Da esquerda para direita, José Rodrigues Cajado Filho, Odilon Lopez, Antônio Pitanga, Afrânio Vital e Adélia Sampaio - Fotomontagem: Jornal da USP - Fotos: Freepik, Facebook/IFMG Campus Sabará, Sites USP/ECA, Facebook/Afrânio Vital, Foto Netun Lima/Universo Produção via Flickr e Youtube/Cinemateca Paulo Amorim

Realizadores negros ainda são minoria no audiovisual brasileiro

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais faz estudo sobre a negritude dentro das políticas públicas para o setor

 09/05/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Rosiane Lopes*
Arte: Carolina Borin Garcia

Seja em filmes, novelas ou séries, a baixa participação de atores negros é uma característica presente na história do audiovisual brasileiro. Apesar do aparente crescimento da negritude na TV, por exemplo, essa parcela da população, que equivale a 56% dos cidadãos do País, ainda é sub-representada — e não é só no elenco.

Algumas obras de realizadores negros ganham destaque. A Negação do Brasil, por exemplo, do cineasta e doutor pela Escola da Comunicações e Artes (ECA) da USP Joel Zito Araújo, ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival “É Tudo Verdade”, em 2001. Já o longa Café com Canela, de Glenda Nicácio em conjunto com Ary Rosa, ganhou o prêmio do júri popular na “50ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro”, em 2017.

Apesar de casos como os de Glenda e Zito, ainda há pouco espaço para profissionais pretos e suas produções no audiovisual brasileiro. Muitos desses realizadores dependem de políticas públicas para que seus trabalhos sejam viabilizados, cheguem ao público e conquistem notoriedade. Esse caminho, no entanto, é cheio de impedimentos.

Trailer de "Café com Canela", premiado em 2017 no Festival de Brasília - Vídeo: Reprodução/YouTube

É desses impedimentos que trata a tese Por uma política audiovisual preta no Brasil: estudo sobre a negritude dentro das políticas públicas audiovisuais brasileiras e as questões que envolvem ações afirmativas para produção audiovisual negra no Brasil. A pesquisa de Renato Candido de Lima, realizada no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA sob orientação do professor Almir Almas, também analisa a historicidade da presença de pretos na cinematografia do País.

Renato é cineasta formado em Audiovisual e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA USP, além de professor da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM). Sua tese de doutorado, que será transformada em livro — ainda sem data de lançamento — teve origem em suas experiências pessoais como realizador negro.

Depois de várias tentativas sem sucesso para conseguir viabilizar suas produções por editais, o pesquisador percebeu que outros profissionais negros também não conseguiam. Foi aí que ele começou a perceber como o racismo estrutural atingia a negritude no audiovisual. “Até pensei: ‘devo escrever mal, meu roteiro deve ser ruim’. Mas outras pessoas que eu fui encontrando também não estavam conseguindo, todo mundo preto. Então quer dizer que o buraco é mais embaixo”, conta.

Renato Candido de Lima - Foto: Arquivo Pessoal
Na pesquisa, Renato analisa como se deu a distribuição de recursos para cineastas brancos e negros a partir da Lei do Audiovisual de 1993. Em seguida, além de buscar entender a história da negação da presença negra por meio de políticas cinematográficas, o pesquisador apresenta, ao final de sua tese, uma lista de propostas que agem contra o racismo no audiovisual.

“Foi uma vingança fazer essa tese. É uma vingança [contra] o racismo, ainda que seja só uma tese. Não no sentido sórdido, mas é uma coisa do tipo: ‘olha, não dá mais pra ficar esperando, a gente só se vira com resto de política pública’”.

‘Sempre teve preto!’: a existência negra no audiovisual

Na tese, Renato destaca nomes de alguns cineastas negros presentes em diferentes momentos do audiovisual no País. Nos anos 1940 e 1950, ele cita José Rodrigues Cajado Filho. Anos mais tarde, no contexto da Embrafilme, surgem Adélia Sampaio, Afrânio Vital, Agenor Alves, Antônio Pitanga, Ari Cândido Fernandes, Paulo Veríssimo, Odilon Lopez, Valdir Onofre e Zózimo Bulbul.

Mesmo que essas realizadoras e realizadores se destacassem por suas produções, eles não conseguiam dar continuidade à sua carreira cinematográfica, como outros cineastas brancos do mesmo período. Sendo minoria em um espaço majoritariamente branco, a presença de cineastas negros era pontual e a sua ausência pouco problematizada. Renato explica que a existência negra na cinematografia sempre foi uma realidade, mas como mão de obra de execução: ligar cabos, levantar tripés, colocar refletor, atuar como contrarregra, passar roupas. “Tinha muita gente preta. É que o poder de criação da narrativa não estava nas nossas mãos”, diz o pesquisador.

Atualmente, o poder de criação chega a mais realizadores negros e negras. Como exemplo, Renato cita Gabriel Martins com Marte Um (2022), Viviane Ferreira com Um Dia Com Jerusa (2021) e Déo Cardoso com Cabeça de Nego (2020). “Essa galera toda está fazendo longa e está chegando mais gente dirigindo série, a gente está emergindo”, conta.

Na esquerda, trailer do filme "Marte Um". Na direita, trailer de "Um dia com Jerusa" - Vídeos: Reprodução/YouTube

Os impedimentos na própria pele

O pesquisador relata que sempre procurou poesia nas coisas. Com o cinema não foi diferente. Seu gosto por filmes ultrapassava os blockbusters de Hollywood. As obras que tentavam dizer algo além do que comumente se esperava chamavam a sua atenção e o influenciaram a entrar no curso de Audiovisual. Antes de se tornar cineasta, ele se formou em Telecomunicações e Eletrônica. Ao trabalhar como eletrônico, se deparou com o contrário de poesia.

