Em 1945, sob condições adversas, um doutor preto paulistano se forma em Direito pela USP

A trajetória pouco conhecida de Francisco de Assis Martins, nascido em 1920, desafiou a estrutura social da época. Era o período pós-abolição, marcado pela marginalização da população negra, com consequências sentidas até os dias atuais

Em 1945, sob condições adversas, um doutor preto paulistano se forma em Direito pela USP

A trajetória pouco conhecida de Francisco de Assis Martins, nascido em 1920, desafiou a estrutura social da época. Era o período pós-abolição, marcado pela marginalização da população negra, com consequências sentidas até os dias atuais

Fotos e documentos do acervo de Leonardo Martins - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 17/02/2023 - Publicado há 1 ano
Texto: Gustavo Roberto da Silva,
Arte: Moisés Dorado

Formado em 1945 pela Faculdade de Direito (FD) da USP, Francisco de Assis Martins foi advogado, professor, palestrante, conferencista, representante de instituições e possuiu diversas propriedades, além de falar cinco idiomas. Para um homem negro de origem pobre, as conquistas de Francisco são um exemplo de que oportunidades precisam ser concedidas para a população negra. “É urgente que a sociedade mentalize que existem pessoas pretas intelectuais, poliglotas, que através do acesso à educação transformaram suas realidades”, afirma Leonardo Francisco de Moura Martins Ribeiro da Silva, que é neto do advogado formado em 1945.

Leonardo Martins - Arquivo Pessoal

Leonardo Martins – Arquivo Pessoal

Nascido em São Paulo, no ano de 1920, Francisco de Assis foi criado apenas por sua mãe, Benedita Martins, já que o pai nunca o registrou. Benedita era natural do litoral paulista e foi uma das milhares de pessoas que se dirigiram à cidade de São Paulo no início do século 20 em busca de trabalho. Na capital, foi trabalhadora doméstica no casarão de uma família de barões, onde criou quatro filhos, incluindo Francisco. “Pelo que minha mãe e meus familiares contam, ele cresceu no quartinho da funcionária. Eles contam que, a princípio, ele não tinha nem cama, que cresceu em um caixote de madeira”, conta o neto Leonardo.

Naquele período, o Brasil vivia seu primeiro período republicano (1889-1930), o fim institucional do regime escravocrata era recente, e a população negra não obteve qualquer tipo de indenização ou proteção do Estado. A Faculdade de Direito era um ambiente de presença majoritariamente elitista, com filhos de políticos e barões do café. Dos 12 presidentes civis da Primeira República, nove passaram pelas arcadas do Largo São Francisco.

Apesar das condições adversas, Leonardo afirma que o avô sempre demonstrou ser estudioso e dedicado, e recebeu auxílio da família proprietária do casarão para ter acesso a materiais de estudo. “Apesar dessa posição dela (bisavó) de empregada doméstica, essa família acolheu ela e os filhos, e sempre incentivou meu avô e os irmãos a estudar, ler, inclusive davam livros para ele. Pela educação que minha bisavó dava e por meio desse acolhimento, ele pôde ter acesso a boas escolas”, diz o neto.

Francisco em sua formatura na USP - Foto: Cecília Bastos_USP Imagens

Francisco de Assis em sua formatura na USP – Foto Cecília Bastos_USP Imagens

Contrariando a normalidade do mercado de trabalho da época, que não dava oportunidades para pessoas negras ocuparem cargos considerados “intelectuais”, Francisco de Assis ingressou na Faculdade de Direito da USP em 1941, se formou em 1945 e colou grau no ano seguinte. Já formado e inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Francisco atuou nas áreas civil e tributária, em um escritório próximo à Praça da Sé.

"Meu avô conseguiu comprar uma casa na Avenida Brasil, no Jardins. Naquela época, se ele não era o único homem preto proprietário de uma casa naquela região, era um dos únicos. Um dos raros casos naquela época e até os dias de hoje. Acho que hoje em dia nem deve ter gente preta lá como dono de propriedade”

No âmbito pessoal, Francisco de Assis casou-se com Thereza Paulino de Moura Martins e juntos tiveram uma única filha, Maria do Carmo Paulino de Moura Martins, mãe de Leonardo.  A avó Thereza foi uma mulher negra, que trabalhava como costureira e dona de casa. “A partir do crescimento do meu avô, eu posso dizer que ela virou uma socialite. Ela fazia trabalhos voluntários, atuou no hospital do câncer, foi diretora de creche e frequentava eventos com empresários, juízes e advogados”, conta o neto. 

Formado em Artes, Leonardo trabalhou em escolas públicas e hoje atua junto à Assistência Social da Prefeitura de São Paulo, atendendo a população em situação de rua. Em 2023, começou a cursar Direito na Universidade Zumbi dos Palmares. Por um pedido do próprio Francisco de Assis antes de seu falecimento, Leonardo tem o nome do avô em seu sobrenome como forma de homenagem.

