21 de junho: nascimento do bruxo do Cosme Velho e do patrono da abolição no Brasil

Data marca os 185 anos de nascimento do escritor Machado de Assis e 194 do advogado Luiz Gama; traduções e produções audiovisuais renovam atenção do público e reivindicam suas identidades negras

 Publicado: 21/06/2024     Atualizado: 24/06/2024 as 14:06

Texto: Tabita Said , Gabriela Varão e Maria Trombini*

Arte: Jornal da USP

Fotomontagem Jornal da USP com imagens de: Fundação Biblioteca Nacional/Wikimedia Commons/Domínio Público; Wikimedia Commons/Domínio Público

No dia 21 de junho, é celebrado o nascimento de Machado de Assis (1839), conhecido como o bruxo do Cosme Velho, e de Luiz Gama (1830), o patrono do abolicionismo no Brasil. Importantes figuras para a história e a cultura brasileiras, sua atuação no século 19 deixou um legado que se estende até os dias atuais. Considerados “homens letrados”, Machado de Assis e Luiz Gama eram também “homens de cor”. Mesmo assim, suas trajetórias tiveram enredos diferentes, bem como a forma como foram considerados desde o Brasil Império até as mais recentes traduções e produções audiovisuais.

Neste 21 de março, o Instituto Tebas lança uma websérie de sete episódios intitulada Liberdade ou Morte: histórias que a História não conta. O 1º episódio, Caminhada Luiz Gama Imortal, narra a celebração da memória do escritor, jornalista, advogado, líder abolicionista e republicano Luiz Gama, nascido há 194 anos. 

“Mais do que um símbolo, a caminhada é uma experiência fundamental e recorrente na trajetória de Luiz Gama. E não só durante a sua vida, mas já a partir do seu funeral, acompanhado a pé, ao longo de cinco quilômetros, por mais de três mil pessoas, numa São Paulo de 30 mil habitantes”, lembra Abilio Ferreira, escritor e coordenador da área de Relações Institucionais do Instituto Tebas. 

Passados 185 anos do nascimento de Machado de Assis, o Google Trends registrou um aumento repentino no interesse dos leitores norte-americanos pelo autor. Após vídeo da escritora e influenciadora norte-americana Courtney Henning Novak viralizar nas redes sociais, Memórias Póstumas de Brás Cubas se tornou um dos livros mais vendidos na Amazon dos Estados Unidos. 

“Hoje, um americano provavelmente será apresentado ao Machado como um autor negro. Diferente do público brasileiro, principalmente das gerações mais velhas, que talvez tenha descoberto quando adulto que o Machado era negro. No Brasil, a gente teve que resgatar essa consciência de que um dos autores mais importantes da nossa literatura é um homem negro”, afirma Ursula Sydio, mestre em Letras e Tradução pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Sua pesquisa desenvolveu um site reunindo as traduções publicadas em língua inglesa do autor Machado de Assis em um catálogo atualizado e com informações como ano de publicação e tradutores da obra, o Machado de Assis – Corpus & Catálogo (MACC).

Atualmente, Machado voltou a figurar no TikTok com a influenciadora Courtney, que desta vez leu a obra Dom Casmurro. “É muito importante dizer que o maior escritor brasileiro é um homem negro que viveu no século 19, em uma sociedade escravocrata, e sofreu as agruras de estar nesse contexto. Isso revela muito sobre a própria história brasileira”, comenta Esdras Soares da Silva, que estudou a representação de escritores negros brasileiros em materiais didáticos de sistemas privados de ensino.

