O que uma ocupação por moradia tem a ver com turismo?

Em estudo sobre a Cozinha da Ocupação 9 de Julho, aluna da ECA revê conceitos tradicionais do turismo; ocupação promove almoços e atividades no Edifício 9 de Julho, na Bela Vista, recebe visitas de chefs renomados e já integrou a programação da Jornada do Patrimônio da cidade de São Paulo

 08/11/2022 - Publicado há 2 anos
Cozinha da Ocupação 9 de Julho promove almoços e atividades no Edifício 9 de Julho, na Bela Vista – Foto: Reprodução/Facebook

 

Escrita por Martina Gonçalves Lemos, a monografia Cozinha Ocupação 9 de Julho: ressignificação de si e transmutação da realidade a partir de um sonho coletivo faz considerações sobre o turismo, o protagonismo de uma ocupação por moradia e a importância da interdisciplinaridade. Sob a orientação do professor Reinaldo Miranda de Sá Teles, do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, a hoje ex-aluna decidiu analisar o fluxo turístico incomum que ocorre no centro da cidade de São Paulo.

O projeto da ocupação promove almoços e atividades no Edifício 9 de Julho, na Bela Vista, e conta com a participação de moradores e visitantes, incluindo turistas. Mais de 60 ocupantes fazem parte da equipe fixa que se reúne mensalmente para preparar as refeições. A cada encontro, novos chefs podem se voluntariar para liderar a cozinha, o que proporciona trocas de experiências e a expressão de diversas tradições culinárias.

Passando por discussões político-sociais, Martina critica a construção das concepções teóricas do turismo, que raramente abrem espaço para temas desvinculados do grande mercado do setor. Além disso, ela aponta a escassez de projetos que revisam a historiografia do turismo. A título de exemplo, a autora analisa o catálogo de produções bibliográficas da USP e não encontrou nenhum TCC que contemple a história do turismo. “É um trabalho que considero muito relevante, em que a Martina conseguiu romper algumas fronteiras, inclusive epistemológicas, para desenvolver um tema que, até onde eu conheço, não há outros trabalhos relacionados”, aponta Teles, orientador da estudante. Ao mesmo tempo, o professor ressalta que um dos desafios do estudo foi não desconsiderar o que já existia enquanto referencial teórico, mas expandir o que se entende por “turismo” e por “turistas”.

Segundo a autora, os almoços atraem uma média de 3 mil pessoas para a ocupação por domingo – Foto: Reprodução/Instagram

A turismóloga destaca que a Cozinha se diferencia das outras propostas do mercado por sua autonomia e criatividade, dissociando-se do trade turístico. O conceito de trade turístico se refere a um conjunto de equipamentos e serviços que compõem a oferta turística de alto potencial de renda e alcance. Esses equipamentos e serviços são representados por hotéis e outros meios de hospedagem, bares e restaurantes e agências de viagem, por exemplo.

“Através de pesquisa bibliográfica e trabalho de campo, conclui-se que é possível uma ocupação por moradia relacionar-se com o turismo, desde que inaugurado(s) novo(s) sentido(s) do que se denomina turismo”, afirma Martina.

Teles conta que o trabalho começou em uma disciplina da graduação que ele leciona, Geografia do Turismo, tendo como base os autores Paul Claval e Milton Santos. A partir de um arcabouço teórico baseado nas manifestações culturais locais, Teles conta que o trabalho de Martina pensou a cidade como um espaço vivo e compartilhado, mas também identificou as fraturas geradas pelo processo de gentrificação das cidades. “Isso nada mais é do que tirar pobres e gente que o sistema não considera esteticamente aceitáveis para alguns espaços”, explica.

Apesar deste processo, Teles diz que alguns achados também foram surpreendentes. “Para entender essas fissuras, ela encontrou muita fartura na ocupação; fartura na relação entre as pessoas, na cultura, na gastronomia, nessa conexão de todo o grupo”, diz.

 

Cozinha, cultura e luta

Embora a elaboração do projeto tenha tido início em dezembro de 2017, o primeiro almoço foi divulgado apenas em março de 2018, com a publicação de um cartaz no perfil do Instagram da iniciativa. Aos poucos, a Cozinha foi se desenvolvendo e alcançando maiores públicos, o que alavancou a visibilidade do próprio movimento militante. Em 2019, a Ocupação 9 de Julho fez parte da programação da Jornada do Patrimônio, cujo tema foi Memória Paulistana, e desde então as parcerias só aumentam.

