No dia 26 de setembro, é comemorado o Dia Nacional dos Surdos. Para atender às pessoas com deficiência, em 2012, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência foi implementada no SUS. Passada pouco mais de uma década, um estudo feito na USP mostra que as políticas públicas de saúde para pessoas com deficiência auditiva têm gargalos importantes, pois não contemplam a diversidade da comunidade surda em seus processos de reabilitação e atendimento.
A fonoaudióloga Carla Soleman analisou as políticas do SUS para as pessoas com deficiência auditiva em sua tese de doutorado. A pesquisa intitulada A política de saúde voltada ao cuidado da pessoa com deficiência auditiva: um olhar para a diversidade surda foi desenvolvida na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, sob orientação da professora Aylene Bousquat e defendida em 2023 no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública.
Carla partiu do princípio de que existem diferentes concepções de surdez. Para analisar a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, a pesquisadora considerou dois conceitos de surdez, uma perspectiva orgânico-biológica e uma concepção socioantropológica. A primeira leva em conta o processo de reabilitação para inserir a pessoa surda no mundo oral a partir do implante coclear e do uso de aparelho auditivo. O estudo apontou que, atualmente, todas as políticas de saúde do SUS têm esse foco. Já a concepção socioantropológica considera a comunicação da pessoa com deficiência auditiva a partir da língua de sinais, além de considerar toda diversidade e cultura surda.
As políticas pautadas na concepção orgânico-biológica consideram que existe uma falta e que é preciso restaurar a audição. Por isso, o atendimento tem foco na reabilitação por meio do aparelho auditivo, com treino das habilidades auditivas e da leitura labial. Em uma ótica socioantropológica, a reabilitação considera diferentes formas de comunicação, como a língua de sinais.
“Se uma pessoa tem um benefício com o aparelho auditivo, mas se sente melhor se expressando pela língua de sinais, então ela tem duas formas de comunicação. A via auditiva, como uma entrada de informações, e a via visual e gestual, como forma de expressão. A concepção socioantropológica foca nessa abordagem bilíngue, a língua de sinais como primeira língua e o aprendizado da língua portuguesa para comunicação escrita”, explica a pesquisadora.
Trajetória pessoal
Formada em Fonoaudiologia pela Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, Carla conta que sua formação teve um enfoque oralista da surdez, já que a unidade hospitalar do instituto de ensino foi pioneira no implante coclear no Brasil e possui um dos maiores centros de pesquisa em Audiologia da América Latina.
Durante o mestrado, a fonoaudióloga perdeu a audição do ouvido esquerdo devido a complicações de uma infecção causada pelo bacilo da tuberculose. Essa experiência fez com que ela ressignificasse sua profissão, passando a trabalhar com foco na deficiência auditiva. Carla ainda acrescenta que a partir do contato com a comunidade surda, passou a se ver como uma pessoa com deficiência.
“Até a conclusão do meu doutorado, a pessoa com deficiência auditiva unilateral ainda não era reconhecida por lei. A pessoa com deficiência unilateral foi considerada como pessoa com deficiência só em dezembro de 2023, mas eu passei a me ver entre toda essa diversidade. Há uma diversidade muito grande dentro da deficiência auditiva, existem diferentes graus de perda e cada pessoa se comunica de uma forma, seja pela via gestual, visual ou oral. Então, a rede de saúde tem que atender a deficiência auditiva em toda a sua diversidade”, defende.
Políticas de saúde do SUS
A assistência do sistema de saúde público realiza a identificação precoce de deficiências na fase pré, peri e pós-natal, infância, adolescência e vida adulta. A análise da pesquisa foi feita a partir de itinerários terapêuticos, documentos sobre as políticas públicas desde 1990 até 2019 e entrevistas. A fonoaudióloga escolheu a rede de São José do Rio Preto para fazer um estudo de caso sobre o atendimento à população com deficiência auditiva. “Essa região foi escolhida por ter uma estrutura da Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência, em geral, bem robusta”, diz.
“O itinerário terapêutico tinha como objetivo ver como esse indivíduo passou pelo cuidado dentro da rede. Então, a ideia era analisar se ele teve acesso, se ele não teve, qual foi a realidade que ele vivenciou, se teve reabilitação. A gente identificou por meio dos itinerários terapêuticos que a maioria não tinha tido acesso a língua de sinais na infância. Eles relataram várias situações de privação social porque ficavam à parte das conversas”, conta Carla.
A pesquisadora explica que as políticas do SUS, como estão estabelecidas hoje, são excludentes e discriminatórias porque não incluem toda diversidade existente na comunidade surda. No caso da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, até 2019 não havia nenhuma menção à concepção socioantropológica. Em 2020, houve uma reestruturação do Instrutivo de Reabilitação da rede, que citou pela primeira vez a língua de sinais e que as pessoas com surdez que tivessem essa via de comunicação deveriam ser respeitadas, priorizando o uso da língua de sinais.
Desde 2005, a lei exige a interpretação em Libras em serviços de saúde públicos e privados. Em São José do Rio Preto, há uma intérprete desde 2010. Carla enfatiza que “a presença do intérprete de libras fez uma grande diferença na vida das pessoas porque deu acesso aos serviços de saúde. Este profissional acompanha a pessoa surda numa consulta, faz a interpretação da consulta, consegue falar para o profissional de saúde o que o paciente está sentindo e consegue traduzir o que o profissional de saúde está orientando”.
A política de saúde vigente não consegue atender todo mundo por estar baseada apenas na reabilitação auditiva, que demanda um diagnóstico precoce. Os bebês devem fazer a Triagem Auditiva Neonatal, popularmente conhecida como teste da orelhinha, para detectar perdas auditivas precocemente. Contudo, Carla conta que em muitos casos esse diagnóstico é feito tardiamente, o que inviabiliza a reabilitação por meio do implante ou prejudica a sua efetividade.
“A dificuldade de acesso é a principal. Toda criança, quando nasce, tem que ser submetida ao teste da orelhinha, mas algumas maternidades não têm o profissional fonoaudiólogo para fazer o teste. Então, os pais têm que ir até outro serviço. Só que às vezes, essa família está num município distante, não vai se deslocar até o centro de referência para poder fazer esse teste. E começam a desconfiar de uma perda auditiva na fase de aquisição de fala e linguagem, quando a criança já está saindo da primeira infância. Então, ela perde essa oportunidade de receber o acesso ao dispositivo auditivo”, explica Carla.
Como nem sempre o diagnóstico é feito na idade correta, a pesquisadora defende o modelo bilíngue de reabilitação, que considera tanto o uso de aparelhos auditivos, como o aprendizado de Libras. Uma pessoa diagnosticada tardiamente, com perda auditiva profunda, não vai desenvolver oralidade da mesma forma que um bebê, mas é possível desenvolver a linguagem gestual a partir da libras. Por isso, Carla enfatiza que o sistema de saúde deve considerar a diversidade surda e oferecer outras formas de reabilitação, para além da concepção orgânico-biológica.
“Se uma criança chega no serviço de referência em reabilitação auditiva com oito anos, uma perda profunda, eles vão falar que não tem o que fazer por ela porque para o implante não tem mais indicação e o aparelho auditivo não vai dar ganho. Aprender a língua de sinais e oferecer outras formas de reabilitação são maneiras de incluir essa pessoa na sociedade”, pontua.
*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles