Filmes produzidos por cineasta indígena são analisados em pesquisa da USP

Duas produções realizadas pelo cineasta huni kuin Zezinho Yube, analisadas em pesquisa da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, mostram como o diretor acaba sendo um mediador entre a realidade de seu povo e o mundo

 27/03/2024 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 28/03/2024 às 17:17

Texto: Antonio Carlos Quinto

Nas oficinas, o processo de escolha dos personagens se dá junto com a comunidade – Cena do filme “Já me transformei em imagem” (2008)

Uma pesquisa de mestrado desenvolvida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP buscou analisar o cinema indígena feito por José de Lima Kaxinawá, conhecido como Zezinho Yube. A produção do cineasta huni kuin chamou a atenção da jornalista Veriana Ribeiro Alves, que analisou duas produções do diretor em sua dissertação de mestrado intitulada O cinema documentário de Zezinho Yube, sob a orientação do professor Henri Pierre Arraes de Alencar Gervaiseau.

Veriana iniciou sua pesquisa em 2020, após ter contato com as produções de Zezinho Yube por intermédio do projeto “Vídeo nas Aldeias”, que trabalha na formação de cineastas indígenas. “Quando eu ainda morava no Acre, antes de iniciar meu estudo, Zezinho era atuante no movimento indígena de nosso estado. Ele é engenheiro agroflorestal e sempre foi fascinado por produções em vídeo”, conta a jornalista em entrevista ao Jornal da USP. Ela ressalta que Zezinho acabou se destacando no projeto e alguns de seus filmes chegaram a participar de festivais e mostras de cinema, tanto nacionais quanto internacionais. “Quando comecei a estudar a produção de Zezinho, ele já tinha feito boa parte de seus filmes e já trabalhava como assessor de assuntos indígenas para o estado do Acre”, lembra.

Em sua pesquisa, Veriana analisou dois filmes de médias metragens de Zezinho: Ma Ê Dami Xina – Já me transformei em imagem (2008) e Kene Yuxi – As voltas do Kene (2010). “Nos primeiros capítulos de meu estudo eu até analiso toda a produção de Zezinho citando, principalmente, os filmes produzidos por ele no projeto Vídeo nas Aldeias, quanto os mais recentes que foram realizados com uma produtora lá do Acre”, descreve Veriana. A escolha pelos dois filmes, de acordo com ela, se deu pelos temas abordados e sua relevância, além de condensar boa parte das temáticas que Zezinho trabalha em outros filmes.
Veriana lembra que toda a sua pesquisa foi realizada durante o período da pandemia, portanto à distância. “Eu estava residindo em São Paulo e a pesquisa realizada foi toda on-line, focando mais na análise dos dois documentários”, conta.

Veriana Ribeiro - Foto: Arquivo pessoal

Festival Pachamama

O primeiro contato de Veriana com os dois filmes de Zezinho escolhidos na análise se deu quando o cineasta foi homenageado no “Festival Pachamama“, evento cultural que celebra o cinema de fronteira, com foco na produção cinematográfica da Amazônia e da América Latina. Como descreve Veriana, o festival reúne filmes produzidos em países que compõem a fronteira entre Brasil, Bolívia e Perú. No ano de 2011, em um desses festivais, Zezinho foi homenageado por sua obra, justamente os dois documentários que foram objeto de análise no estudo. “Foi a primeira vez que vi os documentários e confesso que fiquei encantada com as produções”, elogia Veriana.

Como ela descreve, as produções permitem compreender diversas situações “sob o olhar indígena”. Para a pesquisadora, a análise dos documentários possibilitaram a ela avaliar que Zezinho se encontra no mesmo patamar de diretores já consagrados. “Afinal, estudar o cinema indígena é também estudar o cinema brasileiro. E Zezinho entra, então, como um nome importante”, afirma. Veriana lembra ainda que, quando o projeto Vídeo nas Aldeias comemorou seus 25 anos de atividade, alguns cineastas foram selecionados para fazer um livro e Zezinho estava entre eles. “Isso mostra o quanto importante ele é no contexto do cinema indígena”, destaca a jornalista.

Versão reduzida do filme "Já me transformei em imagem" (2008)

O mediador

Veriana explica que Zezinho Yoube constrói um cinema a partir da mediação. “Suas produções nos mostram que ele acaba sendo um tradutor do seu povo, para aqueles que não fazem parte da comunidade indígena. Ele nos insere, por meio do audiovisual, num universo particular que é criado a partir da relação entre quem filma e quem é filmado”, descreve.

A mediação exercida pelo cineasta vem do trabalho próximo que ele faz com as comunidades. De acordo com a jornalista, nas produções do Vídeo nas Aldeias, uma metodologia muito comum é fazer uma oficina de captação de vídeo para que os cineastas escolham seus personagens. “Nas oficinas, o processo de escolha dos personagens se dá junto com a comunidade. Em todos os dias de gravação, no final do trabalho, as cenas são exibidas à comunidade que opina sobre o que foi gravado”, conta Veriana, ressaltando que esse processo acaba influenciando na hora da edição.

“Neste caso, o cineasta tem de ter em mente as coisas que foram ditas pela comunidade durante as gravações”, ressalta, enfatizando que Zezinho ao fazer um filme e ser um cineasta indígena, acaba sendo um mediador de mundos. “Os filmes não são feitos apenas pela equipe. Eles têm um diálogo com a comunidade e com a pessoa que está sendo filmada. Os próprios personagens do filme são personagens atuantes e ajudam a fazer as cenas”, explica a jornalista.

Zezinho Yube - Foto: IEA-USP

Vídeo nas aldeias

O Projeto Vídeo nas Aldeias (VNA) é uma iniciativa pioneira na área de produção audiovisual indígena no Brasil. Fundado em 1986, o projeto tem como objetivo apoiar as lutas dos povos indígenas, fortalecendo suas identidades culturais e patrimônios territoriais por meio do uso de recursos audiovisuais.

A trajetória do Vídeo nas Aldeias resultou na criação de um importante acervo de imagens sobre os povos indígenas no Brasil e na produção de uma coleção de mais de 70 filmes. Esses filmes são uma referência na área e oferecem uma visão autêntica e diversificada da cultura, das tradições e das lutas desses povos.

Vincent Carelli, um dos fundadores do projeto, tem trabalhado com a formação de cineastas indígenas, permitindo que eles contem suas próprias histórias e expressem suas realidades por meio do cinema. O Vídeo nas Aldeias também promove oficinas e capacitação para que os próprios indígenas possam produzir seus filmes.

Mais informações: Veriana Ribeiro; email veriana.ribeiro@gmail.com


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