Ambulatório do Hospital das Clínicas da USP é pioneiro no acolhimento de crianças e adolescentes trans

Unidade de atendimento completa dez anos oferecendo apoio a jovens transexuais, que ainda carecem de linhas de cuidado específicas na rede pública

 28/01/2025 - Publicado há 1 mês

Texto: Maria Trombini*

Ambulatório especializado do HC atende exclusivamente crianças e adolescentes trans - Foto: Foreign and Commonwealth Office/Wikimedia Commons/CC BY 2.0

Em 2025, o  Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) completa 10 anos de atendimento exclusivo a crianças e adolescentes transexuais. A unidade de saúde é vinculada ao Instituto de Psiquiatria (IPq), um dos sete departamentos que compõem o Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP. Pioneiro no acolhimento de jovens trans, o ambulatório é referência na criação e aplicação de protocolos de atendimento durante a infância e a puberdade, ainda não consolidados no Brasil. 

Alexandre Saadeh é médico psiquiatra, professor colaborador da FM e coordenador do AMTIGOS. Ele lembra que o pioneirismo no acolhimento às crianças foi acompanhado de uma carência de orientações específicas pelas quais o ambulatório pudesse guiar suas atividades. Então, a equipe se baseou nas literaturas médicas de outros países, como Holanda, Estados Unidos e Canadá, para compor as linhas de ação, mas sempre dialogando com a realidade brasileira. 

“Lá fora, eles são muito mais combativos. A postura norte-americana é bem afirmativa: se as pessoas dizem que são, elas têm o direito e ponto. Mas eu acho que devemos olhar com muito cuidado, porque fazer uma intervenção nessa população não é um brinquedo. Você está atuando em vários níveis, desde a biologia, que é o mais básico, até o nível social. Se você está ajudando a construir uma história, você tem que saber exatamente para quem. Não é para ser um processo industrial, como muitas vezes você vê em outros países”, argumenta o psiquiatra.

Atualmente, o Brasil caminha para integrar orientações específicas nas políticas de saúde. No fim de 2024, o Ministério da Saúde apresentou o Programa de Atenção à Saúde da População Trans (Paes Pop Trans), que reformula e expande os serviços de atendimento à população trans no Sistema Único de Saúde (SUS). Entre as novidades, figura o desenvolvimento de uma linha de cuidados específica para crianças e adolescentes. 

Alexandre Saadeeh é coordenador do AMTIGOS - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

“A transexualidade sempre existiu, a gente é que não falava sobre. 98% da população é cisgênera, mas 2% é trans. Essas pessoas existem. Se a gente não olhar para esse grupo também, qual é a nossa contribuição? Temos que discutir, mas não impedir essas pessoas de serem quem elas são. Se hoje existem recursos biotecnológicos que podem ajudar muito essa população, por que não usar?”, indaga Alexandre.

Como funciona o AMTIGOS?

O ambulatório recebe usuários que busca espontaneamente pelo serviço de saúde.  “Geralmente, é a família que procura o ambulatório. Hoje, já existe muita coisa na internet sobre crianças e adolescentes trans, como livros e depoimentos. Nas buscas, essas famílias acabam ouvindo sobre o ambulatório. Mas a maior parte delas nem sabe dessa possibilidade de uma vivência trans”, comenta o professor.

Quem entra em contato, por e-mail ou telefone, é orientado a preencher um formulário de cadastro e aguardar ser chamado para a triagem. Alexandre diz que, atualmente, o tempo de espera é bem curto, devido a uma parceria do ambulatório com a Prefeitura de São Paulo. Adolescentes mais velhos, que perderam a possibilidade de bloqueio hormonal, são encaminhados para a rede básica. Lá, terão acesso aos acompanhamentos que precisarem, como, por exemplo, em saúde mental, até que possam iniciar a hormonização a partir dos 16 anos. Com essa realocação, o ambulatório consegue priorizar demandas restritas à sua atuação. 

Após a triagem, os jovens passam por uma extensa avaliação psiquiátrica. Durante um dia inteiro, as crianças ou adolescentes e as famílias conhecem o ambulatório, recebem orientação e são encaminhados para um dos três grandes setores: infância, adolescência ou púberes.

O professor destaca a categoria dos “púberes” como uma criação do AMTIGOS, referente à fase de transição da infância para a adolescência. Como muitos dos pacientes hormonalmente bloqueados não passaram pelas mudanças corporais dessa fase transitória, alguns dos responsáveis tinham dificuldade de acompanhar as mudanças psicossociais que também ocorrem nessa fase da vida, por ainda vê-los como crianças. 

“O que está bloqueado é o desenvolvimento de caracteres sexuais secundários. A curiosidade sexual, o entendimento e a busca sobre sexualidade continuam, porque eles vivem em meios sociais de adolescentes. Hoje, há um fluxo muito legal de crianças para púberes e de púberes para adolescentes. Assim, cobrimos todas as áreas do desenvolvimento inicial de um ser humano, ligadas à questão da identidade de gênero. É um trabalho amplo: inclui fonoaudiologia, serviço social, psicologia, psiquiatria, pediatria, nutrição, educação física e outras”, diz Alexandre.

Ambulatório do HC que atende crianças e jovens trans funciona por demanda espontânea - Foto: USP Imagens

Respaldo Jurídico e normas de saúde

O pioneirismo do AMTIGOS também tem sido alvo de ataques. Em 2023, foi alvo da chamada “CPI da Transição de Gênero” na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que visava suspender os serviços prestados pelo ambulatório. No início deste ano, o vereador Lucas Pavanato (PL) protocolou um projeto de lei intitulado Criança trans não existe, que prevê a proibição de terapias hormonais e cirurgias de redesignação sexual para menores de 18 anos na cidade de São Paulo. 

