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“Não é de hoje que tem representantes no Congresso Nacional defendendo estupradores”
Afirmação é de Cristiane Cabral, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, que se mobiliza em aula aberta para pedir o arquivamento do PL 1904 e debater o acesso ao aborto legal no Brasil
No dia 24 de junho, a partir das 13 horas, acontecerá a aula aberta sobre o Projeto de Lei 1904, no auditório Paula Sousa da FSP USP – Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), recuou diante das mobilizações de mulheres de todo o Brasil, contrárias ao Projeto de Lei 1904/2024. Mas na opinião de Cristiane Cabral, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, não basta adiar para o segundo semestre a discussão do projeto que propõe equiparar o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. É preciso arquivá-lo, removê-lo totalmente da pauta do Congresso Nacional. “Não dá para a gente continuar colocando nos corpos das meninas, das mulheres, das pessoas que gestam, todo e qualquer tipo de negociata política”, afirma a professora ao Jornal da USP.
Na segunda-feira (24), a partir das 13 horas, Cristiane mediará uma aula aberta sobre o Projeto de Lei 1904, no auditório Paula Souza da FSP. Ela classifica o projeto de lei como uma “aberração” que criminaliza mulheres e profissionais de saúde. “O PL abre o flanco para a gente falar claramente o quanto a nossa sociedade é protecionista de estupradores, o quanto uma bancada importante que ocupa o Congresso Nacional é protecionista de estuprador, e vou dar um exemplo”, anuncia.
“O estatuto do nascituro é a mesma coisa. Vai e volta para a Câmara, vai para as comissões, retira, volta… Tem sempre essa sombra rondando. Ele também é uma forma de proteger o estuprador. É uma forma de obrigar as mulheres a darem filhos para os estupradores, porque o estatuto do nascituro fala da proteção da vida, e muitas aspas nesse termo ‘vida’, desde a concepção. Isso significa obrigar as mulheres que têm uma gravidez em decorrência de estupro a levar adiante. A gente acabaria com todo e qualquer permissivo legal no País. Então, não é de hoje que a gente tem representantes no Congresso Nacional defendendo estupradores. Isso tem que ser dito. Esse [o PL 1904] foi mais uma investida de pessoas fundamentalistas atacando o que é um direito humano”, completa a docente.
A aula aberta terá a dupla função de somar forças com outras manifestações demandando o arquivamento da proposta, que tem sido apelidada como “PL do Estupro” e “PL da Gravidez Infantil”, bem como ampliar o debate sobre os temas que cercam a questão do aborto legal no Brasil. São temas como a epidemia de violência sexual, o acesso a contraceptivos, a educação sexual nas escolas e as ofensivas contra os serviços de saúde que atendem meninas e mulheres que procuram pelo aborto nas três hipóteses permitidas legalmente no País – casos de estupro, anencefalia e risco à vida da gestante.
Estudo da Rede Feminista de Saúde com dados do Sistema Único de Saúde (SUS) referentes à década de 2010 a 2019 estimou que, em média, 25.280 nascidos vivos por ano foram bebês gestados e paridos por meninas de 10 a 14 anos – Fotos: Paulo Pinto/Agência Brasil
Vulneráveis
Cristiane lembra, por exemplo, que o serviço de aborto legal do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, está fechado desde dezembro do ano passado. O serviço era um dos poucos no Brasil que atendem casos que ultrapassaram as 20 semanas de gestação, acolhendo meninas vítimas de estupro, que tendem a descobrir a gravidez já no segundo trimestre. Um estudo da Rede Feminista de Saúde com dados do Sistema Único de Saúde (SUS) referentes à década de 2010 a 2019 estimou que, em média, 25.280 nascidos vivos por ano foram bebês gestados e paridos por meninas de 10 a 14 anos. Nessa faixa etária, o aborto é amparado por lei, pois a gestação é decorrente de estupro de vulnerável.
Os números sugerem que os serviços de saúde têm falhado no acolhimento a essas meninas. Ainda segundo dados da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou, em 2022, o maior número de ocorrências de estupro em sua história. Foram 74.930 vítimas, sendo que 61% delas tinham até 13 anos de idade. Como nem todo caso de estupro é relatado às autoridades, o número real de vítimas pode ser muito maior.
“(Para) uma menina com 12 anos, realmente é risco de vida a ela gestar? É, porque muitas meninas não têm o corpo biológico preparado para isso. Mas também tem todas as consequências de saúde mental e todas as questões sobre a tortura que é você levar a termo uma gestação que foi decorrente de um ato de absurda covardia, que é a violência sexual. Então, são vários pontos que a gente vai levantando e que compõem esse cenário.”
Cristiane Cabral
Ela conta que tem sido interpelada por estudantes da área de saúde com dúvidas sobre a recente queda de braço entre o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo uma resolução que proíbe médicos de realizarem um procedimento chamado “assistolia fetal” em gestações com mais de 22 semanas. Essa resolução do CFM – que contraria as práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde e pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia – foi suspensa em maio por uma decisão do ministro do STF, Alexandre de Moraes, o que gerou reações da ala mais conservadora do Congresso Nacional.
Cristiane explica que o significado político da resolução do CFM e do PL 1904 é a tentativa de inviabilizar todos os abortos legais que têm a ver com violência sexual ou risco de vida para a mãe. “A gente está falando muito da violência sexual, porque essa é a maioria dos casos que precisam de interrupção legal da gestação depois de 22 semanas. Mas também atinge as mulheres que estão com risco de vida em função de alguma comorbidade na gravidez”, diz a docente. “Não tem que ter data nenhuma para fazer o procedimento do aborto legal”, defende.
A conversa passa também sobre as condições de segurança para a realização do aborto. Segundo a professora da FSP, nos casos permitidos legalmente no Brasil, o aborto é – ou deveria ser – um procedimento altamente seguro, pois a mulher que o procura está amparada pelo aparato médico e por hospitais capacitados, tanto do ponto de vista de infraestrutura, quanto do ponto de vista de profissionais treinados. Na clandestinidade, por outro lado, um aborto após as 20 semanas pode ser uma sentença de morte para a gestante.
“O ato tem a intenção de marcar um posicionamento nosso, que é de indignação, mas também de fazer coro ao pedido de arquivamento dessa aberração e voltar a discutir de novo, com informações bastante qualificadas, todos esses meandros que atravessam a questão do aborto legal no País”, conclui Cristiane.
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