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Krenak chega à Academia Brasileira de Letras e eterniza os povos originários na instituição
Na visão de pesquisadores, professores da USP e lideranças indígenas, o novo imortal dará visibilidade para questões relacionadas à terra, meio ambiente e direitos dos mais diversos povos tradicionais
Ailton Krenak é o primeiro escritor indígena imortal da ABL - Foto: Reprodução/Wikimedia Commons via Produção Cultural no Brasil/Coletivo Garapá/Flickr
No dia em que a Constituição Federal do Brasil, a Carta Mãe do País, completava mais um de seus 35 anos de valente sobrevivência, o indígena Ailton Krenak foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). O mesmo indígena que um ano antes da promulgação da Lei Maior protagonizou um momento icônico durante a Assembleia Constituinte, em 1987, representando a União dos Povos Indígenas e marcando publicamente reivindicações dos povos originários, que seriam incorporados na Carta. Vestindo um terno claro, Ailton Krenak pintava o rosto com tinta de jenipapo preta enquanto denunciava o retrocesso dos direitos indígenas. “O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil”, afirmou na ocasião, com olhos marejados.
Krenak foi escolhido nesta quinta-feira, 5 de outubro, tornando-se a primeira pessoa indígena a ocupar uma cadeira na instituição que, além do cantor Gilberto Gil, somente contava com um integrante negro entre seus assentos: o literato Domício Proença Filho. Líder indígena, filósofo, ambientalista e poeta, Krenak é autor de dezenas de livros, com destaque para a trilogia Futuro ancestral, A vida não é útil e Ideias para adiar o fim do mundo, este último, com indicação ao Prêmio Jabuti, vendeu mais de 50 mil cópias em tempos de pandemia.
“Uma das minhas intenções é convidar a ABL para criar uma plataforma, com a experiência que temos, por exemplo, com uma plataforma que já existe, chamada Biblioteca Ailton Krenak, disponível para quem quiser acessar na web centenas de imagens, textos, filmes e documentos. Não é legal? Poderíamos fazer isso com todas as línguas nativas. Teria tudo a ver com a Academia Brasileira de Letras incluir mais umas 170 línguas além do português”, disse o mais novo imortal para o site da Academia.
De acordo com a publicação, a cadeira ocupada por Krenak é a de número 5, também ocupada pela primeira mulher eleita para a ABL, a escritora Rachel de Queiroz. Com a morte de José Murilo de Carvalho, em agosto, o indígena foi eleito por 23 votos, superando a historiadora Mary Del Priore, que teve 12 votos, e o indígena Daniel Munduruku, com 4. A ABL informou que a posse de Krenak ainda não está marcada, mas deve acontecer em 2024.
“Eu gostei muito de sua entrada [na Academia]. Daniel Munduruku, embora tenha muita coisa publicada, não tem o movimento indígena no currículo. Ailton é o próprio movimento”, destaca Emerson Souza, mestre e doutorando em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. De origem Guarani Nhandeva, Souza é professor titular de Sociologia da Rede Estadual de Educação de São Paulo, e afirma que a Academia precisa de pessoas como Krenak, justamente por ele representar um movimento de lutas diversas. “Ailton é do tempo das Uniões das Nações Indígenas; assembleias que ocorriam por todo o País. Outros indígenas foram mortos e assassinados neste período de luta, e ele segue mostrando a realidade indígena e dando espaço para o fortalecimento de outras gerações.”
Para a escritora indígena Eliane Potiguara, a vitória de Krenak na ABL é uma conquista histórica e ancestral. “Nossos mortos do passado e presente esperam há tempos uma justiça, no sentido do reconhecimento de nossas culturas, línguas e tradições étnicas. Mães, viúvas e idosas esperavam essa representatividade tão negada pelos sistemas escravagista, paternalista, racista e ditatorial, inclusive contemporâneo. Ainda temos uma luta contra o Marco Temporal. Temos muito a apresentar e contribuir na ABL, uma academia que começa a se mostrar mais democrática”, aponta Eliane, que foi a primeira mulher indígena no Brasil a receber o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Coordenadora Geral de Promoção a Políticas Culturais do Ministério dos Povos Indígenas, Chirley Maria de Souza Almeida Santos, também conhecida como Chirley Pankará, acredita que a vitória de Krenak evoca consigo um protagonismo necessário e ainda inacessível aos povos originários. “É importante que esses corpos ocupem os espaços, porque são representativos de que somos capazes de contribuir para a sociedade com nossos saberes e vivências. Porém, tudo o que fazemos deve ser coletivo, pensar que somos finitos. E é a juventude presente que irá dar continuidade ao nosso legado; ela é quem vai dar continuidade à luta em defesa dos nossos direitos”, pondera Chirley, que é doutoranda em Antropologia Social pela FFLCH.
É o que acredita também Luar Sateré-Mawé, pesquisador do Instituto de Psicologia da USP. Para ele, a presença de Krenak na ABL promove a diversidade e a inclusão em todos os aspectos da sociedade, incluindo as instituições acadêmicas e literárias. “Além de mostrar a diversidade de vozes e experiências que contribuem para o enriquecimento do diálogo cultural e intelectual do País, a presença do parente Krenak também destaca a importância de reconhecer e valorizar as contribuições culturais e intelectuais dos povos originários.”