Ainda que não haja legislação específica e consolidada sobre o tema, os serviços de saúde seguem normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). A advogada Heloísa Alves, membro do Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, explica que os ataques ao AMTIGOS ferem o princípio fundamental da não discriminação, garantido pela Constituição Brasileira. “Não é possível, à luz da nossa lei maior, ditar ou restringir termos/conceitos e/ou identidades de gênero. Qualquer lei com este princípio já nasce inconstitucional. Crianças e adolescentes têm o direito de expressar sua identidade de gênero e serem respeitados por ela”, afirma. 

Sobre a justificativa do vereador de que o projeto de lei se baseia na biologia e protege a integridades dos menores de idade, Heloísa opina: “o projeto é baseado numa compreensão equivocada do vereador sobre o tema e não tem qualquer fundamentação jurídica. Essa é uma justificativa para, talvez, encobrir seu preconceito e desconhecimento. É inconstitucional, discriminatório e violador dos direitos humanos e das liberdades individuais”. 

Heloísa Alves: "Crianças e adolescentes têm o direito de expressar sua identidade de gênero e serem respeitados por ela." - Foto: Arquivo pessoal

O professor Alexandre acrescenta que, na ciência, tudo é questionável. “Mas os deputados partem da premissa de que o ambulatório foi formado por questões ideológicas. Dizem: ‘vocês estão criando uma entidade’. Eu não criei nada. Eu simplesmente vejo que essas crenças existem, e vejo o sofrimento delas em não poderem ser quem são. Eu só respeito a existência delas”, diz ele. 

O que diz a ciência?

Procedimentos de hormonioterapia cruzada e cirurgias são proibidos a menores de 16 anos. Nessa etapa, as possibilidades de acompanhamento estão ligadas ao estágio de maturidade sexual em que o jovem se encontra, classificados de acordo com a Escala de Tanner.

Na fase pré-púbere, ou Tanner I, não deve ser realizada nenhuma intervenção. A fase seguinte, Tanner II, marca o início da puberdade. É nela que podem ser utilizados bloqueadores hormonais para impedir o desenvolvimento das características sexuais, em especial as secundárias.

O bloqueio hormonal em crianças, por motivo de incongruência de gênero, é um serviço oferecido exclusivamente em regime experimental em protocolos de pesquisa, em hospitais universitários e/ou de referência para o SUS. O AMTIGOS foi vanguardista nessa linha de pesquisa.

Aos 16, a hormonioterapia cruzada passa a ser permitida. É nessa fase que os jovens antes bloqueados passarão pelas mudanças corporais relacionadas à maturidade sexual. Já aqueles que não foram bloqueados e passaram pela puberdade biológica programada podem começar o uso dos hormônios específicos para o gênero que se identificam.

“Na realidade, uma pessoa só será desbloqueada se tiver uma maturidade de definição e de quem ela é. Depois de um acompanhamento extenso, com psicólogos, discussões em grupo e acompanhamento familiar, vão sendo percebidas as mudanças e vemos como a pessoa está vivendo essa realidade. Aos 16 anos, se decidir pela hormonização, ela é liberada”, orienta Alexandre

Aos 18, as cirurgias de afirmação de gênero também passam a ser uma possibilidade de escolha. Ao atingirem a maioridade, boa parte dos pacientes migra do ambulatório para a rede geral de saúde. “A gente preconiza que esses pacientes estejam na rede para que as pessoas possam conhecê-los e entenderem que as questões de incongruência de gênero fazem parte do nosso dia a dia, e que eles precisam e merecem o acompanhamento em saúde integral do SUS”, explica o pesquisador.

Promovendo saúde

Fenyx Igris, pessoa não-binária e estudante de Saúde Pública na USP, avalia que os cursos da área da saúde carecem de representatividade de corpos transgêneros. “Eu mesma não vi quase nada na graduação. Geralmente, quando as pessoas precisam de alguma informação, perguntam pra mim ou para um amigo que é um homem trans. Várias vezes, eu me senti um dicionário de corpos trans e de transgeneridade em geral, para professores, inclusive. Sinto que tenho que ensinar até aos supostos especialistas”, relata. 

Em seu projeto de pesquisa, Fenyx conta que pretende investigar a quantidade de pessoas trans, travestis e intersexo na cidade de São Paulo e quais suas demandas e entraves em relação aos atendimentos de saúde. “No caso das pessoas intersexo, por exemplo, os processos de hormonização tem um efeito diferente. Muita gente descobre que é intersexo depois de começar a fazer a hormonização. Faltam muitos dados sobre pessoas intersexo e não-binárias. As demandas do Processo Transexualizador para pessoas não binárias também pode ser diferente”. 

Fenyx Igris é uma pessoa não-binária, estudante da Faculdade de Saúde Pública da USP - Foto: Arquivo pessoal

Para Alexandre, é preciso que as universidades assumam o compromisso de oferecer formações em que esses temas sejam discutidos, formando profissionais conscientes e capacitados. “Ao longo do tempo, o que as ciências mais fizeram foi lidar com o que é comum. Agora, a gente pode aprender com as diferenças, porque essas pessoas merecem.  É fundamental que as pessoas exerçam o seu direito de acesso à saúde total e integral dentro do SUS. Esse é o papel da saúde”, afirma o médico e professor. 

*Estagiária sob supervisão de Silvana Salles


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