Estudante com deficiência visual grave conclui mestrado na USP

Com retinose pigmentar, Simone Vieira da Silva defendeu sua dissertação de mestrado sobre saúde mental em agosto na Faculdade de Medicina

 07/10/2024 - Publicado há 2 meses

Texto: Gabriela Varão*

Arte: Joyce Tenório**

Simone Silva, pesquisadora com deficiência visual, analisou dados do Elsa-Brasil sobre saúde mental – Foto: Gabriela Varão/Jornal da USP

De acordo com uma pesquisa da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP, 2,2% dos estudantes de pós-graduação da Universidade possuem deficiência visual total ou parcial. Simone Vieira da Silva é uma dessas pessoas. A pesquisadora defendeu seu mestrado em agosto na Faculdade de Medicina (FM) da USP, sob a orientação da professora e epidemiologista Isabela Benseñor. Ela estudou a associação entre situações como a perda de um ente querido e o fim de um relacionamento ao desenvolvimento de sintomas depressivos.

Simone é uma pessoa com deficiência visual e enxerga apenas pontos de luz. Ela possui retinose pigmentar, uma doença genética e degenerativa, que afeta progressivamente a visão com o passar do tempo. Formada em Psicologia em 2018, ela descobriu uma paixão pela pesquisa após fazer o seu TCC e decidiu continuar nessa área.

“Eu descobri outro mundo com a pesquisa. Como eu fiz Psicologia, tenho interesse na questão dos transtornos mentais. O projeto foi sobre a depressão e os eventos estressores. Eu gostei bastante porque deu para entender melhor os motivos da depressão, o que leva as pessoas a terem depressão”, conta a pesquisadora.

Em sua pesquisa, Simone utilizou dados do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), uma investigação feita com funcionários públicos para avaliar a incidência e os fatores de risco para doenças crônicas, como as cardiovasculares e a diabetes. Especificamente, ela analisou um questionário do Elsa que investiga a incidência de depressão após a ocorrência de cinco eventos negativos de vida: perda de parentes, dificuldades financeiras, divórcio, hospitalização e violência.

“A gente associou esses eventos com o desenvolvimento de depressão quatro e oito anos depois. Analisamos se quem teve algum evento negativo tinha mais depressão do que quem não teve e descobrimos que sim”, explica a professora Isabela, uma das coordenadoras do Elsa-Brasil. O estudo reúne pesquisadores da USP, Fundação Oswaldo Cruz, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A pesquisa de mestrado já gerou artigos aceitos em revistas científicas, mas o caminho até chegar lá foi difícil e, às vezes, solitário. Simone conta que procurou outras pessoas com deficiência na Universidade, mas não encontrou. “Faltam pessoas com deficiência nesses ambientes. Quando você pensa em pessoas com deficiência na graduação, são poucas. No mestrado, eu não encontrei. Durante a minha graduação, eu encontrava uma colega, mas encontrava no corredor, era uma pessoa durante cinco anos. No mestrado, eu gostaria de ter encontrado porque ajuda a gente trocar experiência”, diz.

Dificuldades no acesso à educação

No mesmo ano em que concluiu a graduação, Simone fez uma pós-graduação em Terapia Cognitivo-Comportamental. Em 2019, ano seguinte, a pesquisadora conseguiu uma bolsa de treinamento técnico da Fapesp na FM. O projeto tinha como objetivo avaliar o acesso das pessoas com deficiência aos serviços de saúde. Ela realizou o projeto durante dois anos, até 2021, quando ingressou no mestrado. Durante esse período, a psicóloga também fez o Programa de Aperfeiçoamento de Ensino (PAE), um estágio de treinamento voltado para alunos de pós-graduação, no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (InCor) da USP com o professor Bruno Caramelli.

Como já tinha interesse na área acadêmica, começou a pesquisar propostas de pesquisas da Fapesp. Em uma de suas buscas, encontrou Isabela e decidiu entrar em contato com a professora para avaliar a possibilidade de desenvolver uma pesquisa.

“Ela foi a primeira aluna com deficiência que eu orientei. Marcamos uma reunião para decidir o tema. Como ela é psicóloga, o impacto dos eventos negativos de vida na depressão era muito da área dela”, explica Isabela.

Quando começou seu mestrado, há três anos, Simone ainda conseguia ler textos ampliados. Uma das etapas do processo seletivo era uma prova de inglês. Oferecida no formato on-line, a professora Isabela lembra que sua orientanda não teve seus pedidos atendidos. Apesar de precisar de uma prova adaptada, com textos maiores, isso não aconteceu. Quando recebeu a avaliação, apenas uma parte da prova estava adaptada. 

