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Coletivos periféricos em Sapopemba promovem saúde para além de postos e UBSs
Rompendo com lógica individualista e patológica da saúde, coletivos periféricos localizados em Sapopemba, na zona leste de São Paulo, realizam atividades comunitárias promovendo pertencimento com o território
Membros e líderes de coletivos periféricos de Sapopemba se organizam para resolver problemas na comunidade - Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Joca Duarte/Prefeitura de São Paulo e acervo de Magno Evangelista Pereira
No Sapopemba, bairro localizado na zona leste de São Paulo, a saúde é vista pelos moradores de forma diferente dos modelos convencionais graças à atuação dos coletivos periféricos da região que desenvolvem espaços de escuta e trocas de convivência. A ação dos grupos visa contornar a alta demanda no Sistema único de Saúde (SUS) – como a superlotação nas filas dos hospitais públicos – e promover o pertencimento com o território, como mostra a tese de doutorado de Rosiane Pacheco, defendida na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
Realizado durante a pandemia de covid-19, o estudo intitulado Encontros com Sapopemba: coletivos em movimento produzindo vida e saúde teve a orientação do professor Marco Akerman, da FSP. Para Rosiane, a pesquisa é como um instrumento de autoconhecimento e fortalecimento de sua identidade. “Eu sou da favela. Pesquisar as potencialidades de Sapopemba traz consigo algo muito afetivo, porque foi ali que morei durante o período do doutorado. Desde o nascimento a gente sabe que ser favelado é aprender com a vida a resistir e reexistir coletivamente”, conta a sanitarista.
O tema da pesquisa foi tratado com muito respeito por Rosiane, da linguagem do texto à metodologia empregada no estudo. Segundo ela, tudo foi pensado da melhor forma para que os moradores da comunidade tivessem acesso ao material, após defendido. “É preciso ter cuidado ao adentrar o território do outro para não cairmos naquele vício de tratar a vida das pessoas como objeto de estudo. Algo que a academia, ainda hoje, reproduz em certo grau”, explica ela, também docente do Departamento de Educação em Saúde da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Por se tratar de uma pesquisa de campo, a autora optou por adotar um estilo documental semelhante a um diário. Foram realizadas entrevistas com membros e líderes de coletivos periféricos de Sapopemba, com o objetivo de avaliar como se organizavam para resolver problemas na comunidade de forma coletiva. Percebeu-se uma maior presença dos coletivos na parte leste de Sapopemba, especialmente no Parque Santa Madalena, na Fazenda da Juta, no Teotônio Vilela e no Promorar. Uma fonte para realizar o mapeamento dos equipamentos sociais foi o livro “Espaços periféricos: política, violência e território nas bordas da cidade“, produzido pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
O estudo concluiu que, por meio das subjetividades presentes nos encontros dos grupos, os participantes aumentavam a sua potência de agir e de viver, porque afetos e sentimentos de alegria eram produzidos a partir da troca de convivências. Esperança, engajamento, solidariedade crítica e compromisso ético também são produzidos.
A troca de experiências além de produzir esses sentimentos, também despertava o espírito de mobilização social. Problemas sociais eram compartilhados e solucionados de forma conjunta. O acolhimento, a escuta qualificada e o diálogo possibilitavam desenvolver senso de cidadania, ajudando a reconhecer as omissões estatais em relação a direitos comuns, como o acesso à moradia, educação, saúde e lazer.
Saúde popular
O estudo assume também um caráter político. A autora recomenda que a tese possa ser utilizada pela Subprefeitura do distrito como ferramenta pública, a fim de que as verbas destinadas à saúde sejam melhor direcionadas. “Isso porque há muitos riscos em investir dinheiro público em um território desconhecido para quem está no comando da administração. Não são riscos individuais, mas coletivos, e que afetam a todas as pessoas da região”, diz. Em reportagem publicada este ano pela Agência Mural, a Subprefeitura de Sapopemba gastou apenas 60% do que foi prometido para 2022, a menor entre todas as 32 subprefeituras de São Paulo.
A pesquisa também surge com dois objetivos: primeiro, uma tentativa de romper a lógica institucional da saúde, como um estado biológico ausente de quaisquer doenças e enfermidades. Segundo, de refletir que tipo de saúde é essa que temos usufruído, que na maioria das vezes representa um espaço totalitário, em que o profissional de saúde fala, e o paciente escuta.
