Separação de mães e bebês no cárcere é precoce e agressiva

Mulheres presas durante a gravidez sofrem com falta de apoio psicológico e têm suas maternidades negadas pelo Estado

 10/01/2024 – Publicado há 11 meses

Texto: Laura Pereira Lima*

Bordado Livre que retrata uma pessoa em posição de negativa, movimento da capoeira. Feito por Luiza Ferreira – Imagem: Reprodução

Um elemento particular chama a atenção dos poucos visitantes que adentram um presídio feminino: roupas em miniatura penduradas nas grades, secando ao sol. Pequenas demais para as encarceradas, as vestimentas pertencem a “inquilinos” com estadia curta: os bebês. Durante seis meses, os filhos das mulheres que foram presas durante a gravidez permanecem com suas mães, para depois serem retirados pelo Estado e encaminhados para familiares ou abrigos, em um processo que deixa marcas profundas na mãe e no filho.

As roupas de bebê chamaram a atenção da psicóloga Luiza Ferreira, que em 2017 começou a trabalhar em um projeto social que acompanhava mães e filhos em uma penitenciária na capital de São Paulo. E foi a partir dessa experiência que a psicóloga desenvolveu no Instituto de Psicologia (IP) da USP a dissertação Quando a mãe é presa a casa cai: a separação, legalizada pelo Estado, de mulheres-mães e seus bebês em situação de cárcere. “Busquei entender o que sustenta o discurso de retirada das crianças”, explica a pesquisadora, que constatou uma falta de preocupação do Estado em garantir o bem-estar da criança e da mãe após a separação. 

Luiza Ferreira - Foto: Arquivo pessoal

Luiza  acompanhou a trajetória de duas mulheres e seus respectivos filhos durante dois anos. Em um dos casos analisados, o bebê foi encaminhado para um Serviço de Acolhimento Institucional vinculado à Prefeitura, no outro, foi entregue à família de origem. “Trabalhei a partir da escuta da singularidade de cada situação”, conta Luiza, que observou os processos judiciais e a atuação dos serviços sociais durante e após a separação.

Separação legalizada

Bordado livre inspirado na imagem de @evauviedo. Feito por Luiza Ferreira

Segundo a legislação na capital de São Paulo, os bebês que nascem no presídio devem ficar no mínimo seis meses com a mãe e, no máximo, dois anos. A lei  se baseia em critérios biológicos, já que é recomendado que o bebê se alimente somente de leite materno até os 6 meses e que a amamentação prossiga junto com alimentos sólidos até pelo menos os 2 anos, para garantir mais proteção contra doenças e desnutrição. “É uma biologização das relações”, explica Luiza, criticando o descaso quanto ao vínculo afetivo entre mãe e filho.

Na prática, é difícil encontrar alguma mãe que fique mais de seis meses com o filho. “Em São Paulo, esse tempo mínimo é interpretado como máximo e, ao completar 6 meses, o bebê já é retirado do presídio”, conta Luiza. Após esse período, a criança é encaminhada para a casa de familiares e, segundo a pesquisadora, não há preocupação em garantir a adaptação do bebê no novo ambiente. “Muitas vezes o bebê fica com parentes que nunca sequer o visitaram”, explica, argumentando que várias mulheres são enviadas para presídios distantes e o processo de visita é custoso — tanto financeira quanto psicologicamente. Quando a família não pode ser contatada ou não aceita acolher o bebê, a criança é encaminhada para um Serviço de Acolhimento.

“A retirada do bebê produz um trauma profundo para essas mulheres, é uma violência de Estado”

De um lado, os filhos são expostos a ambientes desconhecidos sem qualquer rede de apoio e apresentam dificuldades de adaptação; do outro, as mães enfrentam um luto traumático e solitário. O apoio institucional para a mãe é precário — há apenas uma psicóloga e uma assistente social para atender todas as presas de uma unidade — e a resposta para o luto do filho geralmente recai em prescrições de remédios psiquiátricos. 

Da Hipermaternidade à Hipomaternidade

A falta de apoio às mães no cárcere foi sentida por Karina Dias, presa em 2010 por tráfico de drogas, aos sete meses de gravidez. Após a separação, seu bebê ficou quatro dias sem comer, porque não havia desmamado ainda e dependia do leite materno para se alimentar. “A médica só falou ‘tem que desmamar seu bebê’”, conta Karina, ressaltando que sentiu falta de orientações e acompanhamento médico para o desmame. “A criança não tem culpa pelo meu crime. E a separação é muito agressiva para a criança também”, relata.

Apesar de ter sido presa no fim da gestação, os dois meses que passou grávida no presídio foram difíceis. “Passei muito calor e cheguei a dormir no chão, porque a companheira de cela não me cedia a cama”, conta Karina. Ao fim da gravidez, foi levada algemada para um hospital, e permaneceu mobilizada até a intervenção de uma enfermeira, que solicitou a retirada das algemas para o parto. A liberdade foi pontual: nos quatro dias que permaneceu no hospital ficou presa pelo pé e pela mão na cama hospitalar.

“Falta apoio psicológico, para ajudar antes e depois da entrega do bebê”

+ Mais

Pesquisa mostra que o Brasil tem terceira maior população carcerária feminina do mundo

Prisão domiciliar para as mulheres grávidas e com filhos de até 12 anos tem como objetivo principal a proteção da primeira infância

Após o parto, Karina viveu seis meses em uma condição que os pesquisadores designam de “hipermaternidade”. Impossibilitadas de sair e trabalhar, as mães em situação de cárcere passam 24 horas por dia cuidando do bebê e não podem deixá-lo na creche ou com um familiar. “É uma ligação muito forte com a criança”, relata a ex-presidiária. E, de um dia para o outro, o bebê que consumia todo tempo de Karina foi retirado para viver com os avós paternos, em Minas Gerais. 

“Foi o pior dia da minha vida”, lembra  Karina, que relata ter sentido um vazio após a separação abrupta. Isoladas, as mães enfrentam a ausência do bebê sob protestos do corpo: o leite materno seca, em um processo doloroso que serve como lembrete da ausência.

O laço entre mãe e filho permaneceu rompido. Após sair do cárcere, viu o filho só uma vez, quando o menino tinha 2 anos. Hoje em dia ele tem 13. “Não foi o que eu imaginei. Falaram que o bebê seria meu, mas quando fui lá, percebi que ele já estava muito apegado à família do pai”, relata. Recém-egressa da prisão, Karina não tinha condições financeiras ou estabilidade para cuidar do menino, e deixou-o com os parentes, com quem ele vive até hoje.

Prisão domiciliar

Bordado livre inspirado na capa do livro "No fundo do poço" de Buchi Emecheta. Feito por Luiza Ferreira

Luiza defende que uma solução, ainda que provisória, para o trauma gerado pela separação são as medidas desencarceradoras. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) substituiu a prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes, lactantes e mães de crianças de até 12 anos ou pessoas com deficiência. A medida foi vista como um aceno progressista, que permitiria que mães e bebês permanecessem juntos. Na prática, não vem sendo efetiva. Um relatório elaborado pela ONG Instituto Terra Trabalho e Cidadania, em 2019, mostrou que a maioria das mães não recebe direito à prisão domiciliar e, as poucas que conseguem, ainda sofrem com as barreiras. “Acompanhamos uma mulher que não conseguia levar o filho na escola, porque ultrapassava em poucos metros a quilometragem que ela poderia percorrer”, conta a psicóloga.

Maternidades negadas

Mirna, nome fictício de uma das mulheres cujas trajetórias Luiza acompanhou, teve sua filha retirada e enviada para um abrigo pouco mais de seis meses após o parto. Quando ela  saiu da penitenciária, alguns meses após a separação, foi proibida de visitar a filha no abrigo, após ter tido uma suposta recaída de drogas. “Ela caiu em um sofrimento profundo e não conseguiu corresponder ao que era esperado dela, porque eles não levaram em conta toda a produção de adoecimento a que ela foi submetida desde criança”, conta a psicóloga. Depois do acontecimento isolado, a filha de Mirna foi encaminhada para adoção. 

Como Mirna, outras mulheres negras e pobres foram permanentemente separadas dos filhos. A partir desse acontecimento, Luiza busca sintetizar por que algumas maternidades são negadas pelo Estado. “Tem uma universalização do que é ser mãe e mulher que diz respeito a um ideal burguês e branco”, explica a pesquisadora. Segundo ela, as decisões do Judiciário, composto majoritariamente de homens brancos, são atravessadas por esses ideais da branquitude, que legitimam experiências maternas de mulheres brancas de classe alta e condenam mães negras e periféricas. Mesmo dentro do presídio, Luiza notou que mães brancas recebiam privilégios que não se estendiam às mulheres negras, como a possibilidade de acompanhar o bebê no hospital sem a roupa da penitenciária.

O discurso por trás da separação

A justificativa para a retirada dos bebês parte de uma suposta defesa das crianças, segundo Luiza. “Esse discurso neoliberal valida uma série de violações contra mulheres, como se garantir o direito das crianças fosse contrário ao direito da mãe”, afirma. Segundo a psicóloga, defende-se que a criança é um ser em desenvolvimento, e não um sujeito completo, uma visão desenvolvimentista que, inclusive, sustenta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Essa visão desliza rapidamente para uma leitura moralizante de que uma falha da mãe vai prejudicar o desenvolvimento da criança, o que justificaria a separação”.

E o discurso atravessa os muros do cárcere e se transforma em culpa. Algumas mães passam a acreditar que são responsáveis por estarem ali com seus filhos. “Na verdade é uma violência presente na estrutura, não no indivíduo”, explica a pesquisadora, que durante o trabalho em campo ouviu com frequência frases como “Meu filho está pagando pelo que eu fiz”.

*Estagiária sob supervisão de Antonio Carlos Quinto


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.