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Comissão de Anistia reconheceu povos indígenas como sujeitos coletivos, opina historiador
Para Casé Angatu, demarcação de terras e reconhecimento das violações contra indígenas não aldeados são fundamentais para reparar os crimes da ditadura militar
Primeira sessão de julgamento dos inéditos pedidos coletivos de anistia dos povos Guarani Kaiowá e Krenak, pela Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) - Foto: Lohana Chaves/Funai
Os povos Krenak e Guarani-Kaiowá se tornaram na semana passada os primeiros anistiados políticos coletivos da história do Brasil. As anistias coletivas foram declaradas em sessão plenária da Comissão de Anistia, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, no dia 2 de abril. A comissão revisou a negativa dada aos Krenak e Kaiowá no governo anterior e reconheceu as violações de direitos humanos sofridas por eles durante a ditadura militar. Ajoelhada, a presidente do colegiado, Enéa de Stutz e Ameida, pediu desculpas ao povo Krenak pelas violências cometidas pelos não indígenas nos últimos 524 anos. Logo em seguida, a comissão declarou como anistiada a comunidade Guyraroká, do povo Kaiowá. A liderança da comissão, então, repetiu o gesto com um pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro.
Na avaliação do historiador Casé Angatu, um aspecto importante da decisão da Comissão de Anistia foi o reconhecimento de que os crimes cometidos pela ditadura não afetaram somente indivíduos, mas coletividades. “Esse é um precedente fundamental para que tantas outras comunidades indígenas e não indígenas, mas que vivem coletivamente, tenham os seus direitos garantidos perante o Estado brasileiro”, afirma o historiador, que é indígena, professor na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e na Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da USP.
Os povos indígenas há décadas lutam por uma justiça de transição que reconheça as sistemáticas violações de direitos cometidas contra eles, em processos de espoliação de terras. Nesse sentido, o pesquisador considera que os próximos passos do Estado brasileiro devam ser a extensão das anistias a outros povos, além dos Krenak e Kaiowá, o pagamento de indenizações, a demarcação de terras e o reconhecimento dos crimes contra indígenas não aldeados – em especial, aqueles que migraram para as periferias das capitais durante a ditadura e estiveram sujeitos à atuação dos esquadrões da morte.
Casé Angatu lembra que o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) menciona mais de 8 mil mortes de pessoas de diferentes povos indígenas causadas pela ação direta do Estado brasileiro ou pela omissão de agentes governamentais no período entre 1946 e 1988. No entanto, o número de mortes pode ser muito maior que a estimativa, uma vez que a CNV contabilizou apenas casos documentados. A equipe de pesquisadores não arriscou, por exemplo, estimar os mortos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul e no Paraná, onde os direitos das comunidades indígenas foram sistematicamente violados para abrir espaço a projetos de colonização e grandes empreendimentos.
Leia, a seguir, a entrevista concedida pelo pesquisador ao Jornal da USP. As respostas foram enviadas à reportagem por mensagens de áudio, diretamente da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, onde Casé Angatu vive.
A decisão da comissão de anistia em declarar como anistiados coletivos os povos Krenak e Kaiowá é uma conquista importante para os povos indígenas brasileiros?
Com certeza, é uma conquista importante. Os dados da própria Comissão da Verdade – apurados a partir do Relatório Figueiredo, uma documentação descoberta, esse é o termo correto, pelo pesquisador Marcelo Zelic, a quem nós indígenas agradecemos muito – revelaram que o crime contra os povos originários dessa terra durante a ditadura era de mais de 8 mil pessoas, 8 mil indígenas (que foram vítimas fatais). Isso sem pensarmos desde a ditadura Vargas, né? Eu moro num território, aqui é Tupinambá de Olivença, que teve caboclo Marcelino, que foi preso, torturado e morto na ditadura Vargas.
Quando se trata de povos originários, a gente pensa sempre coletivamente. Nós somos sujeitos – pessoas, homens e mulheres, crianças, anciões – coletivos. Nós vivemos em comunidades coletivas e o que nós esperamos é que todos os reparos sejam feitos coletivamente, porque assim nos consideramos. Por isso que a gente fala que são os povos, por isso que um indígena cumprimenta outro indígena como parente. Espero que isso abra um precedente positivo para que demais povos sejam, todos eles, considerados como vítimas da ditadura militar-empresarial que esteve presente neste país de 1964 até a década de 1980. Foram 20 anos em que as ações militares nos afetaram diretamente. Dessa feita, é de suma importância a indenização coletiva, porque é somente assim que nós vamos ter uma justiça e o reconhecimento. E a maior das indenizações seria, na verdade, a demarcação dos territórios. Os reconhecimentos territoriais do povo Krenak, do povo Kaiowá e de todos os povos indígenas deste país que sofreram processos semelhantes de ataque do Estado durante a ditadura e de atores privados no interesse de nossas terras, contra nossas formas de viver e nos relacionar com a natureza.
Essa foi a primeira vez que a Comissão de Anistia reconheceu anistias coletivas. Como você avalia essa novidade? E como isso afeta a memória da ditadura militar?
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Então, veja que importante essa pergunta, né? Conforme eu disse na questão anterior, nós somos povos, nós somos pessoas coletivas. O povo quilombola, o povo indígena, as comunidades ribeirinhas, as comunidades de mata, as comunidades de pescadores são coletivas. Nós agimos, pensamos, vivemos coletivamente. Então, esse é um precedente fundamental para que tantas outras comunidades indígenas e não indígenas, mas que vivem coletivamente, tenham os seus direitos garantidos perante o Estado brasileiro. Não só em relação à ditadura militar, mas também a reconhecer direitos da terra, direitos a formas de viver diferenciadas, direito à alteridade, espiritual, de formas de trabalhar e conviver com a natureza. É necessário que o Estado brasileiro perceba essa diversidade. A Comissão de Anistia, ao reconhecer a anistia coletiva, abre esse precedente extremamente positivo para que o Estado brasileiro perceba que, não só durante a ditadura militar-empresarial, os direitos coletivos têm que ser preservados e garantidos.
Você acha que a decisão da comissão pode dar visibilidade às violações contra os direitos dos povos indígenas, não só no passado, mas também no presente?
Com certeza! Deve ser esse passo. E aí, vale uma ponderação: muito se fala dos direitos durante a ditadura e no presente, e está correto em se falar de povos indígenas nas suas aldeias. Eu moro numa aldeia, eu moro numa comunidade que luta pela demarcação territorial que ainda não ocorreu. Mas existem desde a ditadura militar indígenas que vivem em situações de cidade. Durante a ditadura militar é conhecida a atuação do esquadrão da morte nas áreas periféricas. Aquilo que se chama por vezes de migração nordestina, eu, Casé Angatu, chamo de diáspora indígena. Muitos indígenas foram morar nas periferias das grandes capitais, de Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo. E ao morar nas periferias, foram atacados, individual e coletivamente, pelo Estado brasileiro durante a ditadura. As periferias são habitadas por pessoas pretas, negras, pessoas pardas e pessoas indígenas. Nós, indígenas, também entramos por vezes, historicamente isso é conhecido, na classificação de pardos. Então, além da violação dos direitos nas aldeias, aconteceu durante a ditadura militar a violação de direitos nas periferias onde nós estávamos. E ainda acontece. Portanto, essa decisão da comissão dá visibilidade a essas violações passadas e presentes.
Então, para nós é fundamental que o próximo passo seja que o Estado brasileiro indenize coletivamente, quando for o caso individualmente, e demarque imediatamente as terras indígenas que não foram demarcadas. E dê garantias às que já estão demarcadas. Eu insisto: moro num território, território Tupinambá de Olivença, em que a terra não foi demarcada ainda. Precisamos garantir os nossos direitos à terra, nossos direitos à alteridade, nossos direitos à saúde indígena diferenciada, a uma educação indígena diferenciada. Esse passo dado pela comissão em reconhecer as violações aos parentes Krenak e Guarani-Kaiowá é fundamental para todos nós, mas que não pare aí. Que continue em relação aos outros povos e que continue com relação aos indígenas que não estão aldeados. Para nós, é fundamental que todos os nossos direitos sejam garantidos o mais imediato possível, porque existe há mais de 500 anos nesse País uma tentativa de espoliar as terras originárias e de combater a nossa forma de viver. Isso nós chamamos de etnocídio e de genocídio visando ao ecocídio e à destruição da natureza.
Ailton Krenak na ABL: "eu posso invocar mais do que 300"
Na mesma semana em que os povos Krenak e Kaiowá tiveram suas anistias coletivas reconhecidas pelo Estado brasileiro, o primeiro “imortal” indígena tomou posse da Cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL) em cerimônia realizada na sexta-feira (5), no Rio de Janeiro. Ambientalista, escritor, poeta e filósofo, Ailton Krenak herdou a Cadeira 5 do historiador José Murilo de Carvalho, falecido em 2023. Ao tomar posse, Ailton Krenak saudou a diversidade dos povos indígenas.
“Desde que me convidaram ou me animaram para ocupar essa cadeira número cinco, eu me perguntava: ‘Será que nessa cadeira cabem 300?’. Como dizia Mário de Andrade, eu sou 300. Olha que pretensão. Eu não sou mais do que um, mas eu posso invocar mais do que 300. Nesse caso, 305 povos, que nos últimos 30 anos do nosso país, passaram a ter a disposição de dizer: ‘Estou aqui’. Sou guarani, sou xavante, sou caiapó, sou yanomami, sou terena”, disse Krenak.
Uma das propostas do escritor para a ABL é a criação de uma plataforma inspirada na experiência da Biblioteca Ailton Krenak, que disponibiliza on-line centenas de imagens, textos, filmes e documentos em línguas nativas. Para pesquisadores, professores da USP e lideranças indígenas, o novo “imortal” dará visibilidade para questões relacionadas à terra, meio ambiente e direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.
Com informações da Agência Brasil
*Estagiária sob supervisão de Simone Gomes de Sá
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