A influenciadora Courtneu Novak entrou no desafio “Read Around The World”, lendo um livro de cada país seguindo a ordem alfabética. “Melhor livro de todos”, disse ela no TikTok sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas – Imagem: Reprodução/TikTok

MACHADO DE ASSIS

Neto de escravos alforriados e filho de um pintor de paredes com uma imigrante açoriana. Nasceu em 1839 no Rio de Janeiro e foi jornalista, poeta, cronista, ensaísta, funcionário público e escritor de peças de teatro e de alguns dos maiores clássicos da literatura brasileira. Fundou e presidiu a Academia Brasileira de Letras, sendo considerado por Harold Bloom, célebre crítico literário estadunidense, “o maior literato negro da história da literatura universal”. Escreveu mais de 200 contos, dez romances, cinco coletâneas de poemas e mais de 600 crônicas. É considerado o patrono da imprensa nacional e introdutor do Realismo no Brasil, embora sua escrita também mantenha crítica social e humor. 

LUIZ GAMA

Filho da africana Luísa Mahin, figura histórica na Revolta dos Malês e na Sabinada, e de um fidalgo branco cujo nome nunca foi revelado. Nasceu em Salvador, em 1830, e foi vendido como escravo aos 10 anos de idade. Caminhou do Porto de Santos até Campinas e se tornou escravo de ganho em Lorena, no interior paulista. Escritor, jornalista e advogado provisionado, frequentou as aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco como aluno ouvinte. Atuando como rábula, Luiz Gama conseguiu sua própria liberdade e tirou do cárcere mais de 500 escravizados por via judicial. A lei 13.628, de 2018, inscreve seu nome no livro dos heróis da pátria, e a 13.629, do mesmo ano, o declara patrono da abolição da escravidão no Brasil.

Embranquecimento de Machado

A pesquisa de Esdras Soares da Silva, feita na FFLCH, analisou o processo de embranquecimento de Machado de Assis em livros didáticos, apresentados para crianças do ensino básico de sistemas privados de ensino. “Ele foi um escritor que teve a vida atravessada pela ideologia do branqueamento”, afirma o autor do estudo. 

Em sua certidão de óbito, Machado é caracterizado como um homem “da cor branca”. Outro episódio significativo envolve o historiador e crítico literário José Veríssimo e o abolicionista Joaquim Nabuco. Em 1908, após a morte de Machado, Veríssimo escreveu um artigo para o Jornal do Comércio, enaltecendo as qualidades do escritor e o caracterizando como “mestiço” e “mulato”. Ao ler o texto, Nabuco ficou incomodado com a descrição e escreveu uma carta pessoal a Veríssimo, pedindo que nunca publicasse o artigo, dizendo que o escritor era branco e também se via dessa forma.

Em 2011, a Caixa Econômica Federal lançou um comercial para ser veiculado na televisão com uma reprodução da época, trazendo a imagem de Machado que foi um dos primeiros correntistas do banco. No entanto, o ator escolhido para representá-lo era branco. Após receber críticas, a Caixa veiculou um pedido de desculpas e refez o comercial, escolhendo um ator com um tom de pele mais próximo ao que teria o escritor.

Nos materiais didáticos, Silva afirma que também há um branqueamento de seu fenótipo. “Existe uma representação visual embranquecedora do Machado de Assis. Tem alguns registros fotográficos que mostram o escritor como um homem branco”, explica. Além da representação, ele destaca que alguns materiais não abordam a identidade racial do autor. “Nos materiais didáticos, ainda é recorrente ver ilustrações que mostram o Machado de Assis como um homem branco e textos que não mencionam o seu pertencimento racial. Esse silêncio também é um processo de branqueamento, porque é muito importante dizer que o maior escritor brasileiro era um homem negro, pensando em termos de representatividade”, declara.
Esdras Soares da Silva - Foto: Linkedin

O pesquisador relembra que a retomada da identidade racial de Machado se deve muito ao movimento social negro. Em 2019, a Faculdade Zumbi dos Palmares fez a campanha Machado de Assis Real, em que coloriram uma fotografia do escritor. A campanha foi feita com o objetivo de resgatar a negritude de Machado e dar visibilidade à sua identidade.

Machado isentão?

