Fotomontagem com imagens de Freepik por Jornal da USP

Pesquisa reformula “sintomas” autistas para uma melhor adaptação à sociedade

A insistência na mesmice foi uma das estratégias identificadas para a integração do autista em espaços alimentares

 09/11/2022 - Publicado há 2 anos

Texto: Antonio Carlos Quinto

Arte: Adrielly Kilryann

Após ter percorrido um longo caminho acadêmico, a pesquisadora e psicóloga ambiental JungJa Park Cardoso vem se  dedicando, desde 2018, a estudos do autismo em adultos brasileiros. Atualmente, ela está concluindo suas pesquisas no programa de pós-doutorado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e atua como pesquisadora do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE), na mesma instituição. JungJa é autora de um artigo publicado recentemente na revista Autism, da National Autistic Society, UK, intitulado Insistence on sameness for food space appropriation: An exploratory study on Brazilians with autism (self-)diagnosis in adulthood [Insistência na mesmice para apropriação do espaço alimentar: um estudo exploratório sobre brasileiros com (auto)diagnóstico de autismo na idade adulta]. Além da pesquisadora sul-coreana, também assina o artigo a professora Ana Paula Soares da Silva, do Departamento de Psicologia da FFCLRP.

O autismo, também chamado Transtorno do Espectro Autista (TEA), é uma condição neurológica diversa que afeta as formas como o indivíduo interage com seus meios social e físico. Os atuais critérios diagnósticos de autismo são déficits persistentes na comunicação social e interação social, e padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades. “O autismo afeta o indivíduo ao longo de toda vida. Ou seja, uma criança autista cresce e entra na idade adulta se tornando um adulto autista”, descreve JungJa. Contudo, perceber o autismo na idade adulta pode ser difícil por várias razões.

JungJa Park Cardoso - Foto: Arquivo pessoal

JungJa Park Cardoso - Foto: Arquivo pessoal

Uma delas é que existem diferenças nas manifestações do autismo em crianças e em adultos. Estudos sobre mudanças ao longo do tempo de padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses ou atividades sugeriram que movimentos motores estereotipados e repetitivos (em geral, mais facilmente observáveis) são mais frequentes na infância e diminuem na idade adulta, enquanto a insistência em “comportamentos de mesmice” aumenta à medida que se envelhece e permanecem mais frequentes na idade adulta. Pesquisas com indivíduos autistas têm sugerido que os adultos no espectro suprimem seus movimentos motores estereotipados e repetitivos devido à pressão social, que se revela em tratamentos para eliminar ou reduzir os comportamentos.

Outra razão que torna mais difícil perceber o autismo na idade adulta é que as manifestações da condição nesta fase da vida não são bem compreendidas por muitos médicos. Ser adulto, ser capaz de fazer contato visual, ser capaz de falar e trabalhar ou ser casado não deveriam ser motivos para negar o diagnóstico de autismo. Mas muitos adultos autistas experimentaram receber tais julgamentos de profissionais médicos até que, finalmente, tiveram acesso a médicos qualificados e com experiência em autismo na idade adulta.

Métodos de diagnóstico

Alguns métodos comuns para se diagnosticar o autismo em adultos incluem uma revisão da história do desenvolvimento e uma avaliação das características do TEA. Como descreve a pesquisadora, “uma revisão da história do desenvolvimento envolve entrevistas em profundidade com os pais do indivíduo adulto ou outros que o conheçam bem desde a primeira infância.”

Geralmente é usada a Entrevista Diagnóstica para o Autismo Revisada (Autism Diagnostic Interview – Revised [ADI-R]). Como explica JungJa, a avaliação das características do TEA é realizada com base nos critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders [DSM]). Outra ferramenta que pode ajudar na avaliação é o Protocolo de Observação para o Diagnóstico de Autismo (Autism Diagnostic Observation Schedule [ADOS]). Os dois instrumentos, ADI-R e ADOS, são traduzidos para o português brasileiro e validados para a população brasileira.