Dentre as personalidades que já visitaram a Cozinha estão a jurada do programa Masterchef Helena Rizzo, a culinarista e apresentadora de televisão Bela Gil e os artistas Criolo, Maria Gadú e Ana Cañas. O entretenimento também se dá por meio de outras atividades, como festas juninas, festas para orixás, shows de música, tendas de circo, salas de leitura, cinema ao ar livre e horta comunitária.

Helena Rizzo, eleita em 2014 a melhor chef do mundo pelo prêmio 50 Best Restaurants of the World, participou da Lute Como Quem Cuida, uma campanha de produção e doação de alimentos – Foto: Reprodução/Facebook

A Cozinha faz girar uma extensa cadeia econômica, consolidando-se como uma ação turística com papel importante na distribuição de renda, segundo Martina. Todo o dinheiro arrecadado nos almoços é reinvestido na própria ocupação e seus membros. “Seja através da venda das refeições, seja através das barraquinhas dos moradores no pátio externo [o dinheiro arrecadado] é utilizado para girar a economia doméstica das famílias”, aponta a autora.

Ao Jornal da USP, o orientador do trabalho afirmou que o desenho da pesquisa utilizou uma perspectiva integradora do ecossistema urbano, em que a integração humana se realiza para manter rendimentos de recursos sustentáveis a longo prazo. “O trabalho da Martina revela como o grupo Ocupação 9 de Julho desenvolveu diversos arranjos voltados ao lazer, ao turismo, à gastronomia e à cultura. Se pensarmos neste modelo de desenvolvimento econômico, que apresenta um déficit de moradia, a exclusão de um grupo enorme de pessoas no mercado de trabalho, a organização da ocupação se integra e oferta algo à cidade de maneira bem autônoma”, afirma.

Nessa rede produtiva não há participação de intermediários, agenciadores, acionistas ou do poder público. De acordo com a estudante, é por não ter interferências externas e por dar protagonismo aos sujeitos locais que o projeto se torna singular e se distancia do tradicional trade turístico. Ela ainda sugere que, a partir da experiência da Cozinha, é possível refletir sobre novas maneiras de se pensar o turismo, indo além de indicadores como lucratividade e competitividade. “É nesse lugar de não mercado que o Turismo se revela, verdadeiramente, como ferramenta capaz de dar voz a novos interlocutores e protagonistas”, diz.

Martina acredita que é preciso produzir novos sentidos para o próprio turismo e que “talvez o turismo seja melhor entendido a partir da sua indisciplina do que a partir da sua disciplina”. Ela o compreende como um instrumento capaz de ressignificar a cidade, sujeitos e territórios, e pensa que sua origem está intimamente ligada às transformações na realidade que os seres humanos são capazes de operar.

Equipe da Cozinha Ocupação 9 de Julho (esq.) e Bela Gil e Carmen Silva (dir.), líder do Movimento Sem-Teto do Centro – Foto: Reprodução/ Facebook e Instagram

 

Após analisar os trabalhos de alguns autores, a turismóloga também conclui que a historiografia do turismo é incompleta e carece de vozes populares, dado que as concepções atuais estão baseadas em perspectivas europeias e são centradas em ideais de consumo. Por conta disso, num primeiro momento, é difícil separar as ideias de oferta turística e de mercadoria. O Indicador de Competitividade do Turismo Nacional do Ministério do Turismo, por exemplo, leva em consideração os números de chegadas, partidas e gastos de um destino, mas não há um parâmetro que mensure a saúde socioambiental dos negócios. Para ela, é importante ir além do caráter mercadológico exploratório (seja ele ambiental, animal ou humano) e manter como prioridades os pilares fundamentais da formação em Turismo, como a hospitalidade, e captar desejos do público, como vitalidade e encantamento. “O âmago do turismo como fenômeno social reside e sempre residirá na experiência da troca – humana, não mercantil”, conclui.

O orientador do trabalho lembra que, em outros momentos, talvez a teoria do turismo não considerasse a possibilidade de uma visitação a uma ocupação ou a outros ambientes que não os espaços tradicionais do mercado turístico. “O trabalho é interessante também neste sentido: é um convite a uma reflexão sobre o sentido dessa sociedade em que vivemos. Pensar sobre o limite da nossa percepção do que pode ser um espaço de visitação, integração e aprendizado”, destaca Teles.

Com texto de Mariana Zancanelli, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação da ECA


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