Corpo-território: a luta de mulheres indígenas pela preservação de terras e ancestralidade

Estudo da USP analisou como preservação de terra e corpo está ligada à preservação das tradições e dos saberes ancestrais de mulheres na cosmovisão indígena

 19/04/2024 - Publicado há 3 meses     Atualizado: 15/07/2024 as 9:35

Texto: Guilherme Ribeiro e Lívia Lemos*
Arte: Diego Facundini**

Para as mulheres indígenas, lutar pela preservação de terras é também lutar pela preservação de seus corpos e pela memória ancestral de seus povos.- Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Quais são as lutas das mulheres indígenas? E suas percepções quanto à desigualdade de gênero? Analisar questionamentos dessa natureza foi o que buscou Amanda Bezerra dos Santos em sua dissertação de mestrado em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Orientada por Marília Librandi, professora do Diversitas, a dissertação A retomada das indígenas: reflorestando o lugar de mulher foi defendida em outubro de 2023. Amanda, que é indígena do povo Pankararu, desenvolveu a pesquisa a partir de sua vivência no contexto urbano, analisando a percepção da mulher indígena pelo tema da desigualdade de gênero.

“Eu frequentava os movimentos feministas, mas percebia uma ausência de pautas indígenas. Ao mesmo tempo, como mulher indígena, frequentava os movimentos indígenas e estava em contato com diversas mulheres que compartilhavam suas histórias e demandas, que eram diferentes”, conta a pesquisadora sobre o que a motivou a iniciar sua dissertação.

Foi na Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), que a pesquisadora encontrou um espaço que debatia propriamente as demandas destas mulheres. Durante sua pesquisa, Amanda participou das edições de 2019 e 2021 da marcha. A pesquisadora analisou as narrativas construídas e compartilhadas por essas mulheres e identificou que a luta pela preservação de terras – principal demanda da mulher indígena – está diretamente ligada à luta pelo respeito e pela preservação de seus corpos.

Amanda Pankararu

Além de mestranda em Ciências na USP, Amanda é assistente social, formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo em 2015 através do Pindorama, programa da PUC-SP que oferece bolsas de estudos para alunos indígenas.

Indígena em contexto urbano, Amanda conta brevemente sobre sua infância na introdução de sua dissertação, sobre como se sentia isolada e sofria com o preconceito por conta da imagem de “selvagem” que a cultura eurocêntrica construiu sobre os povos originários. Mas também lembra com carinho de suas visitas à Aldeia Brejo dos Padres, próximo ao Rio São Francisco em Pernambuco, e da sensação de liberdade que brincar no quintal da aldeia a proporcionava.

Natural de Mauá, do ABC Paulista, Amanda é de origem Pankararu, povo indígena que tem suas terras homologadas no sertão do estado de Pernambuco - Foto: Arquivo Pessoal/Amanda Pankararu

Corpo-território

A dissertação segue o tema da luta da mulher indígena, focando na relação entre corpo e território, que são aspectos fundamentais dessas culturas e que, segundo a pesquisadora, eram temas recorrentes nas reivindicações dessas mulheres. Amanda explica que para os povos originários em geral, o corpo é um lugar que carrega história, saberes e tradições daquele povo.

“O corpo da mulher indígena é visto como uma potência de multiplicar vidas e também de passar os saberes de seus ancestrais adiante”, explica Amanda. 

Ainda que a luta pelo respeito ao corpo feminino seja uma pauta comum, a pesquisadora aponta para as diferenças de significados que o corpo assume em outras sociedades. Na cosmovisão indígena, o corpo da mulher é pertencente à terra em que ela reside, uma relação que a pesquisadora denomina como corpo-território. 

A pesquisadora conclui que, para essas mulheres, lutar pela preservação de terras é também lutar pela preservação de seus corpos e, consequentemente, de toda memória ancestral de seus povos.

Amanda aponta também que a violência contra a mulher indígena carrega ainda a tentativa de manutenção do projeto do colonizador, de desmoralizar essas pessoas e suas comunidades e mantê-las na posição de inferioridade na qual foram colocadas. 

“Já o corpo da mulher é visto não só como uma potência de multiplicar vidas, mas também de passar os saberes de seus ancestrais adiante. Logo, há uma troca: a terra guarda todo o conhecimento e o corpo da mulher, que pertence à mãe terra, retroalimenta a terra [com novas vidas] e passa esse conhecimento adiante, como se fosse a raiz de uma árvore”

"Essa desigualdade de gênero foi algo introjetado pelo colonizador na nossa sociedade" - Foto: Arquivo pessoal

Violência de gênero no contexto indígena

Pessoas indígenas são tratadas como inferiores e “selvagens” dentro de sociedades construídas a partir de uma visão eurocêntrica do homem branco. Têm suas vidas e seus direitos decididos por medidas governamentais parciais e vivem em constante conflito por suas terras. Fora as dificuldades em relação a saúde e educação.

Além de enfrentarem os desafios de serem indígenas, elas ainda lidam com os desafios de gênero, sendo alvos de violência sexual e feminicidios. 

Amanda trouxe em sua dissertação um dado de 2016 da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, estado com a segunda maior população indígena do País. O levantamento mostra que entre 2010 e 2014 os casos de violência contra a mulher indígena aumentaram em quase seis vezes. O número, que em 2010 era de 104 casos, passou para 619 em 2014. 

Cartilhas de orientação sobre a Lei Maria da Penha em Guarani e Terena - Foto: Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul

Devido aos números alarmantes, a Defensoria Pública lançou e distribuiu pelo estado do Mato Grosso do Sul cartilhas de orientação sobre a Lei Maria da Penha que foram traduzidas para o Guarani e Terena, as principais línguas faladas pelos quase 80 mil indígenas que residem no estado.

Ainda assim, a pesquisadora alerta sobre a complexidade do problema no contexto de vida das mulheres indígenas. Para ela, combater a violência provendo proteção, leis e monitoramento, são necessárias mais intervenções estatais. Mas alerta para a contradição com a presença do Estado, que pode colocar em risco a autonomia política e cultural das comunidades indígenas. 

*Estagiário sob orientação de Tabita Said. Com texto de Divulgação Científica, da FFLCH
**Estagiário sob orientação de Simone Gomes


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