Alguns dos tratamentos mais comuns para o autismo em adultos incluem terapias comportamentais e cognitivo-comportamentais, terapia de fala e linguagem e terapia ocupacional. Além disso, para muitos adultos autistas, a medicação é prescrita para ajudar a gerenciar condições comuns, como ansiedade, depressão ou hiperatividade.

A Análise do Comportamento Aplicada (ABA), uma terapia comportamental, tem sido considerada o tratamento mais eficaz para o autismo pelos profissionais. Mas a terapia foi recentemente criticada por adultos autistas, de acordo com um número crescente de pesquisas sobre suas experiências com a terapia.

JungJa informa ainda que não há cura conhecida para o autismo. “Muitos adultos autistas se opõem à noção de curar o autismo, porque o consideram como parte integrante de quem são, comparável à raça, ao gênero e à orientação sexual”, explica. De acordo com a psicóloga, o autismo pode ser amenizado pelos tratamentos citados. “Mas o foco dos tratamentos deve ser fundamentalmente melhorar a qualidade de vida da pessoa autista, em vez de tornar a pessoa autista indistinguível dos não autistas, independentemente das razões subjacentes aos comportamentos autistas.”  

Autistas e seus ambientes

Antes de chegar a seu pós-doutorado na USP, JungJa foi atraída pela área de design de interiores e pela ideia de tornar melhor a vida de pessoas por meio do ambiente em que vivem. “Assim, concluí uma graduação em Habitação e Design de Interiores na Universidade Yonsei, na Coreia do Sul”, conta. Prosseguindo com o tema, mas desta vez analisando ambientes de trabalho e beneficiação do lugar dele, ela cursou mestrado em Design e Análise Ambiental na Universidade Cornell, nos EUA. “Foi durante meu tempo na Cornell que me encontrei com professores que são psicólogos ambientais e que estudavam relações entre pessoas e ambientes”, conta.

Esse convívio em Cornell levou JungJa a cursar o doutorado em Psicologia Ambiental, no Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The Graduate Center of the City University of New York), onde ela pesquisou sobre como os adultos autistas percebem e respondem a seus ambientes alimentares, como problemáticos ou favoráveis a eles.

Os resultados das pesquisas de JungJa em Nova York sugeriram que alguns ambientes alimentares acabam se tornando “desertos alimentares invisíveis.” “Um deserto alimentar refere-se a uma área na qual alimentos saudáveis não estão disponíveis ou são difíceis de se obter”, descreve.

“Eu defini ‘desertos alimentares invisíveis’ como locais onde algumas pessoas têm dificuldade de acessar alimentos nutritivos, porque aspectos do ambiente alimentar que são problemáticos para elas, mas invisíveis para a população em geral, as impedem de fazê-lo”, conta. De acordo com JungJa, a maioria das pessoas autistas tem sensibilidades sensoriais, e os ambientes alimentares, como lanchonetes e supermercados, muitas vezes são uma sobrecarga sensorial para eles.

Muitos participantes de seu estudo de doutorado não conseguiam comer ou fazer compras adequadamente em lugares lotados, barulhentos, com iluminação ou com cheiros muito fortes. Como descreve a pesquisadora, para evitar a sobrecarga sensorial no ambiente alimentar, os participantes preferiam comer ou fazer compras fora dos horários de pico. Contudo, sentiam que o horário de funcionamento dos locais é limitado.

Possíveis consequências do “comer fora”

Ao comer em ambientes alimentares estressantes, as pessoas autistas podem passar mal e até ter crises. Quando uma pessoa está se sentindo estressada, seu corpo entra no modo “luta ou fuga”. “Isto significa que o sistema nervoso simpático do corpo é ativado, o que pode levar a uma série de reações físicas”, explica.

Uma dessas reações pode ser um aumento na produção de ácido estomacal, que pode causar indigestão e fazer uma pessoa passar mal, levando a sintomas como azia, náusea e vômito. O estresse também pode causar a liberação de hormônios como cortisol e adrenalina, que podem perturbar ainda mais o sistema digestivo e causar indigestão.

