Relatos de refugiados sírios impactam a percepção pública sobre o deslocamento forçado

Pesquisa da USP analisa série fotográfica de projeto norte-americano e suas reverberações no ambiente digital

 Publicado: 13/12/2024 às 17:05

Texto: Maria Trombini*

Arte: Joyce Tenório**

Imagem: Jovens em praça pública se manifestam com a nova bandeira da Síria

Relatos de refugiados sírios impactam a percepção pública sobre o deslocamento forçado – Foto: Steve Eason/Flickr – CC BY-NC 2.0

Desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, boa parte das representações midiáticas sobre os refugiados e o contexto de exceção abordavam a temática de maneira estigmatizada. A análise é de Ludmila e Silva Masih, que  explorou a série fotográfica Syrian Americans, produzida pelo projeto Humans Of New York (Hony), como uma forma de apresentar uma imagem alternativa e diversa da população em deslocamento forçado.

Mestre em Estudos Culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, Ludmila registrou o resultado de suas análises na dissertação de mestrado intitulada “Syrian Americans”: a narração autobiográfica de refugiados sírios no meio digital, que teve a orientação do professor Ricardo Santhiago Corrêa. 

O Humans Of New York (Hony) é uma iniciativa do autor e fotógrafo americano Brandon Stanton. Ele começou como um projeto fotográfico, em 2010, cuja meta inicial era fotografar dez mil nova-iorquinos pelas ruas da cidade. Stanton começou também a entrevistar os fotografados, tornando o Humans of New York uma espécie de fotoblog. Ao longo dos anos, o HONY ampliou horizontes para contar histórias além dos limites geográficos de Nova Iorque. Pessoas de mais de vinte países diferentes tiveram suas histórias e fotografias registradas no portal.

Imagem: Mulher branca, sorridente usando óculos arredondados e blusa marrom
Ludmila e Silva Masih - Foto: Currículo Lattes

O especial Syrian Americans relata a trajetória de dez famílias em situação de refúgio, provocada pelos conflitos em território sírio, e cujas solicitações de reassentamento nos Estados Unidos foram contempladas. A série foi elaborada em parceria com Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur.  

“Há um movimento global de fechar fronteiras, deportar imigrantes e dificultar a migração. Quando a gente se propõe a ouvir a história das pessoas que contam suas histórias de deslocamento, de refúgio e de imigração, a gente está dando, na verdade, uma oportunidade de se aproximar do outro. Esse contato intercultural é muito importante” Ludmila e Silva Masih

Relatos plurais

Ludmila coletou comentários das publicações no Humans Of New York no Facebook para analisar quais os pontos dos relatos provocavam ações dos internautas, como refletir, comentar e compartilhar.
“Busquei entender como é que essas narrativas ressoavam com os leitores, a ponto de as pessoas pararem, pensarem sobre e sentirem vontade de digitar um comentário ou compartilharem com os amigos, e quais aspectos desses relatos mais ressoam”, descreve a pesquisadora.
Segundo dados do Acnur, a Guerra Civil na Síria provocou ao menos 350 mil mortes e o deslocamento forçado de 14 milhões de pessoas, tanto dentro quanto para fora do país. Cerca de 6 milhões de sírios buscaram refúgio em países vizinhos, especialmente na Turquia, ou em países da Europa e da América do Norte - Fotomontagem de Jornal da USP com imagem de L'Américain/Wikimedia Commons
Ela explica que a pluralidade de relatos ajuda a personificar temáticas tão amplas e complexas, como guerras e migrações, e configura uma abordagem humanizada dos refugiados. A identificação do público com as narrativas também influencia no engajamento do público.

Humans Of New York (Hony), um sucesso no Facebook

Antes da série Syrian Americans, o Humans of New York também produziu a série Refugiados. “As duas foram realizadas em outros países com apoio do Acnur. Ainda hoje, se formos pensar, é um pouco inovador fazer uma parceria assim. Naquela época, era ainda mais chocante, porque existia uma discussão muito presente em relação à diáspora síria, que a mídia chamava de ‘crise migratória’. Também aconteceram vários ataques reivindicados por grupos extremistas, como o Isis [do inglês Islamic State of Iraq and Syria]. Nesse momento, o Hony faz essa série.” 

Você abria a rede social e via ali pessoas contando suas histórias, pessoas que a gente não costuma ver ou ouvir na mídia. Para mim, aquilo foi muito impressionante."

O primeiro contato de Ludmila com o projeto do Hony foi durante a graduação em Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará. Para a disciplina de Cibercultura, ela elaborou um artigo em que explorava a representação da identidade cultural iraniana nas publicações do Hony. 

Ela relembra o protagonismo da plataforma Facebook à época e como isso influenciou sua trajetória acadêmica: “Em 2017, o Facebook ainda era muito utilizado e o Humans of New York era uma página muito grande. Ainda é, mas eu acho que o ápice foi naquele momento. Era uma possibilidade de explorar, de certa forma, o que estava acontecendo com outras pessoas. Ter esse contato com o outro, que também é uma pessoa comum”. 