“Os coletivos periféricos de Sapopemba nascem com o propósito de reafirmar a cidadania na região. Na pandemia, por exemplo, o Centro Comunitário Joilson de Jesus, do Parque Santa Madalena, discutia entre os moradores segurança alimentar”, conta. “As ações de distribuições de alimentos partiam de uma perspectiva de esclarecer que não é assistencialismo e sim de garantir que o direito à alimentação deveria ser garantido pelo Estado, mas nem sempre é”, complementa Rosiane ao analisar as estratégias realizadas nos encontros. Na época, Sapopemba liderou o ranking de bairro com mais mortos por coronavírus.
No Sapopemba, a saúde não é vista de forma apenas institucional, mas também popular e comunitária nas vizinhanças. “Para os moradores, não são apenas os hospitais municipais, as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e a Assistência Médica Ambulatorial (AMA) que produzem saúde. As associações dos moradores, os coletivos negros, de mulheres, LGBTI+, agroecológicos e de luta por moradia também produzem”, destaca a pesquisadora.
Os coletivos também produzem saúde em Sapopemba a partir de um olhar interno, de quem vive ali. “A periferia se comunica e se relaciona de uma forma muito particular. Por se tratar de um bairro com alta densidade demográfica, as práticas populares de saúde são das mais variadas. Como o uso de plantas medicinais, nas oficinas que o Centro de Criança e Adolescente (CCA) Margarida Marielle costuma desenvolver.” A associação chegou a elaborar uma cartilha sobre o uso das ervas no tratamento de doenças, sob a coordenação de uma moradora e estudante de Química da Universidade Federal do ABC (UFABC). A cartilha foi revisada utilizando o material disponibilizado pelo Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo.
Atuação com a comunidade
De acordo com os dados da Prefeitura de São Paulo, Sapopemba é o distrito periférico com maior densidade demográfica reunindo aproximadamente 300 mil habitantes. A região se insere na Macroárea de Redução da Vulnerabilidade Urbana, que tem como diretriz a melhoria dos espaços urbanos, a redução de déficits nas ofertas de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas, a inclusão social e territorial de assentamentos precários ocupados pela população de baixa renda. Os dados revelam que 17,7% da população está abaixo da linha de pobreza.
A redução dos problemas sociais, segundo a pesquisadora, deve ser combatida de forma conjunta, na articulação estatal com coletivos periféricos. Isso, porque “durante muito tempo o sonho do sujeito periférico foi sair da favela onde vivia. Hoje, essas pessoas têm orgulho de estar ali fazendo a diferença”, diz Rosiane. “Em Sapopemba, apesar da violência doméstica, os moradores confeccionam cartazes, como ‘não aceitamos violência contra a mulher aqui’, mostrando que a luta por direitos é também coletiva e cooperativa”, complementa.
Ela também avalia a importância de formar profissionais de saúde que sejam moradores da comunidade. “Essa é uma discussão antiga na área da saúde. Formar profissionais com a competência de trabalhar as reais necessidades locais da unidade de saúde com a comunidade”, explica.
Em certo grau, os agentes comunitários de saúde nas UBS agem dessa forma, em diálogo com a comunidade. No entanto, a pesquisadora acredita que, com o tempo, o trabalho desses profissionais se tornou burocrático. “É um trabalho muito precarizado também. São pessoas que passam o dia inteiro andando de casa em casa. A demanda é enorme e a lógica migra para o cumprimento de metas, que não dialoga com a ideia de se relacionar com o território”, comenta.
Diferentemente dos coletivos onde a saúde é pensada de forma mais humanizada, identificando o que leva cada indivíduo a adoecer. “A doença pode vir pela falta de lazer e de acesso à alimentação de qualidade”, exemplifica Rosiane.
Em Sapopemba, a saúde é vista de outra forma, porque é a própria periferia que determina o que isso representa. “E isso é produzido de forma democrática, a partir do diálogo. Em contrapartida aos serviços de saúde, em que os sujeitos periféricos apenas obedecem a uma recomendação médica. Lá, eles mesmos se ouvem. A escuta aliada à mobilização social tornam-se os melhores remédios para o adoecimento que a ausência do estado proporciona”
O Jornal da USP procurou a Subprefeitura de Sapopemba para esclarecer a respeito dos gastos de apenas 60% do que foi prometido para o ano passado, mas não obteve retorno.
Saiba mais: rosidantas@hotmail.com, com Rosiane Dantas Pacheco
*Sob supervisão de Antonio Carlos Quinto
**Sob supervisão de Simone Gomes de Sá
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