Ao comer fora, autistas podem usar estratégias para evitar situações estressantes, como comer sem falar, escolher lugares sem sobrecarga sensorial, comer fora dos horários de pico, usar ferramentas como fones de ouvido ou sair do local quando estressados. “Mas muitas vezes eles não podem fazê-lo livremente em situações sociais, seja no trabalho ou entre famílias e amigos. Muitos participantes da minha pesquisa tiveram experiências de ter dificuldade em engolir e digerir alimentos, e passar mal, por causa de situações sociais estressantes”, conta.

Devido às repetidas experiências de adoecimento por situações de alimentação estressantes, comer muito pouco ou desistir de comer nessas situações era comum entre os participantes. Evitar fazer refeições acompanhados também era comum. Estes resultados da pesquisa de pós- doutorado de JungJa foram publicados em um artigo anterior na revista Autism in Adulthood, intitulado Preference to eat alone: Autistic adults’ desire for freedom of choice for a peaceful space [Preferência por comer sozinho:  Desejo de autistas adultos de liberdade de escolha para um espaço tranquilo]. “Evitar refeições com outras pessoas pode levar ao isolamento social, um fator de risco para a depressão, porque a socialização muitas vezes gira em torno da comida”, adverte.

Insistência na mesmice

Reconhece-se que a insistência na mesmice é uma parte do desenvolvimento típico, mas ela é mais comum e intensa no autismo. No seu estudo que explorou os significados da insistência na mesmice para adultos autistas, no pós-doutorado, JungJa entrevistou 16 adultos autistas brasileiros. Destes, dez foram formalmente diagnosticados na idade  adulta. Outros seis, identificados como estando no espectro autista sem diagnóstico formal.

“Durante as entrevistas por e-mail, primeiro perguntamos sobre as experiências dos participantes com o diagnóstico de autismo, seja diagnóstico formal ou autodiagnostico”, destaca JungJa. “Em seguida, perguntamos sobre suas experiências em lugares para comer fora e fazer compras. Descobrimos que eles insistiam em otimizar sua relação com o ambiente para comer ou fazer compras confortavelmente, como ir sempre aos mesmos lugares ou usar sempre óculos escuros à noite, o que pode parecer aos outros que eles insistem na ‘mesmice’”, explica.

Esses comportamentos eram considerados hábitos estranhos ou manias, primeiro por outras pessoas e depois por eles mesmos. Enquanto tentavam controlar suas manias por causa da pressão social, muitas vezes sofriam de ansiedade e crises.

Quando eles finalmente souberam de seu autismo na idade adulta, começaram a entender melhor quem são e por que experimentam o ambiente de forma diferente dos outros. “Essa nova compreensão ensinou-lhes que seus chamados hábitos estranhos são, na verdade, parte de suas maneiras autenticamente autistas de lidar com o mundo mais estranho”, constata.

A pesquisadora acredita que sua pesquisa contribui para a compreensão dos contextos comportamentais de indivíduos autistas. Em seu estudo, ela encontrou um quadro mais completo de contextos de insistência na mesmice dos autistas adultos no espaço alimentar, explorando seus hábitos e experiências de ambientes alimentares, em relação a comer fora e fazer compras, e suas experiências de (auto)diagnóstico de autismo. “Meu estudo aponta para uma ‘melhor terapia’ baseada no conhecimento mais profundo da relação entre pessoas autistas e seus ambientes físicos e sociais. Um restaurante comum, por exemplo, pode melhorar seu ambiente, oferecendo diversas opções para que os clientes controlem facilmente os níveis de sua exposição a estímulos sensoriais e interação social”, acredita.

“Os resultados sugerem que a insistência dos adultos autistas na ‘mesmice’ é uma estratégia legítima para viver como seres humanos. Embora os resultados exploratórios não sejam definitivos nem conclusivos, acreditamos que este estudo nos permitiu lançar uma nova luz sobre a insistência na mesmice e outros comportamentos de indivíduos autistas”, conclui a pesquisadora.

Mais informações: jparkcardoso@gmail.com 

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