Trabalhando há anos com grupos indígenas, Marília Xavier Cury, docente do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, conta que aprendeu que “o acaso não existe”. Segundo ela, no caso deste ingresso de Krenak na Academia Brasileira de Letras nos 35 anos da Constituição, o acaso não existiu mesmo. “A imortalidade de Ailton Krenak foi simbolicamente selada na ABL em um momento político tão importante, ampliando significativamente a visibilidade dos povos indígenas no Brasil. Nada mais merecido, nada mais esperado e necessário”, diz.
Comunicador entre mundos
“Nas últimas três décadas, Ailton Krenak foi arauto e comunicador entre mundos, pontuando, com suas palavras e ações, uma crônica altamente qualificada, já que enraizada na agenda política dos coletivos indígenas”, analisa Marta Rosa Amoroso, professora da FFLCH na área de etnologia ameríndia, lembrando a trajetória do escritor e ambientalista. Uma caminhada que, para a acadêmica, ilumina os sentidos do movimento indígena que compôs uma geração de lideranças indígenas investidas na construção de um projeto alternativo para os povos das florestas.
Criando clareiras e abrindo caminhos entre os mais variados interlocutores, Krenak participou da criação da Aliança dos Povos da Floresta, em 1988, movimento pioneiro na discussão de educação diferenciada e de ações políticas de gestão das florestas a partir de modos indígenas e tradicionais. “Essa nova aliança se assentava nas dinâmicas de um processo de ‘civilização’ movido pelos povos indígenas em direção aos seringueiros e quilombolas moradores das florestas, que aprenderam e compartilharam com os povos indígenas ‘de uma memória muito forte da criação do mundo’, nas palavras do próprio Krenak”, resgata Marta. Ela explica que desde a década de 1970, os seringueiros lutavam pela criação das reservas extrativistas, mas as campanhas da Aliança dos Povos da Floresta se voltavam para os moradores dos centros urbanos, estratégia que visava engajar os segmentos urbanos em um projeto político seminal de proteção das florestas. “Ao mesmo tempo em que investia em dar visibilidade aos modos de vida dos habitantes das florestas”, conta.
Essa geração rejeitava políticas desenvolvimentistas do Estado e se articulava em torno de uma plataforma que reunia aqueles que compartilham, a despeito de suas diferenças, o entendimento de que a natureza é o lugar comum para esses povos viverem e construírem seus projetos de futuro. “[A mesma] geração de líderes que vem assistindo, nos últimos anos, à traição de seus projetos e ao gradativo desmonte dos pactos pela defesa dos povos indígenas. Que testemunhou, mais recentemente, a morte dos rios e o impacto desse ‘coma’ hídrico em que foram colocados os rios e suas gentes: indígenas, quilombolas, ribeirinhos. Aqueles que, nas palavras de Ailton, foram ‘divorciados do corpo do rio’”.
Perspectiva dos invadidos
“Obrigado aos colegas que me antecederam, com essa riqueza narrativa sobre o Ocidente (…) Foi maravilhoso ouvir como vocês vieram para cá… Na verdade, vocês estão declarando como vocês invadiram essa parte do mundo. E eu queria falar com vocês da perspectiva de quem ficou aqui sendo invadido.” É assim que Ailton Krenak iniciou sua exposição na 14ª Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, realizada em 2019. Irônico e assertivo, Krenak deixa uma lição valiosa para a Universidade: é necessário — antes de tudo — repensar a maneira com a qual a academia enxerga a história.
“Mesmo quando o debate pretende ser decolonial, ele faz um debate decolonial na matriz de pensamento ocidental, que despreza os outros povos, as outras cosmogonias (…) e não admite que existe uma epistemologia fora do campo constituído pela mentalidade e narrativa europeia”, denuncia Krenak, reforçando que as universidades têm um papel fundamental na perpetuação do colonialismo.
Essa foi só uma entre as diversas visitas de Krenak à USP. Em 2022, o ativista lotou o auditório István Jancsó, no Espaço Brasiliana, convidado a participar do evento anual USP Pensa Brasil — cuja edição de 2023 foi realizada nesta semana. Na mesa Como pensar o Brasil no século 21, Krenak expôs sua visão sobre cidadania, paradigmas pedagógicos e questionou o modelo de progresso ocidental, ao lado de grandes nomes como Lilia Schwarcz, Danilo Miranda e André Singer. “O Brasil ainda tem a estreiteza de pensar a cidadania como uma experiência urbana”, afirmou na oportunidade o ambientalista, defensor de sujeitos mais coletivos e cooperativos.
Em resposta às manifestações a favor do vestibular indígena para ingresso na Universidade, Krenak reforçou: “Vamos insistir para que essas estruturas, que ainda são duras, sejam um pouco mais permeáveis”.
*Estagiárias sob supervisão de Tabita Said
**Estagiárias sob supervisão de Moisés Dorado
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