Leonardo Martins conheceu a trajetória do avô, Francisco de Assis, por meio da oralidade – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O neto não pôde conhecer pessoalmente o avô, que veio a falecer dez dias antes de seu nascimento, em outubro de 1989. Por meio da oralidade, através das histórias contadas pela mãe e outros familiares, e por diversas fotos e documentos conservados, Leonardo teve acesso à trajetória do seu avô. 

Fotos e documentos do acervo de Leonardo Martins - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Barreiras ultrapassadas

Para compreender por que histórias como a de Francisco são consideradas exceções, é preciso destacar o contexto de desigualdade racial presente na sociedade brasileira desde sua formação. O professor Ramatis Jacino, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que atua com temas relacionados à desigualdade racial no Brasil e a história da população negra no País, afirma que não houve apenas o abandono da população negra por parte do Estado.

“Foi mais que isso. Nesse período de transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado, houve uma ação deliberada das elites para promover a marginalização dos negros, inclusive utilizando a legislação. A Lei de Terras de 1850 impede os pobres e os negros de terem acesso à terra, e de sobreviver da agricultura familiar. Em 1854 e depois em 1878, existiram leis que proibiam os escravizados de frequentar a escola. Em 1886 existe uma postura municipal de São Paulo que proibia que os escravizados exercessem alguns tipos de trabalho, particularmente os mais valorizados socialmente, e melhor remunerados. Ou seja, houve exclusão da terra, exclusão da educação e exclusão do trabalho”

Professor Ramatis Jacino - Foto: Curriculo Lattes

Professor Ramatis Jacino – Foto Curriculo Lattes

Doutor em História Econômica pela USP, com a tese intitulada O negro no mercado de trabalho em São Paulo pós-abolição – 1912/1920, Jacino pesquisa o tema desde o mestrado, e afirma ainda que a Lei Áurea (1888) não produziu resultados significativos. “Quando ela foi promulgada apenas 5% da população negra ainda continuava escravizada. A grande maioria tinha se libertado por fuga ou por libertações parciais, como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários, ou mesmo por iniciativa dos próprios fazendeiros que percebiam que o trabalho assalariado seria mais lucrativo. Então a Lei Áurea libertou 5% da população negra, que continuou na marginalidade porque ninguém dava trabalho a eles”, destaca.

Atual membro do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros (NEAB) da UFABC, o professor cita alguns exemplos de pessoas negras que possuem histórias parecidas com a de Francisco e se tornaram figuras de destaque no Brasil durante esse período, como Nilo Peçanha, que foi presidente da República e governou duas vezes o Rio de Janeiro, além de Francisco Glicério, advogado protagonista no movimento republicano, e Machado de Assis, que foi considerado branco durante muitos anos.

“Essa história de um homem negro nessas condições não é absolutamente inédita, existem outras histórias parecidas durante e depois da escravidão, de negros que tiveram ascensão social, resultado do apadrinhamento por algum homem branco rico. Mas é importante que se diga que são exceções muito raras, e que essas pessoas conseguiram uma certa ascensão, e como aconteceu no caso do sr. Francisco, foram invisibilizadas”, afirma Jacino.

Segundo o professor, essas figuras negras que conseguiram alcançar grande destaque eram “branqueadas” ou invisibilizadas para reforçar narrativas eugenistas, que diziam que a população negra era incapaz de desenvolver o País como os brancos. “Com certeza ele não foi o único, mas ele é uma exceção. Ainda que tenha recebido ajuda da família de barões, certamente deve ter enfrentado imensa dificuldade e preconceitos para conseguir estudar, se formar e trabalhar”, destaca.

Fotos e documentos do acervo de Leonardo Martins - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Barreiras atuais

Em meio às diversas barreiras impostas à população negra até os dias atuais, a trajetória pessoal de Leonardo o levou a questionamentos sobre os espaços que ocupava. “A gente morava em São Vicente, no bairro Itararé, que é considerado bairro nobre. Quando eu era criança não tinha educação racial para me reconhecer naquele ambiente. Por meio do movimento hip hop, e a partir do contato com o rap, eu passei a me reconhecer e percebi que nós éramos praticamente a única família preta do condomínio”, afirma Leonardo. 

“Eu me recordo de algumas situações com a minha irmã, que é mais retinta, de pele mais escura do que eu, a gente pegando elevador no condomínio e chegava uma pessoa e dizia que o elevador de empregada era lá atrás. A gente foi criando consciência pelas situações que vivemos, observando a própria cidade de São Vicente, que tem a orla da praia e o restante é periferia. Comecei a perceber o fato de que a população periférica tem cor, geralmente pessoas pretas”, conta.

O neto de Francisco de Assis revela que, ao se reconhecer como um homem negro, passou a questionar sua mãe sobre a história da família. Maria do Carmo cresceu na casa que o pai adquiriu na Avenida Brasil e estudou no Colégio Madre Alix. Segundo Leonardo, ela era a única menina negra da turma e conviveu com perseguições de outros colegas. Enquanto compartilhava sua história com Leonardo, uma frase o marcou. “Uma pessoa preta, uma família preta que ganha dinheiro ou alcança um certo status social, não deixa de ser preta por isso”, afirmou a mãe.