“A equipe da prova me jogou para um horário que eu já não estava mais preparada, o horário da tarde. Eles me deram uma prova com o texto ampliado, mas não com as perguntas, então eu tive que me virar para fazer a prova do jeito que eu conseguia. Metade da prova estava adaptada e a outra metade não. O sistema travou e eu fiquei sem saber a pontuação; quando o resultado saiu, era exatamente a pontuação que eu precisava para me inscrever no mestrado”, conta.

Isabela Benseñor é uma das coordenadoras do Elsa-Brasil - Foto: Arquivo pessoal

As barreiras no ensino estiveram presentes em outros momentos de sua formação. Simone conta que seu processo de alfabetização foi feito em uma escola tradicional, com pouco suporte. Ela procurou uma instituição para aprender Braille, mas na época ainda enxergava e conseguia ler textos ampliados ou em negrito e, por isso, enfrentou resistência para aprender. “A professora não quis me ensinar. Ela disse que não iria me ensinar porque senão eu iria parar de usar o estímulo visual, sendo que seria o momento para eu aprender porque eu tenho uma doença degenerativa e, eventualmente, eu ia chegar em um estágio mais avançado que estou hoje. Mas eu não fui aceita na escola”, relata. 

Resultados de pesquisa

No mestrado, Simone recebeu bolsa Capes e, depois, bolsa da Fapesp. Por ter baixa visão, as orientações eram feitas por chamada de vídeo e trocas de documento no Word. A análise dos dados foi feita pelo programa de software SPSS. A psicóloga utiliza um recurso de acessibilidade em seu computador, que faz uma leitura de textos para que possa compreender as informações na tela. O programa gratuito NVDA transforma o conteúdo escrito em áudio.
A pesquisadora destaca o apoio de sua orientadora, que sempre foi muito presente e deu o suporte necessário para o desenvolvimento do mestrado. Durante as análises estatísticas, Simone pontua que o auxílio de Isabela foi fundamental. “Eu sempre tive muita liberdade para falar para minha orientadora o que eu conseguia e não conseguia fazer e ela sempre esteve disposta a me ajudar. O banco de dados do Elsa é muito grande. Como eu não tinha muita habilidade com o SPSS e tem a questão visual, ela acabava fazendo os resultados e a gente discutia as análises”, explica.
Os resultados do estudo mostraram que o evento mais associado à depressão foi a dificuldade financeira. A investigação resultou em dois artigos, um publicado no Journal of Affective Disorders (JAD), periódico científico especializado em transtornos mentais, e outro aprovado na revista Clinics, do Hospital das Clínicas da FM, ainda não publicado.
A professora Isabela Benseñor ao lado de sua orientanda Simone Silva em uma sala de aula. Isabela está à esquerda, com uma camisa verde estampada com folhas. Ela é uma mulher branca, tem cabelo curto, cacheado e usa óculos. Já Simone está à direita, usando uma camisa rosa clara. A pesquisadora é branca, tem cabelo longo, liso e preto.
A professora Isabela Benseñor e a pesquisadora Simone Silva - Foto: Arquivo pessoal

O primeiro artigo mostra que a ocorrência de depressão é maior nas pessoas mais jovens. “As pessoas mais jovens de 35 a 44 anos apresentaram mais eventos negativos de vida do que os mais velhos. Então, aqueles com menos idade tiveram mais depressão como resultado do acúmulo desses eventos”, avalia a pesquisadora.

Já o segundo relaciona a depressão com o gênero, avaliando os cinco casos estudados em relação a homens e mulheres. Nessa análise, mais mulheres apresentaram sinais de depressão do que homens. 

Ambientes acessíveis

A acessibilidade não foi uma questão que se limitou às tarefas acadêmicas. Moradora de Itaquaquecetuba, na região metropolitana de São Paulo, Simone lembra uma de suas dificuldades durante o mestrado: chegar até a faculdade. Durante a pandemia, ela aproveitou para fazer suas aulas on-line, mas quando teve que fazer matérias presencialmente, o deslocamento até a FM era complicado. 

“Eu levo duas horas para chegar à Faculdade de Medicina. Eu descia em várias estações e não tinha ajuda. Simplesmente tinha que me virar. Às vezes, você encontra alguém no metrô que te ajuda a procurar um funcionário para fazer essa orientação. Teoricamente, nas estações deveria ter esse suporte, mas a realidade infelizmente ainda não é essa”, comenta.

Sobre o ambiente da USP, a psicóloga destaca que sempre teve suas solicitações atendidas e que as pessoas foram receptivas, mas sentiu falta de outras pessoas com deficiência no ambiente acadêmico, pois nem sempre sabia como proceder em determinadas situações. Por isso, Isabela defende que “é muito importante que a gente faça essas ações de inclusão e pertencimento para que as pessoas que têm deficiência possam desenvolver todo o seu potencial”. 

*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles


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