Em 2017, o Facebook atingiu a marca de uma década como a rede social mais acessada do mundo. No Brasil, a plataforma ocupava o segundo lugar no ranking de maior público, atrás apenas do WhatsApp - Imagem: Reproudção/Humans of New York/Facebook

Mudança de rota

Para o mestrado, todas as ideias de pesquisa de Ludmila tinham como elemento comum temas relacionados à migração e à identidade. A princípio, ela pretendia aprofundar os estudos sobre representação identitária de refugiados no projeto do Humans Of New York, tendo como foco, dessa vez, a comunidade síria.  

Mas a pesquisadora acabou realizando algumas mudanças na abordagem do trabalho: “Eu vi que existiam ali coisas que eram interessantes, interseções legais e que fariam sentido para desenvolver na pesquisa. Meu orientador, o professor Ricardo Santiago Corrêa, fez várias sugestões de textos, e eu acatei muitas delas. A partir daí, chegamos na temática das narrativas e dos relatos pessoais”. 

O impacto no público

Ludmila selecionou alguns comentários de diferentes publicações da série Syrian Americans na página do Facebook do Humans of New York. Neles, ela observou quais aspectos dos relatos pareciam ter provocado maior impacto nos internautas. Ao todo, ela relata ter encontrado três fatores principais. 

O primeiro destaque se relaciona com a diversidade de narradores e de temáticas abordadas. Há homens e mulheres; crianças, jovens, adultos e idosos; pessoas sozinhas ou em família. Entre os relatos, estão histórias sobre sonhos acadêmicos, resistência, maternidade, solidão, romance, acolhimento e criatividade.  

“Quem está ali falando não era só aquela figura que é mais presente na mídia, aquele estereótipo do refugiado como um homem, jovem e barbado. Tem uma mulher que é médica. Até que ponto isso é uma coisa comum dentro do que a gente imagina sobre a Síria? Outro ponto é que nem todas as histórias são tristíssimas. Claro que é sobre um assunto muito sério, mas nem todos os relatos focam nessas partes da tristeza em si. Essa diversidade é uma coisa que pareceu chamar a atenção do público”, aponta Ludmila. 

O segundo fator aborda a humanização, que a pesquisadora indica estar diretamente relacionada à questão da diversidade. A percepção de que os refugiados também vivem experiências comuns ao cotidiano de todos aproxima os narradores dos internautas. 

“Quando uma narradora conta os desafios de ser mãe de uma criança neuroatípica no contexto da guerra, existe algo ali que vai ressoar com outras mães de crianças neuroatípicas. O cenário da guerra está lá e é realmente uma coisa muito específica daquele relato. Mas, no momento em que ela vai falar da maternidade, da experiência de ter um filho que está dentro do Transtorno do Espectro Autista, uma mãe que vivencia uma situação semelhante com o próprio filho cria essa conexão, que permite uma humanização. Então, não é só uma mulher síria refugiada que está lá do outro lado do mundo. Não! Essa mulher é também uma mãe que vivencia uma experiência semelhante à minha, que estou aqui em outro canto do mundo”, explica Ludmila. 

O terceiro ponto explicita o maior engajamento à causa quando é possível identificar pessoas e trajetórias específicas, uma estratégia de comunicação muito promovida pelo Acnur.  

“Se eu vejo na TV notícias horríveis sobre a guerra na Síria, sobre o deslocamento forçado e a crise humanitária, talvez pareça difícil que eu, sozinha, consiga fazer algo sobre um cenário tão complexo e difícil. Mas, quando vemos uma narrativa individual, parece mais possível aos internautas se conectarem e engajarem àquela história”, argumenta Ludmila.

A série Syrian Americans retrata pessoas que tiveram visto aprovado para ir aos Estados Unidos. Nas histórias, são mencionados os destinos e planos para a vida em solo norte-americano. A pesquisadora conta que em alguns comentários das postagens, os internautas se dispunham a criar redes de apoio para acolher os refugiados: “as pessoas sugeriam doação de roupa e de dinheiro ou perguntavam como poderiam ajudar. Também abordavam um lado político, questionando representantes e debatendo ações”.

Ludmila observa que, com o amplo alcance da página do Humans of New York e a grande repercussão da série fotográfica, nem todos os comentários seguem a abordagem diversa e inclusiva proposta pelo projeto. A maioria deles, segundo a pesquisadora, visa descredibilizar os relatos, apontando as histórias como ficção. 

“Existem comentários negativos. O que acontece é que muitas vezes eles são respondidos pelos outros internautas. A maioria dessas mensagens estão relacionadas à ideia de que aquilo é uma mentira. Por exemplo, dizem ‘Vocês estão sendo enganados, essas pessoas são criminosas e terroristas, eles estão vindo para os Estados Unidos com o objetivo de invadir. Mas, no geral, eles são bem pouco numerosos e, normalmente, rebatidos pelos próprios internautas”, conclui a pesquisadora.

*Estagiária sob supervisão de Antonio Carlos Quinto

 


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