Blog
Desigualdade de gênero é maior nos níveis mais elevados da carreira acadêmica
Artigo da revista MATRIZes aborda as diferenças de oportunidades para homens e mulheres no subcampo científico da comunicação
A expressão “teto de vidro” ou glass ceiling foi utilizada pela primeira vez pela escritora e consultora de gestão norte-americana Marilyn Loden em 1978. Na época, Loden usou o termo para simbolizar a existência de uma barreira invisível que impede que mulheres cheguem aos cargos mais altos das organizações em que trabalham.
Esse fenômeno também está presente no campo científico, porém, de maneira sutil. Entender como essa barreira está inserida na estrutura e na dinâmica hierárquica da produção científica é um processo complexo.
Evento no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP discute os desafios enfrentados por mulheres na busca por posições de liderança e constituição de carreiraUma em cada quatro mulheres alcança cargos de liderança em corporações e na universidade
É sobre este assunto que trata o artigo Desigualdades de gênero no subcampo científico da comunicação: o teto de vidro no quintal. O texto de Laura Wottrich e Milena Freire de Oliveira-Cruz faz parte de uma pesquisa em desenvolvimento que aborda como as dinâmicas de gênero refletem na pesquisa realizada na área de comunicação.
De acordo com Laura, professora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e Milena, docente do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), “pesquisadoras possuem menor participação nos âmbitos mais elevados da carreira acadêmica, o que sugere a existência do teto de vidro, também identificado em outros campos do conhecimento”.
Ciência hegemônica e a questão de gênero
As pesquisadoras explicam que o desenvolvimento da ciência foi influenciado por interesses e preceitos dominantes. Um desses preceitos está relacionado ao que seria a ciência e como ela é definida a partir da racionalidade, em oposição à subjetividade. Segundo Laura e Milena, essa contraposição por si só serviu de base para a desigualdade entre o feminino e o masculino na estrutura social e, como consequência, no campo científico.
Ambiente competitivo e excludente no bacharelado influencia mulheres a preferirem a licenciatura, cuja presença feminina fortalece rede de aliançasBacharelado em matemática é mais desigual para mulheres negras
Quando este conceito de ciência é definido como universal, outros saberes e vozes são impossibilitados de contribuir com a produção científica. Essa conjuntura é reflexo dos interesses e valores de homens, em sua maioria brancos, ocidentais e burgueses, que se beneficiaram da estrutura social desigual do século 18 — capitalista, colonial, patriarcal e racista.
É somente no século 20 que novos espaços são ocupados por mulheres, para dar início ao rompimento da lógica masculina dominante e tida como universal. “A inclusão da perspectiva feminista na história das ciências é […] uma reivindicação que se estende desde a participação efetiva das mulheres no campo até os movimentos de resistência ao conhecimento hegemônico e de defesa do conhecimento múltiplo, engajado e situado.”
Para além das responsabilidades acadêmicas
De acordo com as professoras, as mulheres são maioria nos indicadores educacionais. Na pós-graduação, formam a maior parte de doutoras e mestres do País. Em relação às bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado, também se destacam. Esse cenário, no entanto, ainda não é tão próspero quanto parece.
“A maior presença das mulheres nos bancos universitários não reverbera, necessariamente, em igualdade de oportunidades”, indicam Laura e Milena. Além da presença feminina ser concentrada em cursos voltados a Artes, Humanidades e Saúde, o acesso a bolsas de pesquisa voltadas a cientistas em níveis mais avançados da carreira é desigual e mais vantajoso para os homens. Nas bolsas de produtividade, a parcela masculina predomina nos níveis mais altos. Quanto mais elevada é a categoria, maior a diferença entre homens e mulheres.
Mesmo sendo maioria nas universidades, as mulheres continuam inseridas em um contexto sociocultural diferente da população masculina. Aqui, o teto de vidro ganha corpo: existem mecanismos machistas e cargas extra-acadêmicas que são direcionadas apenas à parcela feminina, o que as impede de se dedicar à pesquisa na mesma intensidade que um homem.
As cientistas experienciam tensões de diversas ordens, derivadas da conciliação entre vida pessoal e profissional, da experiência da maternidade, da sobrecarga oriunda da execução do trabalho doméstico, entre outras tantas razões. No limite, [há] a expectativa de que as mulheres precisam ser bem-sucedidas em todos os âmbitos da vida.
Laura Wottrich, docente (UFRGS) e Milena Freire de Oliveira-Cruz, docente (UFSM)
Laura Wottrich – Foto: UFRGS
Da forma como se estabeleceu, a atividade de pesquisa tem como pilar a excelência científica. Esse aspecto não leva em consideração as vivências e experiências das mulheres que produzem pesquisa. “Não raramente, no âmbito das atribuições do subcampo científico, cabe a elas se ocuparem de tarefas consideradas secundárias, em que as exigências e parametrizações em torno da excelência incidem com menor intensidade”, contam.
A desigualdade nos detalhes: programas de pós-graduação
No artigo, Laura e Milena abordam as desigualdades de gênero no subcampo científico da Comunicação no Brasil a partir de um mapeamento próprio. As pesquisadoras usam como base para o levantamento dados dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, bolsas de produtividade em pesquisa e entidades e periódicos científicos.