O fenótipo de Machado não foi o único aspecto embranquecido. Silva conta que suas produções literárias e sua atuação política também passaram por esse processo. Isso porque ele foi acusado de se isentar do debate racial e compactuar com as classes dominantes. “Ao longo do tempo, houve a consolidação da imagem de um escritor que não se posicionava politicamente. Um escritor que, embora fosse negro, ignorava a situação da população negra no Brasil. Essa visão está nos grandes manuais de literatura e é equivocada e danosa”, aponta. 

Ursula Sydio destaca que a imagem de “isento”, pode ter origem em seus romances, em que as protagonistas são pessoas da classe alta e brancas. “Mas, se a pessoa analisa os contos, como O Caso da Vara ou Pai contra Mãe, é impossível você falar que ele se abstinha ou que ele não abordava a crítica, a opinião dele, em relação à crueldade com os escravos”, lembra. “Até pouco tempo atrás, você ouvia muito isso, que ele não falava ou não ligava. Para afirmar algo assim, ou a pessoa leu pouco ou leu de forma muito desatenta”, diz.

“Do ponto de vista da literatura, é preciso entender que a atuação do Machado para denunciar as agruras do sistema escravocrata e o sofrimento a que eram submetidas as pessoas negras, era feito à maneira dele. Eduardo de Assis Duarte, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, caracteriza Machado de Assis como um escritor que utiliza as ‘estratégias de caramujo’, porque ele opta pelo confronto às escondidas, de maneira irônica, de maneira cifrada, nunca de maneira muito explícita como outros autores da época faziam”, complementa. 

Ursula Sydio - Foto: Linkedin
A primeira tradução de Machado de Assis para o inglês data de 1920, na antologia Brazilian Tales, com seis contos de autores brasileiros, sendo três de Machado. De acordo com Ursula Sydio, ele é um dos autores brasileiros mais traduzidos. Apesar disso, a pesquisadora entende que o mercado norte-americano ainda seja fechado à literatura estrangeira.

“A tradução da Flora surgiu como um projeto de doutorado e ela conseguiu um acordo com a Penguin. A gente chegou a conversar e elaborar hipóteses de que talvez os movimentos nos EUA, naquele momento, sobre antirracismo, tenham alavancado isso. Foi uma coisa inédita: um livro brasileiro, pelo menos a parte física, se esgotou”, diz a pesquisadora.

Em sua pesquisa na USP, Ursula criou uma linha do tempo das publicações da obra machadiana para o inglês, além de um corpus, com uma ferramenta de busca de termos em inglês e português. “Dos 39 títulos do catálogo, 23 estão dentro do corpus. São mais de dois milhões de palavras”, conta. 

Ursula destaca que a obra de Machado em inglês faz parte de um círculo de leitura mais adulto e universitário. E lembra da importância do ensino de literatura ainda na formação de estudantes: “Eu acho que boa parte do que mantém obras vivas e relevantes é elas serem apresentadas na escola. Porque Shakespeare é obrigatório na leitura de pessoas do Reino Unido e dos Estados Unidos, e acaba fazendo parte do imaginário deles. E faz parte do nosso imaginário também por conta de adaptações”. 

Tradução de Memórias Póstumas, de Flora Thomson-DeVeaux, lançada em 2020 pela Penguin Classics, esgotou-se em um dia - Imagem: Divulgação/Penguin Books

Reconhecimento tardio de Gama

O primeiro reconhecimento a Luiz Gama viria somente em 3 de novembro de 2015, pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, que concedeu o título de “advogado” 133 anos após sua morte. Em 1931, com grande mobilização do Movimento Negro jornalístico, literário e carnavalesco de São Paulo, um busto de Gama foi instalado no Largo do Arouche. A homenagem, que pretendia celebrar o centenário do nascimento de Luiz Gama, chegou com um ano e meio de atraso. 