Fotos e documentos do acervo de Leonardo Martins – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O apagamento histórico que o avô sofreu foi uma das motivações de Leonardo para querer contar a história de Francisco de Assis. Ao visitar o Museu da Faculdade de Direito, além de encontrar apenas representações de pessoas brancas, a única figura negra vista foi a de um funcionário que trabalhou durante anos na Universidade. “Longe de mim desmerecer a atuação do funcionário, que merece estar ali, e também é um tipo de representatividade. Mas por que a USP não coloca as pessoas pretas que se formaram ali? Como intelectuais e professores, como meu avô”, questiona.

Os atuais estudantes

A respeito do pioneirismo de Francisco de Assis, há de se destacar que a primeira turma de cotistas da Faculdade de Direito da USP se formou há poucos dias, em 2023, quase 80 anos após sua formatura em 1945. 

A turma 191 formou 312 novos bacharéis em Direito, dos quais 75 são cotistas, sendo 35 pela reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas (PPI). “Antes da política de cotas dentro da Universidade, a maioria das pessoas negras estava em função de servir. A gente não via pessoas negras na sala de aula, na graduação”, afirma Amanda Medina, diretora geral do Centro Acadêmico XI de Agosto e cofundadora da Coligação de Coletivos Negros da USP. A diretora, que também é estudante de graduação (atualmente no 4º ano) em Direito na USP, ressalta que antes das cotas havia pouca presença de estudantes negros, que precisaram batalhar para que a política fosse implementada.

A formatura da primeira turma de cotistas repercutiu em diferentes veículos de comunicação, e até mesmo nas redes sociais do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que parabenizou os formandos e desejou uma carreira de sucesso. Para Amanda, algumas notícias que circularam sobre a turma deixam nítido que não há como considerar a existência de meritocracia no Brasil.

"Tinham reportagens que diziam ‘essa pessoa andava não sei quantos quilômetros para chegar na faculdade’, ou ‘essas pessoas pegavam livros do lixo para poder estudar para o vestibular e passaram, então basta querer’. Ninguém tinha que passar por isso! Que bom que essas pessoas conseguiram, mas que pena que foi desse jeito. Quando a gente fala que a maior parte das pessoas negras que não ingressavam eram pessoas pobres que também não tinham acesso a uma educação de qualidade, é porque o buraco é muito mais embaixo. Não basta querer!”, afirma a estudante.

Amanda Medina - Foto: Arquivo Pessoal

Amanda Medina – Arquivo Pessoal

Amanda também reforça a necessidade de combater as fraudes na política de cotas e, atualmente, integra a banca de heteroidentificação da faculdade. “Nem todas as vagas estavam efetivamente sendo ocupadas por pessoas negras. Infelizmente muitas outras poderiam estar se formando agora na primeira turma, mas não puderam estar lá”, conta. Após reivindicação de entidades estudantis e raciais, as bancas de heteroidentificação foram implementadas em 2023 pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP. 

“Fiquei muito feliz em saber desse nome. Essas histórias e esses nomes chegam com dificuldade para nós, ou nem chegam. Então eu fico feliz que o neto de uma pessoa negra que estudou na ‘Sanfran’ numa época que a gente nem imaginava que poderia ter gente negra lá estudando está contando essa história”, afirma a estudante a respeito da trajetória de Francisco de Assis.

Leonardo também falou a respeito da formatura da turma 191.“Em 1940, não era nada comum. Olha quanto tempo demorou para formar a primeira turma com cotas! Quando uma pessoa negra de origem pobre acessa a universidade é possível ver a transformação que isso causa na vida dela”, afirma.

Para o professor Jacino, nos últimos 20 anos houve grandes avanços em direção à igualdade racial, que são resultado de políticas públicas como cotas em universidades e no serviço público, estatuto da igualdade racial e a Lei 10.639, que inclui história e cultura africana no currículo escolar. Mesmo com as conquistas mencionadas, ainda há muito caminho a percorrer.

“Na nossa sociedade, a totalidade da classe dominante é branca. Quem é dono dos meios de produção, no caso os grandes empresários, são brancos. A grande maioria da classe média é branca, e a grande maioria da classe trabalhadora é composta de negros. Mesmo os negros que agora ingressam em boas universidades através da política de cotas, têm extrema dificuldade de entrar no mercado de trabalho, que é racista. O mercado entende que um negro com um diploma de doutorado da USP não é tão qualificado quanto um branco com um diploma menos conceituado. Há necessidade de se fazer uma ação mais ampla da sociedade e do Estado brasileiro para combater a discriminação”, ressalta o professor.

Leonardo acredita que a divulgação da história do avô pode servir de inspiração para outras pessoas negras que desejam ocupar espaços como universidades de qualidade e cargos de alta remuneração. “Penso em mudar o imaginário das pessoas mesmo, para pensarem em advogados negros. Descobrirem que décadas atrás teve uma pessoa negra, sem sobrenome, que conseguiu entrar na USP e fez uma carreira brilhante”, diz.


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