Sequestrados na ditadura argentina podem contribuir com políticas públicas

Pesquisadora da USP conversou com nietos restituidos, tirados de suas famílias por motivos políticos durante a ditadura militar argentina; histórias podem colaborar para ações de memória e justiça

 11/09/2023 - Publicado há 11 meses

Texto: Gabriela Ferrari Toquetti*
Arte: Carolina Borin**

Manifestação das Avós da Praça de Maio, na Argentina, demanda justiça - Foto: Reprodução/Facebook/Abuelas de Plaza de Mayo - Sitio oficial

A prática de sequestrar crianças de seus pais durante a ditadura argentina (1976-1983) ficou conhecida como Plan sistemático de apropiación de menores. Cortar os vínculos familiares, separando os militantes de seus filhos, foi uma forma de destruir a oposição política na ditadura.

Uma pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP analisou as histórias de pessoas que, já adultas, descobriram que foram tiradas de suas famílias biológicas, mostrando como a perspectiva dessas pessoas pode trazer contribuições para políticas públicas relacionadas à memória e à justiça.

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Aline Lopes Murillo percebeu que pode-se pensar nessas crianças como “pessoas memoriais”: seu sangue e seu nome carregam memórias da ditadura militar argentina.

As Abuelas de Plaza de Mayo e os nietos restituidos

A organização não governamental argentina Abuelas de Plaza de Mayo, criada em 1977, tem como objetivo encontrar as crianças sequestradas, hoje adultas, e devolvê-las às suas famílias legítimas. As abuelas criaram um Banco Nacional de Datos Genéticos, em que guardam material genético das famílias que buscam seus filhos. Hoje, a organização já foi responsável por localizar mais de 130 nietos restituidos.

Material de difusão elaborado pelas Avós da Praça de Maio, em 1986 - Foto: Reprodução/APMbib via Wikipedia/CC by 3.0

Aline, que viajou à Argentina e conversou com alguns desses nietos, explica como eles fizeram a descoberta: alguns, nascidos entre 1975 e 1980, não se identificavam com suas famílias de criação e começaram a desconfiar que haviam sido vítimas de apropiación. Com ajuda das Abuelas, confirmaram suas suspeitas.

Já outros nietos passaram pelo processo chamado de allanamiento, que é um mandado de busca e apreensão de material genético. Essas famílias foram investigadas e forçadas a fazer exames de DNA, que passaram a ser obrigatórios em 2009. A mudança na lei ocorreu porque alguns nietos, coagidos por seus apropiadores, se recusavam a fazer os exames.

Victoria e Juan

Aline conta que as reações dos nietos ao descobrirem que foram vítimas de apropiación são variadas. Victoria Montenegro e Juan Cabandié, por exemplo, possuem histórias emblemáticas e, atualmente, ambos são políticos conhecidos na Argentina.
Victoria Montenegro - Foto: Arquivo Pessoal/Instagram

Victoria Montenegro - Foto: Arquivo pessoal/Instagram

Victoria passou a vida amando e admirando seu suposto pai, sem saber que ele era investigado pelas Abuelas por apropiación. Não foi fácil para ela, portanto, descobrir a verdade com o exame de DNA e ver o homem que a criou sendo preso. Com o passar dos anos, Victoria compreendeu sua história: durante a ditadura, seu “pai” assassinou sua mãe biológica e a sequestrou. Quando começou a ter contato com sua família legítima, passou a se aproximar dela e a militar ao lado das Abuelas.

Juan Cabandié - Foto: Arquivo Pessoal/Instagram

Juan, por outro lado, era maltratado pelo policial por quem foi criado. Ele suspeitava ter sido vítima de apropiación e procurou a organização das Abuelas. Com a confirmação pelo teste de DNA, voltou-se contra os apropiadores. “Lamentavelmente, mãos impunes me agarraram e me tiraram dos braços de minha mãe. Hoje estou aqui, 26 anos depois, para perguntar aos responsáveis por essa barbárie se eles têm coragem de me enfrentar, cara a cara e nos olhos, e me dizer onde estão meus pais”, afirmou Juan em declaração pública em 2004.

Memória e justiça

“Algo que me chamou a atenção na Argentina foi a eficácia de narrar a vida. A partir dessa difusão da história de vida, as políticas públicas em relação à ditadura militar acontecem. Quando os nietos reaparecem, cria-se uma comoção na sociedade, que volta a falar sobre a ditadura”, explica Aline. Ela relata que os nietos publicaram pequenos vídeos contando suas histórias em diversas mídias e redes sociais. Isso incentiva outras pessoas que desconfiam de sua origem a procurar as Abuelas para fazer o teste de DNA. “A história de vida é potente”, diz a pesquisadora.

A pesquisadora afirma que um dos produtos importantes do seu trabalho foi a perspectiva dos nietos, pois apenas o ponto de vista das Abuelas costuma ser estudado. Ouvir o que os nietos têm a dizer é uma forma potente de contribuir com políticas públicas relacionadas à ditadura.

“Existem pessoas que, por si sós, já portam memórias e constituem a história de um país. Aqui no Brasil, podemos pensar na Dilma, por exemplo”, afirma, referindo-se à ex-presidenta do Brasil. Dilma Rousseff foi presa e torturada durante a ditadura militar do Brasil. 

Aqui, com a Lei da Anistia, as histórias da ditadura não foram divulgadas como na Argentina, de acordo com a pesquisadora. Mas, no contexto político atual, Aline tem esperança de que o Brasil possa seguir o exemplo dos argentinos e levantar discussões sobre memória e justiça.

Aline Lopes Murillo - Foto: Arquivo pessoal

*Da Assessoria de Comunicação da FFLCH

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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