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Das lojas de discos à indústria da cultura: como estão as mulheres na música?
Edição do programa USP Especiais discute o apagamento das mulheres na música e sua repercussão no jornalismo musical
Das lojas de discos à indústria da cultura: como estão as mulheres na música? - Foto: cottonbro studio/Pexels
Em celebração ao 8 de março – data em que é comemorado o Dia Internacional das Mulheres – o programa USP Especiais abordou a participação das mulheres no jornalismo musical. A jornalista Márcia Scapaticio, mestranda em Estudos Culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, é a convidada da edição #91 do programa da Rádio USP, que trata de diversos assuntos do campo da cultura, a partir de seus sons.
Em sua pesquisa de mestrado, Márcia discute as imbricações de gênero e raça no jornalismo musical, pela perspectiva de uma garota que sempre respirou música mas nunca conseguiu acessar esta área de especialização nos grandes veículos de mídia. “Os caras que eu lia aos 15 anos, e agora eu tenho 41, são os mesmos. Se eu pegar entrevistando uma banda joia, vai ser aquele cara. Eu vejo isto como uma estrutura social que não permite que mulheres alcancem todos os lugares, ou que, se alcançam, sejam somente algumas mulheres”, afirma.
O programa foi ao ar na terça-feira, 5 de março, às 21 horas, com reprise no sábado, às 20 horas, na Rádio USP São Paulo (93,7 FM) e em Ribeirão Preto (107,9 FM). Também é possível ouvir pelo endereço: https://jornal.usp.br/radio ou diretamente no player abaixo, disponível nos principais agregadores de podcast:
Muita estrela, pouca constelação
Em 1987, a banda Camisa de Vênus lançou seu último álbum com a formação original e com o cantor Marcelo Nova nos vocais, o Duplo Sentido. Na ocasião, o vocalista soteropolitano, fã inveterado de Raul Seixas, chamou o Maluco Beleza para iniciar uma parceria musical que resultou na composição e gravação do maior sucesso do disco, a canção Muita Estrela, Pouca Constelação. Na letra, sobram críticas à indústria da cultura, às tribos urbanas e uma sutil dose de violência de gênero. “E o jornalista ele quer bajulação”, assume que quem fará a crítica do novo produto musical será um homem.
Após quase 37 anos, a participação, inserção, representatividade e liberdade de expressão das mulheres na música têm crescido cada vez mais. De acordo com o relatório Por elas que fazem a música, da União Brasileira de Compositores (UBC), desde a primeira edição do levantamento, em 2018, o número de mulheres associadas aumentou em 68%. No entanto, a pesquisa da UBC também revela que quase 80% das entrevistadas afirmam ter sofrido algum tipo de discriminação. Essa discriminação assume diversas formas, desde a subestimação da capacidade, até a objetificação de seus corpos, resultando em assédio.
Um levantamento de 2023 da UBC revelou que oito em cada dez mulheres profissionais da música foram assediadas em algum momento de suas carreiras. Além disso, dos 4 milhões de artistas associados na base de dados do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), apenas 10% são do gênero feminino. De acordo com o último relatório do Ecad, intitulado O que o Brasil ouve – Mulheres na música, dos 100 autores com maior rendimento, só quatro eram mulheres. Apenas 8% dos direitos autorais de música foram destinados às mulheres em 2022. O relatório referente a 2023 ainda não foi divulgado.
A tensão entre maior participação e menor representatividade também pode ser identificada em duas importantes figuras da história do Brasil. Suas trajetórias são representações bastante nítidas do preconceito e do esquecimento aos quais estão submetidas as mulheres: a maestrina Chiquinha Gonzaga e a jornalista Mariza Lira. Autora da primeira marchina de carnaval, Ó Abre Alas, Chiquinha Gonzaga viveu o segundo reinado na corda bamba, sendo homenageada como notável expoente da música, mas hostilizada no âmbito pessoal. Em sua obra Chiquinha Gonzaga, grande compositora popular brasileira, publicada em 1939, Mariza Lira destacou o pioneirismo da trajetória profissional da artista, sendo ela mesma a primeira biógrafa de Chiquinha. O livro foi reeditado e disponibilizado em versão digital pela Funarte.
Estudos recentes reconhecem Mariza Lira como pioneira no jornalismo musical – um ramo da profissão que tem como tarefa analisar uma obra, criticá-la e costurar seus fiapos aos meandros da história. Mariza representou as mulheres em profissões pouco femininas. Assim como ela, outras mulheres à frente da crítica musical foram apagadas ou constrangidas por fazerem seu trabalho.
O relatório Misoginia na música, divulgado em janeiro de 2024 pelo Parlamento do Reino Unido identificou que mulheres gestoras são regularmente subestimadas ou confundidas com cargos de menor importância, como promotoras, integrantes da equipe de palco, assistentes, namoradas ou “groupies” – fãs que seguem artistas em turnês. O documento indica que 84% das entrevistadas descreveram ser mais difícil para as mulheres progredirem em suas carreiras na programação musical. Esta ausência têm reflexos, de acordo com o relatório, nas plataformas de streaming. “O algoritmo as afeta negativamente e elas descem nas listas de reprodução ou são completamente removidas”, destaca o comitê que elaborou o texto.
“Isso alimenta a indústria da música, o mercado, as artistas e tem um desdobramento, um ‘eco’ no jornalismo musical”, afirma Márcia Scapaticio – nossa entrevistada na 91ª edição do programa USP Especiais. A pesquisadora entrevistou, ela mesma, a jornalista inglesa Vivien Goldman, uma das cronistas mais importantes sobre o punk e o reggae, biógrafa de Bob Marley e conhecida como “professora de punk” da New York University. Vivien desabafou que a indústria musical de sua época era uma área de garotos, em que os homens do pedaço acreditavam que as mulheres não consumiam música.
Márcia viu este mesmo cenário na loja de discos Laser Express, no interior de São Paulo, entre o final dos anos 1990 e início de 2000. A jornalista conta que a loja era composta fundamentalmente de homens que, com sua influência, para além das indicações de discos, regiam a agenda cultural e a cena musical da cidade de Piracicaba – região de forte cultura sertaneja. “Era o único jeito que você tinha para consumir música com a mídia física. E como música é um ambiente masculino, eu me sentia intimidada por aqueles caras que sempre sabiam tudo, e ao mesmo tempo encantada por eles saberem tanto”, conta.
Ela fez um projeto de entrevistas intitulado Os caras da loja de disco, no qual procura entender a influência da música entre os vendedores e a repercussão social da loja para a agitação cultural. “Todos os caras que vendiam discos ali também escreviam na mídia impressa local mais importante da cidade, então eles tinham colunas que eram lidas e comentadas todo final de semana. Tanto de indicação de discos como de bandas novas, shows na cidade. Eles conseguiam fazer o fluxo completo”, explica.
Apesar do mercado de discos de vinil ter alcançado quase 6 milhões de unidades vendidas em 2023 – um recorde desde 1990 de acordo com a Indústria Fonográfica Britânica – a Laser Express e outro punhado de lojas de discos sucumbiram diante da oferta de música em aplicativos de transmissão. Sem as lojas, a programação musical que é consumida pelo público fica menos aleatória e mais filtrada. É neste cenário que, para Márcia, faltam olhares plurais no jornalismo musical, para se chegar a novas formas de se pensar e divulgar música.
“O círculo não foi renovado e é importante movimentar a estrutura”, diz.
*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
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