Em 53 programas de pós do País, as mulheres eram pouco mais da metade de docentes atuantes na pós-graduação em 2019, com 50,1%. Já no subcampo científico da Comunicação, os homens ocupam cerca de 58% do quadro de docentes nos programas, segundo dados de 2017 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
As mulheres predominam como discentes e docentes, porém, “há uma diminuição significativa de amplitude dependendo da posição ocupada. Ou seja, há mais mulheres discentes nos cursos de pós-graduação em comunicação, mas não na mesma proporção que nos quadros de docentes”, apontam.
Presença em conselhos diretivos
Laura e Milena pontuam que na ciência há a predominância de homens ocupando espaços de liderança. Essa é uma circunstância histórica que continua a ser perpetuada por essa mesma parcela masculina, por meio de indicações entre si e a criação de uma rede de apoio que objetiva a permanência em altos cargos.
Nesse caso, a análise das pesquisadoras se direcionou para duas entidades: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) e a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), e para quatro associações: a Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), a Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp), a Associação Brasileira de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda (ABP2) e a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine).
Na Compós, as pesquisadoras observaram que entre 1991 e 2020, 16 gestões dirigiram o conselho da entidade e foram formados por 31 homens e 20 mulheres. Apenas três mulheres foram presidentes da associação. Roseli Fígaro, professora do Departamento de Comunicações e Artes (CCA), é a atual presidente da Compós.
Na Intercom, em 42 anos de história, as autoras contabilizaram 186 cargos das diretorias da entidade, com 98 ocupados por homens e 88 por mulheres. No período, a associação foi liderada 11 vezes por um homem e sete vezes por uma mulher. Em 12 das 18 diretorias, o grupo majoritário foi masculino.
Nos conselhos diretivos da SBPJor, Abrapcorp, ABP2 e Socine, Laura e Milena indicam que há um cenário mais equitativo em relação à representação feminina, apesar dos cargos de mais alta hierarquia, com exceção da Abrapcorp, ainda terem predominância de homens.
Produção acadêmica: queda no auge da pandemia
As professoras também analisam as relações generificadas na produção acadêmica a partir da publicação de artigos em periódicos, um dos principais parâmetros de excelência científica. Foram utilizadas como base as edições de 2019 e 2020 das revistas Comunicação, Mídia e Consumo, Chasqui, E-Compós, Famecos, Galáxia, MATRIZes e Intercom.
Em 2019, 37,2% dos artigos publicados tiveram autoria masculina, 32,3% feminina e 30,5% de autoria mista. Já em 2020, 45,7% dos artigos foram escritos por homens, 32,5% por mulheres e 21,8% por ambos os gêneros. Laura e Milena indicam que houve o aumento da produção de artigos de autoria masculina na pandemia, fator que revela as desigualdades no campo da ciência.
Autoria de artigos em revistas A2 por sexo, em 2019 e 2020
autoria feminina
110
84
autoria masculina
127
118
autoria mista
104
44
Nota: Elaborada pelas autoras
Gráfico presente no artigo Desigualdades de gênero no subcampo científico da comunicação: o teto de vidro no quintal, página 156 da edição – Imagem: reprodução/ revista MATRIZes
Representação da quantidade de artigos publicados em edições de 2019 e 2020 de revistas classificadas como A2. Gráfico de barras verticais, dividido em três colunas. Cada coluna é dividida em duas cores: o azul corresponde ao ano de 2019 e o laranja, a 2020. A primeira coluna representa a autoria feminina. A parte azul da coluna mostra o número 110, enquanto a parte laranja mostra o número 84. A coluna do meio representa a autoria masculina. Há um bloco azul com o número 127 e um bloco laranja em cima com o número 118. A última coluna representa a autoria mista e conta com um bloco azul com o número 104, em cima dele, um bloco laranja menor com o número 56.
No período da pandemia, enquanto a submissão de artigos escritos por homens se manteve no mesmo nível ou apresentou crescimento, para as mulheres ocorreu o inverso. As pesquisadoras apontam que essa diferença é explicada pelas responsabilidades organizacionais e de cuidado, e cargas familiares, como a parentalidade, assumidas pelas mulheres.
“Queremos apontar, com isso, que a maior produção de artigos em revistas qualificadas não se configura simplesmente a partir de mérito e competência, mas também da disponibilidade e da dedicação que, em muitos casos, quando observadas pelas lentes do gênero, encontram barreiras impostas pelas dinâmicas culturais e sociais da vida privada de cada agente.”
Laura Wottrich, docente (UFRGS) e Milena Freire de Oliveira-Cruz, docente (UFSM)
Laura e Milena concluem entender a necessidade e a possibilidade de existir um cenário em que a produção científica se alinhe à realidade de quem a desenvolve. As pesquisadoras também apontam que irão dar continuidade à investigação das relações generificadas na ciência, a partir do relato de mulheres pesquisadoras.
Revista MATRIZes
MATRIZes é um periódico científico do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA-USP. Os artigos publicados em suas edições têm como objeto de estudo a comunicação em suas diversas dimensões e perspectivas. A edição atual se aprofunda em temas como a mídia em diferentes formatos, a produção científica, música, cinema e narrativas.
A íntegra da edição atual e edições passadas podem ser acessadas pelo Portal de Revistas da USP.
* Por Rosiane Lopes, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.