Quase 90 anos depois, a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), órgão do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, reconheceu Luiz Gama, oficialmente, como um integrante da categoria. E em 2021, a USP concedeu o título de doutor Honoris Causa póstumo a Luiz Gama, a pedido do jornalista, militante do movimento negro e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Dennis de Oliveira.

“Nosso objetivo nesse movimento para concessão do Honoris Causa foi de reconhecê-lo como um intelectual. Ele era um defensor do fim da escravidão e atuou em diversas áreas do conhecimento: jornalista, poeta, literário, jurista. Ouso dizer que ele é o primeiro intelectual público do Brasil, essa figura que tem um compromisso político sem estar preso meramente a uma área específica, exercendo essa capacidade intelectual em defesa de uma causa de importância democrática”, aponta Oliveira.  

O professor lembra que sua primeira atitude como rábula foi provar a ilegalidade de sua escravização, já que nasceu de mãe livre. Junto ao caricaturista italiano Ângelo Agostini, criou e redigiu O Diabo Coxo, jornal abolicionista que fundou a imprensa ilustrada em São Paulo. Escreveu artigos em jornais como o Radical Paulistano e O Cabrião. Lançou, ainda, o livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, seu único livro, com poemas satíricos e líricos, publicado em 1859.  

“Em boa parte da história do jornalismo não temos a presença de Luiz Gama. Muitos creditam O Diabo Coxo apenas ao Agostini, enquanto Gama era uma figura importante naquela miríade de jornais políticos que permearam o cenário da imprensa no século 19”, destaca Dennis.

Dennis de Oliveira - Foto: Reprodução/IEA-USP

Para o jornalista e professor da USP, a presença de Luiz Gama também não é observada na história da literatura brasileira. “A proposição do título de doutor para ele vem de uma escola de comunicações e artes, colocando o Gama não apenas no campo jurídico, mas intelectual e artístico, em prol da abolição”, diz. 

O Diabo Coxo, de Angelo Agostini e Luiz Gama
Edição da Edusp reproduz, na íntegra, o semanário O Diabo Coxo, que circulou em São Paulo de 1864 a 1865 – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Luiz Gama Imortal

O Instituto Tebas lançou, nesta sexta-feira (21), uma narrativa fotográfica, textual e audiovisual intitulada Liberdade ou Morte: histórias que a História não conta. O Episódio 1 – Caminhada Luiz Gama Imortal – teve seu lançamento em duas etapas: às 18 horas, no Largo do Arouche, e às 19 horas, no Sindicato dos Jornalistas. Ainda o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) outorgará a Medalha Luiz Gama ao ator Deo Garcez, que interpreta o patrono da abolição na peça Luiz Gama: uma voz pela liberdade (@espetaculoluizgama), há nove anos em cartaz.

“Essa questão da caminhada está na vida de Luiz Gama desde 1840. Porque foi quando ele foi vendido pelo pai, em Salvador, conduzido de navio até Cubatão e depois subiu a pé a Serra do Mar. Inclusive, o fato da gente começar [a caminhada] no Cemitério da Consolação e descer, ao invés de encerrar aqui, simboliza a eternidade de Luiz Gama”, explica Abilio Ferreira durante uma das Caminhadas de Luiz Gama gravada para o primeiro episódio da websérie, a que o Jornal da USP teve acesso.  

Tradicionalmente, há 30 anos, com alguns hiatos, acontece em São Paulo a Caminhada Luiz Gama – reproduzindo o ato de 1882 quando cerca de 10% da população paulista se revezou segurando as alças de seu caixão, caminhando do Brás, onde ele morava, até o Cemitério da Consolação. A caminhada, que às vezes é feita em junho, comemorando seu aniversário, e às vezes em agosto, relembrando sua morte, neste ano deve ocorrer nas duas datas.

Abílio Ferreira : Foto: Instituto Tebas

Com informações de Hoje na História (FFLCH) e Instituto Tebas de Educação e Cultura


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