“Trabalhar com eletrônica era lidar de uma maneira muito marcante e rasgada com o racismo. E eu imaginava, na minha ingenuidade, que no cinema ia ser diferente. Não foi. Foi até pior”, conta.

Ao entrar na graduação, em 2002, as cotas na USP ainda não existiam. O pesquisador enfrentou seu primeiro obstáculo: ser um dos poucos estudantes negros em uma universidade formada por uma maioria branca.

Os impedimentos chegaram cedo. Renato conta que havia uma espécie de seleção de projetos internos para financiamento no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão. Projetos de outros estudantes brancos eram selecionados, enquanto o seu não. Produções suas e de outros colegas negros dependiam de financiamento coletivo para serem realizadas.

Mesmo depois de formado, as dificuldades permaneceram. O cineasta relata ter continuado a ganhar, em 2007, a mesma quantia de quando trabalhava como técnico de TV a cabo em 2001. “Isso me fez refletir: mano, parece que eu estou indo para trás em questão de evolução de trabalho e salário”.

Necessidade de mudança

No final de abril, o Ministério da Cultura (Minc), lançou em São Paulo, com o Mais Mulheres, o edital Ruth de Souza. O edital selecionou 10 longas-metragens, dois para cada uma das cinco regiões brasileiras, sendo metade dos projetos destinado a mulheres pretas e indígenas - Foto: Facebook / Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro

Renato afirma que as políticas públicas do audiovisual brasileiro são influenciadas pela branquitude. Ele parte da hipótese de que as instituições de fomento audiovisual no País agem de forma racista. “A gente vai entendendo que os editais têm uma dimensão de questão racial”, diz.

Para que um projeto seja selecionado em editais de financiamento, ele precisa passar por uma comissão formada, geralmente, de pessoas brancas. Com frequência, estas bancas são compostas por pessoas que ganharam editais anteriormente — o que reforça a manutenção da pouca diversidade entre os responsáveis pela seleção. Essa banca, por vezes, escolhe os projetos vencedores influenciada por estereótipos racistas, segundo Renato: “aquelas pressuposições do tipo: ‘ah, é preto, não vai entregar o filme, vai se embananar e fazer mau uso do dinheiro público’”.

Para que esse cenário mude, a elaboração e implementação de políticas públicas audiovisuais voltadas para a negritude é necessária. Pensando nessa possibilidade, o pesquisador desenvolveu propostas que abordam desde a formação de cineastas, produção e distribuição, até a criação de um observatório de ações afirmativas.

Enquanto as mudanças não chegam, instituições como a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), entidade da qual Renato já foi presidente, continuam a lutar pela defesa de ações afirmativas para produções de realizadoras e realizadores negros.

Entre o coletivo e o solidário, uma nova economia preta

Para o cineasta, a presença pontual de pessoas pretas em grandes produtoras não é suficiente para garantir a existência contínua da negritude no audiovisual. É preciso que sejam criadas políticas para que negros e negras possam viabilizar e estruturar suas próprias produtoras.

A ideia é que essas novas produtoras, feitas a partir da negritude, sejam inseridas em uma economia preta que extrapole a noção predominante de mercado audiovisual — mercado estruturado na acumulação de capital e protagonizado por grandes empresas produtoras e distribuidoras de conteúdo que recebem a maior parte dos recursos das políticas audiovisuais.

“A visão de economia da cinematografia sempre esteve voltada para uma estrutura econômica baseada no racismo, na origem de um mercado baseado na criação de uma indústria, de um dono de um polo industrial. Essa maneira não leva em conta a nossa existência [pessoas negras]”.

Dentro dessa lógica afrocentrada, as produtoras se estruturariam em uma economia solidária e coletiva que, além de movimentar outros setores econômicos, teria como prioridade o apoio à existência preta da comunidade à sua volta.

Renato explica que para que produções audiovisuais aconteçam, a contratação de serviços locais voltados para a alimentação, cenário e transporte, por exemplo, é essencial. Esse processo não só faz com que o dinheiro circule pelo território, geralmente periférico, mas também contribui com a subsistência dos moradores.

“Essa tese é um clamor para sensibilizar que essa [economia preta] e outras economias de cultura precisam ser financiadas e levadas a sério”, diz.

A ideia é que essas novas produtoras, feitas a partir da negritude, sejam inseridas em uma economia preta que extrapola a noção predominante de mercado audiovisual — mercado estruturado na acumulação de capital e protagonizado por grandes empresas produtoras e distribuidoras de conteúdo que recebem a maior parte dos recursos das políticas audiovisuais.

“Não basta uma maior visibilidade de personagens negros e periféricos se seus retratos ou suas representações ainda são estereotipados”

Mesmo com a inserção de mais profissionais negros e negras no audiovisual, pessoas brancas ainda são maioria. Segundo a pesquisa Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016, homens e mulheres brancos ocupavam cerca de 95,1% da direção de longas. Na tese, Renato pontua a importância de diferenciar a produção negra audiovisual da presença negra em elenco. Somente contar com atores negros não faz de um filme, série ou novela uma representação da população negra brasileira. Quando uma produção é feita pela branquitude, as chances de estereotipar pretos, pretas e suas vivências são grandes. Por isso, mais produtores negros precisam chegar à direção e roteirização de obras.

*Por Rosiane Lopes, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação da ECA


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.