. Perdi meus pais muito cedo, fui mãe aos 13 anos, sofri violência, abuso. Tinha o sonho de ser enfermeira, me tornei militante, mas, de uma forma ou de outra, eu estou curando. Eu perdi muito tempo da minha vida, 16 vezes dentro da fundação, três quando maior na penitenciária, enfim, dentro do sistema prisional”, contou.

Integrante do coletivo Por Nós ao lado de Camila, a sacerdotisa Iyá Batia de Oxum chamou a atenção à ligação estreita entre o racismo estrutural e o encarceramento em massa. Apesar do encarceramento ter se acentuado após a aprovação da Lei de Drogas em 2006, na visão de Batia o problema vem de longe e ainda é resultado da “falsa abolição” da escravidão no Brasil. “Nós somos jogados na rua, sem direito de moradia, sem direito de comer, sem direito de falar, sem direito de trampar, sem direito de nada. Por muito anos também foi negado pra gente a educação”, lembrou a ialorixá, que atua no terreiro Ilê Axé Opô Iyá Olodoydé.

Ela refletiu sobre como o racismo estruturou o Estado brasileiro ao longo da história, de maneira que as instituições têm servido para proteger a elite e o processo de colonização, em vez de garantir direitos às populações pretas e periféricas. “É essa polarização ainda que nos mata, que nos tortura, porque a gente vive claramente o racismo cotidiano, o racismo ambiental. Esse racismo estrutural foi muito bem elaborado por esse Estado que está aí. Então, quando a gente fala do cárcere, e para fazer qualquer mudança desse cárcere, a gente tem que falar de uma reparação histórica, porque o Estado é credor. O cárcere é só uma das dores que a gente passa”, afirmou a sacerdotisa e ativista.

Não há dados sobre declaração de cor/raça para todas as pessoas encarceradas no Brasil, mas os registros existentes corroboram a percepção de Batia. Segundo a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 os dados disponíveis abarcavam cerca de quatro quintos da população carcerária. Entre essas pessoas, 68% eram autodeclaradas pretas ou pardas. Em 2007, os pretos e pardos eram 58% dos encarcerados – em 15 anos, foi um salto de 10 pontos porcentuais.

Encontro do Núcleo da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) - Foto: Camila Felizardo/Instagram

A roda de conversa A violência de Estado antes, durante e após o cárcere: o papel dos movimentos sociais na luta por direitos foi organizada pela professora Veridiana Domingos Cordeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e pela pesquisadora do NEV Bruna Ferrari. A atividade contou também com a mediação de Rosângela Teixeira, também pesquisadora do núcleo. A gravação completa da roda de conversa está disponível no canal do NEV no YouTube.

O ciclo de seminários sobre violência policial continua neste segundo semestre, com encontros híbridos já programados para agosto e setembro. No dia 15 de agosto, às 14h, o NEV receberá duas convidadas para falar sobre a atuação nas redes sociais do movimento de mães de vítimas de violência policial. No dia 12 de setembro, também às 14h, o encontro será sobre o tema do trauma, da memória e da morte violenta. O NEV emite certificados para os participantes inscritos em cada encontro. As inscrições poderão ser feitas em breve a partir do site do NEV.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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